Por Marco Weissheimer, no site Sul-21:
O governo de Michel Temer desmontou as estruturas de direitos humanos construídas ao longo dos últimos anos pelos governos Lula e Dilma e colocou o que restou sob controle do Ministério da Justiça. Uma das medidas que Temer tomou neste processo de desmonte foi proibir por 90 dias qualquer reunião de colegiado nacional na área de direitos humanos, como as do Conselho Nacional da área, prazo esse que já foi renovado. Além disso, cortou os recursos das políticas de proteção a vítimas, testemunhas e de defensores de direitos humanos, ameaçados de morte em vários estados do país. A denúncia é da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que vê com preocupação a combinação entre desmonte de políticas na área e o aumento da repressão a movimentos sociais e adoção de prática como infiltração de militares e policiais em organizações e mobilizações da sociedade.
Em entrevista ao Sul21, Maria do Rosário fala sobre esse quadro e critica postura da atual secretária nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, que não se manifestou até agora sobre esses fatos. “Durante todo esse período do governo golpista eu não vi a Flavia Piovesan fazer nada pelos direitos humanos. Na minha opinião, está rasgando a sua biografia. A única coisa que ela fez até agora foi contestar o direito de Lula fazer uma petição internacional pelos seus direitos”.
A presidente Dilma Rousseff, no pronunciamento que fez após a aprovação do impeachment no Senado, denunciou, entre outras coisas, o caráter misógino do golpe. O que significa exatamente essa faceta misógina do golpe e qual a dimensão desse problema no debate sobre direitos humanos e, de modo mais geral, na política brasileira?
No Brasil, a opressão de gênero está associada a outras formas de opressão, sendo potencializada em grau máximo. Nós estamos vivendo um período de ampla intolerância política, de uma intolerância de classe. Essa intolerância articula-se com outras formas de ódio, fomentadas tanto pela direita ideológica clássica quanto pela direita que se mistura hoje com fundamentalismo religioso e que trabalha pressupostos da direita a partir de elementos do comportamento e da identidade. Estamos vivendo sob uma cultura mais forte de ódio contra as mulheres. O golpe assumiu esse caráter misógino porque ele se consolidou também a partir dessa agenda retrógrada do ponto de vista dos direitos humanos.
Nós nem fizemos a travessia para a garantia de direitos plenos para as mulheres No Brasil, não conseguimos debater esses temas de modo mais intenso e ampliar, por exemplo, questões relacionadas aos direitos de indivíduos que ainda vivem, do ponto de vista legal, uma subcidadania, como acontece com as mulheres lésbicas, os gays, as mulheres trans e os bissexuais. No âmbito da diversidade sexual, não temos nenhuma legislação no Brasil. Costumo dizer que não temos direitos civis no Brasil assegurados plenamente às pessoas LGBTs.
Não há nenhuma legislação a respeito?
Nenhuma. Os direitos civis e políticos são, na sua origem, de caráter individual. Só depois evoluímos para a dimensão de direitos humanos, sociais, econômicos e culturais. Mas, sequer nesta dimensão original individual as pessoas LGBTs são citadas como detentoras de direitos pela identidade LGBT em nenhuma legislação. Elas não existem como tais em termos de direitos civis.
Nós não fizemos um trabalho completo nesta área para dimensões importantes da população brasileira. Isso não se aplica só às pessoas LGBTs. Vale também para as mulheres, por exemplo, no plano dos direitos reprodutivos, que não estão assegurados como direitos da mulher. Mas, mesmo não tendo feito uma trajetória no sentido de uma garantia mais plena dos direitos individuais, estamos vivendo retrocessos porque a legislação e as instituições brasileiras estão hoje sob o marco de uma orientação fundamentalista religiosa, numa relação extremamente danosa à democracia. É uma relação incestuosa entre a direita ideológica tradicional fascista e a direita ideológica fundamentalista fascista. Isso aparece dentro do Congresso Nacional, mas aparece na sociedade também.
Qual a dimensão dessas forças hoje no Congresso Nacional?
Hoje elas são maioria. É a maioria que elegeu Cunha presidente, com apoio do DEM e do PSDB que aderiu a essa agenda. A dimensão misógina do golpe está diretamente ligada a isso. O centro do golpe parte de uma figura que conseguiu reunir em torno de si todos esses segmentos da direita defendendo pautas como a redução da maioridade penal e a oposição à criminalização da homofobia, entre outras. Em seu discurso antes de ser cassado, tudo aquilo que ele aponta como motivos pelos quais ele teria passado a ser odiado foram coisas que ele usou para fomentar o ódio contra Dilma, por ela ser mulher, por ser de esquerda e por ter uma agenda associada a ideais progressistas.
A cassação de Cunha e a eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara muda de algum modo essa aliança entre a direita mais clássica, ligada ao DEM e ao PSDB, e a direita de caráter mais fundamentalista?
O DEM e o PSDB abdicaram de disputar na sociedade um projeto de país quando assumiram o caminho do golpe, em conjunto com o Temer. Eles não se sustentam mais no debate de ideias. Eu acredito que eles não vão se afastar mais dos setores fundamentalistas porque eles passaram a se mover utilizando esses setores para fazer oposição política ao PT. Para sustentar seus interesses econômicos neoliberais e a agenda do Estado mínimo, eles abriram mão completamente de princípios em relação aos quais, no caso do PSDB, nós tínhamos possibilidade de ter algum diálogo. Isso ocorreu na área dos direitos humanos, por exemplo.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, cabe lembrar, as famílias de mortos e desaparecidos na ditadura, conquistaram a comissão sobre mortos e desaparecidos e a Comissão da Anistia, que foram avanços naquele período. Hoje, se olharmos os tucanos, não resta nada daquele período. Não resta nada nem de viés democrático nestes que já foram a socialdemocracia brasileira. Eles aderiram ao projeto comportamental da direita fundamentalista e neste terreno são guiados por eles, inclusive no plano do populismo penal. Fazem o mesmo discurso de que a partir do Código Penal é possível enfrentar as violências na sociedade brasileira, o que é uma explicação simplória para um problema muito complexo.
Temos uma estrutura associada à violência também dentro do Estado, sem capacidade para enfrentar as raízes da violência no Brasil que são muito graves. Há uma manipulação dos números e das causas da violência por aqueles que querem a permanência do atual estado de coisas e taxam os defensores de direitos humanos como promotores da violência e defensores de bandidos, o que é um absurdo. Esse discurso é potencializado em um grau máximo, de um modo inconsequente, por setores da mídia que não veem que os defensores de direitos humanos, além de estarem associados à democracia, estão associados permanentemente a não violência, a soluções não violentas e à prevenção da violência.
Como é possível enfrentar, junto à opinião pública, esse discurso de criminalização dos defensores dos direitos humanos que é repetido diariamente em diferentes meios de comunicação?
A decisão que nós precisamos tomar na esquerda é fazer o que é certo. Isso significa que nós precisamos defender aquilo no que acreditamos e enfrentar as contradições que os nossos adversários por ventura plantem em nossos discursos. Os nossos posicionamentos são coerentes. Nós temos capacidade de dizer qual é o nosso projeto para diminuir a violência na sociedade. Esse projeto está associado naturalmente a uma visão de distribuição de renda, de garantias sociais, econômicas e educacionais, porque esse é um patamar humano mínimo que deve ser assegurado a todos os seres humanos. Mas não é só isso. A esquerda tem um projeto para a segurança pública. Cabe lembrar aqui o trabalho desenvolvido pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro, em compor uma política de segurança pública para o Brasil a partir da descentralização da presença da atitude do Estado nas comunidades periféricas pelo interior o Brasil, do enfrentamento de grupos de crime organizado e, principalmente, da tentativa de construir uma atuação sistêmica na área da segurança pública em todo o país. Foi neste período que nasceu o projeto de um Sistema Nacional de Segurança Pública, do qual eu fui relatora na Câmara dos Deputados. Infelizmente, esse sistema ainda não foi adotado no país.
Depois da saída de Tarso Genro do Ministério da Justiça, a área da segurança pública adotou uma ideia muito conservadora. Nós fomos muito eficientes no repasse de equipamentos, armamentos e viaturas para as forças de segurança, mas interrompemos o principal trabalho que estava sendo realizado no período anterior, que era justamente a formação de policiais e o aporte de recursos orçamentários para garantir rendimentos melhores aos policiais, com subsídios complementados pela União. Esse trabalho também foi marcado por uma série de cursos que promoveram a desobstrução de relações das polícias com a sociedade civil e com movimentos organizados. Tudo isso foi paralisado. Esse modelo que implantou políticas como o Mulheres da Paz e o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que procuraram descentralizar a presença da segurança pública e que seriam fundamentais para enfrentarmos os níveis de criminalidade que temos hoje, infelizmente, foi interrompido. A esquerda, portanto, apresentou um projeto importantíssimo para o Brasil, mas não conseguiu implementá-lo plenamente, de um modo capaz de oferecer uma série histórica com resultados mais positivos.
Os ataques contra o governo Lula e a consumação do golpe contra o governo Dilma se deram por muitas das nossas virtudes, mas também por algumas reformas estruturais que nós deixamos de fazer. Além da reforma política e da reforma tributária, nós deveríamos ter feito uma reforma da segurança pública no Brasil. Antes da ditadura, o nosso sistema de segurança já era conservador, retrógado e patrimonialista. Depois da ditadura, só piorou, incorporando métodos para os quais foram treinados, como a tortura e ações repressivas contra movimentos sociais e populares. Eu tive a oportunidade de estudar alguns manuais utilizados para a formação de policiais no Brasil, que continuam em vigor. Esses manuais identificam como suspeito alguém que é jovem e negro, suspeito de ser fora da ordem. Qual é a ordem? É não ser um morador da periferia, é não estar à noite em determinados lugares, entre outras coisas. Então, os mesmos padrões adotados no período da ditadura para a formação de policiais militares e civis permanecem em vigor no Brasil.
Participei, em 2012, de um debate em São Paulo sobre a ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, uma força especial da Polícia Militar paulista). No Power Point apresentado pela ROTA, estava escrito no topo: “Orgulho de ser a polícia que depôs João Goulart”. Isso é um exemplo de coisas muito graves que seguem acontecendo na política nacional. Além disso, há a simbologia das caveiras que é utilizada por várias polícias e constatamos também a existência de manuais paralelos com vistas à promoção de policiais militares. No Estado de Goiás, por exemplo, o manual não oficial indicava que o número de mortes registradas nas rubricas de “morte em confronto” ou “resistência seguida de morte” eram indicadores que melhoravam a possibilidade de progressão na carreira. Ou seja, quanto mais matasse, mais o policial teria chances de ser promovido. A polícia toda não é assim, mas, historicamente, ela foi formada por seus comandos e seus manuais para ser assim. Essa reforma nós não conseguimos fazer no Brasil.
Estamos vivendo em várias cidades do país um recrudescimento da violência policial e da repressão contra movimentos sociais, e manifestações de rua. Em Goiás, tivemos militantes do MST sendo presos sob a acusação de integrarem uma “organização criminosa”. Qual a dimensão e a natureza dessa escalada da repressão, na sua avaliação?
O governo golpista interveio e deu fim às estruturas de direitos humanos que existiam no governo federal. Ele fez sumir as estruturas de direitos humanos dentro do Ministério da Justiça, o que já é uma forma de controle. As estruturas de direitos humanos no governo Lula e no governo Dilma, na área das políticas para mulheres e de igualdade racial, mas particularmente na Secretaria de Direitos Humanos que passou a ter status de ministério, tinham a tarefa de agir para dentro do próprio governo com o objetivo de garantir o cumprimento dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, da Constituição e legislação do país e também de mobilizar o governo em torno do tema.
Temer encerra essas pastas e as coloca dentro do Ministério da Justiça, que é um mecanismo de controle social. É por isso que a Funai nunca saiu dali de dentro porque os índios sempre foram vistos no Brasil como pessoas que devem ser tuteladas. Isso ocorre desde 1500. Primeiro eram seres sem alma e incapazes. Hoje, são tratados como seres sem direitos e sem autonomia sobre os seus destinos. O Ministério da Justiça, enquanto estrutura de Estado, é um mecanismo de controle e não de promoção de direitos. Temer submeteu todas as pastas de direitos humanos que existiam a essa estrutura de controle. Uma das medidas que ele tomou, junto com o encerramento da atividade destas pastas, foi uma portaria proibindo por 90 dias qualquer região de colegiado nacional na área de direitos humanos. Essa portaria já foi renovada, aliás.
Assim, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, criado pro João Goulart e que só foi conseguir se reunir depois da ditadura, não está se reunindo. Temer cortou todas as rubricas que existiam para viabilizar os encontros desses colegiados, paralisando todas as áreas, desde a de proteção a vítimas e testemunhas até a de promoção dos defensores de direitos humanos. Nós tínhamos um mapa de defensores dos direitos humanos no país e procurávamos apoiá-los para que pudessem realizar o seu trabalho com segurança. Fazíamos um monitoramento desse trabalho, pois essas pessoas eram consideradas pelo nosso governo, e também internacionalmente, como pessoas ameaçadas de morte. O Brasil tinha um programa nacional de defesa dos defensores dos direitos humanos.
Desde que Chico Mendes foi assassinado, numa morte anunciada, o Brasil foi construindo políticas. Mesmo assim, muitas outras pessoas foram mortas por sua atuação nesta área, como a Dorothy Stang, o Manoel Mattos, assassinado entre a Paraíba e Pernambuco, ativistas de vários movimentos e muitos jornalistas. É impressionante o número de jornalistas assassinados, algo que não era reconhecido. Fizemos um observatório sobre isso e mobilizamos a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança, tentando criar uma rede de proteção maior. Esses assassinatos ocorreram em pequenas e grandes cidades. Tivemos, em Goiás, o assassinato do radialista Valério Luiz. Em Minas, um jovem repórter fotográfico foi morto e jogaram uma sacola com a cabeça dele no pátio da sua casa. O Brasil está cheio de casos assim.
A nova secretária de Direitos Humanos, Flavia Piovesan, tem uma trajetória ligada a essa área. Qual a sua avaliação sobre o comportamento dela na secretaria até aqui?
Durante todo esse período do governo golpista eu não vi a Flavia Piovesan fazer nada pelos direitos humanos. Na minha opinião, está rasgando a sua biografia. Ela foi do Conselho Nacional de Direitos Humanos no período em que fui ministra. Foi antes também durante a gestão do Vanucchi. Ela aceitou o convite do Temer para fazer parte de um governo de violação da democracia e, como se sabe, não existem direitos humanos sem democracia. Pois bem, até aqui ela não fez nada pelos direitos humanos. A única coisa que ela fez foi contestar o direito de Lula fazer uma petição internacional pelos seus direitos. Como pesquisadora ou professora de direito internacional, ela pode avaliar que isso pode ter um resultado ou outro, mas qualquer cidadão brasileiro pode fazer uma petição internacional. Se ela é uma defensora dos direitos humanos, ela tem que garantir esse direito, ainda mais estando no comando da secretaria responsável por essa área.
O governo Temer desmontou a estrutura de direitos humanos e conta com as polícias dos estados para fazer a repressão suja nas ruas. Isso está ocorrendo agora nos governos de Alckmin, Sartori e vários outros. Além disso, está mobilizando setores da comunidade de informação para promover infiltrações nos movimentos sociais, como foi exposto agora em São Paulo com a presença daquele capitão do exército. Nós estamos preparando um pedido formal de explicações à presidência da República, sobre a utilização do Exército para esse tipo de operação.
Esse cenário de repressão não é episódico. Estamos com uma série de ações estruturais que maculam a democracia. Não estamos vivendo um período democrático, como estávamos até bem pouco tempo. Durante um largo período, nós começamos a fazer nossos pronunciamentos dizendo “estamos vivendo o mais longo período da história democrática do Brasil”. Pois bem, ele acabou. A democracia não está apenas em risco, ela já vive um caminho de obstrução. Nós não podemos mais ter garantias nas instituições, que estão marcadas hoje pela presença do interesse particular contra o interesse coletivo. O Estado está sendo usado para fazer perseguição política, seja na rua contra os manifestantes, seja contra o ex-presidente Lula.
E um golpe, que não foi apenas parlamentar, mas foi institucional em um sentido mais amplo, exige uma possibilidade mais ampla da sociedade e do próprio PT que enfrenta já há algum tempo uma crise de direção importante. O PT tem que encontrar uma capacidade de se reciclar e de mudar a sua direção nacional para poder estar à altura dos desafios que estamos enfrentando, com capacidade de diálogo com os setores da sociedade que já iniciaram uma mobilização em defesa da democracia e não enxergam na atual direção nacional do PT um espelho da sua vontade de lutar pela democracia. Hoje, existe uma presença grande e importante dos petistas nestas mobilizações, mas não da direção do partido. O PT é importante para o Brasil. Por isso achamos que sua direção deve ser renovada. O partido precisa estar à altura da sua base social que ainda é muito expressiva e combativa, depois de tudo o que aconteceu.
O governo Temer promove agora uma ofensiva para aprovar uma série de propostas no Congresso Nacional que incluem a ampliação das terceirizações, a flexibilização e precarização de direitos e alteração do regime de exploração do pré-sal, entre outros temas. Tudo indica que tem ampla maioria para isso. Qual é a estratégia dos partidos de oposição a esse governo para enfrentar essa ofensiva? Já há um debate a respeito disso?
No dia em que a presidenta Dilma estava sendo julgada no Senado, no plenário da Câmara dos Deputados estava sendo debatida a proposta de mudança do regime de exploração do pré-sal. No mesmo dia. Também estava em pauta o programa nacional de investimentos que recupera o programa de privatizações de 1997, do governo Fernando Henrique, agregando a ele instituições financeiras, o que significa abrir a possibilidade de venda do Banco do Brasil, BNDES e outras instituições. Essas medidas não foram preparadas agora. Eles estão atuando com múltiplos focos.
A PEC 241 prevê o congelamento de investimentos públicos por até 20 anos em várias áreas, inclusive saúde, educação e segurança. Esse congelamento se daria nos níveis orçamentários de 2016, que foi um ano muito ruim para o orçamento nacional. A cada ano, seria acrescida apenas a inflação. O legado que Temer quer deixar para o Brasil, se é que ele quer deixar algum legado, é que a cada ano só teremos investidos na saúde, educação e segurança aquilo que foi aplicado em 2016 mais a inflação do ano. Para a educação, isso significa mais de 50 bilhões de perdas. Áreas como educação e saúde não se medem pela inflação, mas sim por novas tecnologias que são agregadas a elas, entre outros fatores. Na saúde, quando se descobre um novo medicamento, um novo tratamento ou um novo exame, é preciso incorporar essa novidade ao Sistema Único de Saúde para que ela pode ser acessada pela população. Essa tecnologia, muitas vezes, tem um custo maior do que a inflação do período.
Então, uma medida como esta proposta pela PEC 241 significa desatender a sociedade. Quantos cérebros nós vamos perder por não investir na educação durante 20 anos? Estamos falando de uma geração inteira. Na minha opinião, o programa que eles têm é de saque aos cofres públicos. Não se trata de nenhuma estratégia de desenvolvimento.
Na semana passada, mais uma vez, você foi alvo de uma agressão do deputado Jair Bolsonaro. Quais medidas que estão sendo tomadas em relação a esses ataques?
Existem duas ações judiciais em andamento. Na ação por danos morais, já conquistamos duas vitórias, em primeira e segunda instância. A sentença determina que ele se retrate publicamente em diferentes veículos e pague uma indenização de dez mil reais, que serão doados para uma organização de defesa dos direitos das mulheres. Essa civil encontra-se agora no STF. Além desta, há uma ação criminal movida pelo Ministério Público Federal, por apologia à violência e ao estupro, assinada pela então vice-procuradora Ela Wiecko, que já foi acolhida no Supremo pelo ministro Luiz Fuchs.
Desde que eu cheguei à Câmara dos Deputados em 2003 e já vivenciei uma agressão desse parlamentar, tomei uma decisão de não ter qualquer abordagem em relação ao mesmo. Há uma inovação importante na ação do Ministério Público Federal. A imunidade parlamentar deixará de ser um manto encobridor de crimes e calúnias. Eu gostaria muito de poder ficar falando sobre o meu trabalho e não sobre essas agressões que sofri. Gostaria de falar que, ao longo da minha vida parlamentar, sou autora de projetos como o da mudança do Código Penal que unificou os tipos de atentado violento ao pudor e estupro, protegendo meninos e meninas. Todas as vezes que as pessoas escutam a expressão “estupro de vulnerável”, saibam que ela só existe por causa de uma lei que aprovamos para proteger pessoas com deficiência e crianças.
Eu sou autora também do PL da Escuta, que determina que uma criança deve ser escutada de modo diferenciado, sobretudo em casos envolvendo estupro. Com base em algumas experiências, inclusive da Vara da Infância aqui do Rio Grande do Sul, o projeto prevê que a criança tenha uma escuta protegida, respeitada, com apoio psicológico, ao contrário do que muitas vezes acontece hoje, onde as crianças são escutadas em várias ocasiões em condições inadequadas. Nós estamos criando um procedimento que já existe em vários países para escutar vítimas de violência sexual e de outras violências também. Essa sessão no plenário da Câmara, na qual ocorreu a nova agressão do referido deputado, estava debatendo justamente esse tema: sobre como escutar vítimas. Há uma violência política contra as mulheres também na Câmara dos Deputados, movida por essa direita. Aí se expressa também a misoginia do golpe, da qual falamos no início. Esses sujeitos são promotores desse ódio que se propagam nas redes sociais e na sociedade também.
O governo de Michel Temer desmontou as estruturas de direitos humanos construídas ao longo dos últimos anos pelos governos Lula e Dilma e colocou o que restou sob controle do Ministério da Justiça. Uma das medidas que Temer tomou neste processo de desmonte foi proibir por 90 dias qualquer reunião de colegiado nacional na área de direitos humanos, como as do Conselho Nacional da área, prazo esse que já foi renovado. Além disso, cortou os recursos das políticas de proteção a vítimas, testemunhas e de defensores de direitos humanos, ameaçados de morte em vários estados do país. A denúncia é da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que vê com preocupação a combinação entre desmonte de políticas na área e o aumento da repressão a movimentos sociais e adoção de prática como infiltração de militares e policiais em organizações e mobilizações da sociedade.
Em entrevista ao Sul21, Maria do Rosário fala sobre esse quadro e critica postura da atual secretária nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, que não se manifestou até agora sobre esses fatos. “Durante todo esse período do governo golpista eu não vi a Flavia Piovesan fazer nada pelos direitos humanos. Na minha opinião, está rasgando a sua biografia. A única coisa que ela fez até agora foi contestar o direito de Lula fazer uma petição internacional pelos seus direitos”.
A presidente Dilma Rousseff, no pronunciamento que fez após a aprovação do impeachment no Senado, denunciou, entre outras coisas, o caráter misógino do golpe. O que significa exatamente essa faceta misógina do golpe e qual a dimensão desse problema no debate sobre direitos humanos e, de modo mais geral, na política brasileira?
No Brasil, a opressão de gênero está associada a outras formas de opressão, sendo potencializada em grau máximo. Nós estamos vivendo um período de ampla intolerância política, de uma intolerância de classe. Essa intolerância articula-se com outras formas de ódio, fomentadas tanto pela direita ideológica clássica quanto pela direita que se mistura hoje com fundamentalismo religioso e que trabalha pressupostos da direita a partir de elementos do comportamento e da identidade. Estamos vivendo sob uma cultura mais forte de ódio contra as mulheres. O golpe assumiu esse caráter misógino porque ele se consolidou também a partir dessa agenda retrógrada do ponto de vista dos direitos humanos.
Nós nem fizemos a travessia para a garantia de direitos plenos para as mulheres No Brasil, não conseguimos debater esses temas de modo mais intenso e ampliar, por exemplo, questões relacionadas aos direitos de indivíduos que ainda vivem, do ponto de vista legal, uma subcidadania, como acontece com as mulheres lésbicas, os gays, as mulheres trans e os bissexuais. No âmbito da diversidade sexual, não temos nenhuma legislação no Brasil. Costumo dizer que não temos direitos civis no Brasil assegurados plenamente às pessoas LGBTs.
Não há nenhuma legislação a respeito?
Nenhuma. Os direitos civis e políticos são, na sua origem, de caráter individual. Só depois evoluímos para a dimensão de direitos humanos, sociais, econômicos e culturais. Mas, sequer nesta dimensão original individual as pessoas LGBTs são citadas como detentoras de direitos pela identidade LGBT em nenhuma legislação. Elas não existem como tais em termos de direitos civis.
Nós não fizemos um trabalho completo nesta área para dimensões importantes da população brasileira. Isso não se aplica só às pessoas LGBTs. Vale também para as mulheres, por exemplo, no plano dos direitos reprodutivos, que não estão assegurados como direitos da mulher. Mas, mesmo não tendo feito uma trajetória no sentido de uma garantia mais plena dos direitos individuais, estamos vivendo retrocessos porque a legislação e as instituições brasileiras estão hoje sob o marco de uma orientação fundamentalista religiosa, numa relação extremamente danosa à democracia. É uma relação incestuosa entre a direita ideológica tradicional fascista e a direita ideológica fundamentalista fascista. Isso aparece dentro do Congresso Nacional, mas aparece na sociedade também.
Qual a dimensão dessas forças hoje no Congresso Nacional?
Hoje elas são maioria. É a maioria que elegeu Cunha presidente, com apoio do DEM e do PSDB que aderiu a essa agenda. A dimensão misógina do golpe está diretamente ligada a isso. O centro do golpe parte de uma figura que conseguiu reunir em torno de si todos esses segmentos da direita defendendo pautas como a redução da maioridade penal e a oposição à criminalização da homofobia, entre outras. Em seu discurso antes de ser cassado, tudo aquilo que ele aponta como motivos pelos quais ele teria passado a ser odiado foram coisas que ele usou para fomentar o ódio contra Dilma, por ela ser mulher, por ser de esquerda e por ter uma agenda associada a ideais progressistas.
A cassação de Cunha e a eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara muda de algum modo essa aliança entre a direita mais clássica, ligada ao DEM e ao PSDB, e a direita de caráter mais fundamentalista?
O DEM e o PSDB abdicaram de disputar na sociedade um projeto de país quando assumiram o caminho do golpe, em conjunto com o Temer. Eles não se sustentam mais no debate de ideias. Eu acredito que eles não vão se afastar mais dos setores fundamentalistas porque eles passaram a se mover utilizando esses setores para fazer oposição política ao PT. Para sustentar seus interesses econômicos neoliberais e a agenda do Estado mínimo, eles abriram mão completamente de princípios em relação aos quais, no caso do PSDB, nós tínhamos possibilidade de ter algum diálogo. Isso ocorreu na área dos direitos humanos, por exemplo.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, cabe lembrar, as famílias de mortos e desaparecidos na ditadura, conquistaram a comissão sobre mortos e desaparecidos e a Comissão da Anistia, que foram avanços naquele período. Hoje, se olharmos os tucanos, não resta nada daquele período. Não resta nada nem de viés democrático nestes que já foram a socialdemocracia brasileira. Eles aderiram ao projeto comportamental da direita fundamentalista e neste terreno são guiados por eles, inclusive no plano do populismo penal. Fazem o mesmo discurso de que a partir do Código Penal é possível enfrentar as violências na sociedade brasileira, o que é uma explicação simplória para um problema muito complexo.
Temos uma estrutura associada à violência também dentro do Estado, sem capacidade para enfrentar as raízes da violência no Brasil que são muito graves. Há uma manipulação dos números e das causas da violência por aqueles que querem a permanência do atual estado de coisas e taxam os defensores de direitos humanos como promotores da violência e defensores de bandidos, o que é um absurdo. Esse discurso é potencializado em um grau máximo, de um modo inconsequente, por setores da mídia que não veem que os defensores de direitos humanos, além de estarem associados à democracia, estão associados permanentemente a não violência, a soluções não violentas e à prevenção da violência.
Como é possível enfrentar, junto à opinião pública, esse discurso de criminalização dos defensores dos direitos humanos que é repetido diariamente em diferentes meios de comunicação?
A decisão que nós precisamos tomar na esquerda é fazer o que é certo. Isso significa que nós precisamos defender aquilo no que acreditamos e enfrentar as contradições que os nossos adversários por ventura plantem em nossos discursos. Os nossos posicionamentos são coerentes. Nós temos capacidade de dizer qual é o nosso projeto para diminuir a violência na sociedade. Esse projeto está associado naturalmente a uma visão de distribuição de renda, de garantias sociais, econômicas e educacionais, porque esse é um patamar humano mínimo que deve ser assegurado a todos os seres humanos. Mas não é só isso. A esquerda tem um projeto para a segurança pública. Cabe lembrar aqui o trabalho desenvolvido pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro, em compor uma política de segurança pública para o Brasil a partir da descentralização da presença da atitude do Estado nas comunidades periféricas pelo interior o Brasil, do enfrentamento de grupos de crime organizado e, principalmente, da tentativa de construir uma atuação sistêmica na área da segurança pública em todo o país. Foi neste período que nasceu o projeto de um Sistema Nacional de Segurança Pública, do qual eu fui relatora na Câmara dos Deputados. Infelizmente, esse sistema ainda não foi adotado no país.
Depois da saída de Tarso Genro do Ministério da Justiça, a área da segurança pública adotou uma ideia muito conservadora. Nós fomos muito eficientes no repasse de equipamentos, armamentos e viaturas para as forças de segurança, mas interrompemos o principal trabalho que estava sendo realizado no período anterior, que era justamente a formação de policiais e o aporte de recursos orçamentários para garantir rendimentos melhores aos policiais, com subsídios complementados pela União. Esse trabalho também foi marcado por uma série de cursos que promoveram a desobstrução de relações das polícias com a sociedade civil e com movimentos organizados. Tudo isso foi paralisado. Esse modelo que implantou políticas como o Mulheres da Paz e o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que procuraram descentralizar a presença da segurança pública e que seriam fundamentais para enfrentarmos os níveis de criminalidade que temos hoje, infelizmente, foi interrompido. A esquerda, portanto, apresentou um projeto importantíssimo para o Brasil, mas não conseguiu implementá-lo plenamente, de um modo capaz de oferecer uma série histórica com resultados mais positivos.
Os ataques contra o governo Lula e a consumação do golpe contra o governo Dilma se deram por muitas das nossas virtudes, mas também por algumas reformas estruturais que nós deixamos de fazer. Além da reforma política e da reforma tributária, nós deveríamos ter feito uma reforma da segurança pública no Brasil. Antes da ditadura, o nosso sistema de segurança já era conservador, retrógado e patrimonialista. Depois da ditadura, só piorou, incorporando métodos para os quais foram treinados, como a tortura e ações repressivas contra movimentos sociais e populares. Eu tive a oportunidade de estudar alguns manuais utilizados para a formação de policiais no Brasil, que continuam em vigor. Esses manuais identificam como suspeito alguém que é jovem e negro, suspeito de ser fora da ordem. Qual é a ordem? É não ser um morador da periferia, é não estar à noite em determinados lugares, entre outras coisas. Então, os mesmos padrões adotados no período da ditadura para a formação de policiais militares e civis permanecem em vigor no Brasil.
Participei, em 2012, de um debate em São Paulo sobre a ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, uma força especial da Polícia Militar paulista). No Power Point apresentado pela ROTA, estava escrito no topo: “Orgulho de ser a polícia que depôs João Goulart”. Isso é um exemplo de coisas muito graves que seguem acontecendo na política nacional. Além disso, há a simbologia das caveiras que é utilizada por várias polícias e constatamos também a existência de manuais paralelos com vistas à promoção de policiais militares. No Estado de Goiás, por exemplo, o manual não oficial indicava que o número de mortes registradas nas rubricas de “morte em confronto” ou “resistência seguida de morte” eram indicadores que melhoravam a possibilidade de progressão na carreira. Ou seja, quanto mais matasse, mais o policial teria chances de ser promovido. A polícia toda não é assim, mas, historicamente, ela foi formada por seus comandos e seus manuais para ser assim. Essa reforma nós não conseguimos fazer no Brasil.
Estamos vivendo em várias cidades do país um recrudescimento da violência policial e da repressão contra movimentos sociais, e manifestações de rua. Em Goiás, tivemos militantes do MST sendo presos sob a acusação de integrarem uma “organização criminosa”. Qual a dimensão e a natureza dessa escalada da repressão, na sua avaliação?
O governo golpista interveio e deu fim às estruturas de direitos humanos que existiam no governo federal. Ele fez sumir as estruturas de direitos humanos dentro do Ministério da Justiça, o que já é uma forma de controle. As estruturas de direitos humanos no governo Lula e no governo Dilma, na área das políticas para mulheres e de igualdade racial, mas particularmente na Secretaria de Direitos Humanos que passou a ter status de ministério, tinham a tarefa de agir para dentro do próprio governo com o objetivo de garantir o cumprimento dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, da Constituição e legislação do país e também de mobilizar o governo em torno do tema.
Temer encerra essas pastas e as coloca dentro do Ministério da Justiça, que é um mecanismo de controle social. É por isso que a Funai nunca saiu dali de dentro porque os índios sempre foram vistos no Brasil como pessoas que devem ser tuteladas. Isso ocorre desde 1500. Primeiro eram seres sem alma e incapazes. Hoje, são tratados como seres sem direitos e sem autonomia sobre os seus destinos. O Ministério da Justiça, enquanto estrutura de Estado, é um mecanismo de controle e não de promoção de direitos. Temer submeteu todas as pastas de direitos humanos que existiam a essa estrutura de controle. Uma das medidas que ele tomou, junto com o encerramento da atividade destas pastas, foi uma portaria proibindo por 90 dias qualquer região de colegiado nacional na área de direitos humanos. Essa portaria já foi renovada, aliás.
Assim, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, criado pro João Goulart e que só foi conseguir se reunir depois da ditadura, não está se reunindo. Temer cortou todas as rubricas que existiam para viabilizar os encontros desses colegiados, paralisando todas as áreas, desde a de proteção a vítimas e testemunhas até a de promoção dos defensores de direitos humanos. Nós tínhamos um mapa de defensores dos direitos humanos no país e procurávamos apoiá-los para que pudessem realizar o seu trabalho com segurança. Fazíamos um monitoramento desse trabalho, pois essas pessoas eram consideradas pelo nosso governo, e também internacionalmente, como pessoas ameaçadas de morte. O Brasil tinha um programa nacional de defesa dos defensores dos direitos humanos.
Desde que Chico Mendes foi assassinado, numa morte anunciada, o Brasil foi construindo políticas. Mesmo assim, muitas outras pessoas foram mortas por sua atuação nesta área, como a Dorothy Stang, o Manoel Mattos, assassinado entre a Paraíba e Pernambuco, ativistas de vários movimentos e muitos jornalistas. É impressionante o número de jornalistas assassinados, algo que não era reconhecido. Fizemos um observatório sobre isso e mobilizamos a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança, tentando criar uma rede de proteção maior. Esses assassinatos ocorreram em pequenas e grandes cidades. Tivemos, em Goiás, o assassinato do radialista Valério Luiz. Em Minas, um jovem repórter fotográfico foi morto e jogaram uma sacola com a cabeça dele no pátio da sua casa. O Brasil está cheio de casos assim.
A nova secretária de Direitos Humanos, Flavia Piovesan, tem uma trajetória ligada a essa área. Qual a sua avaliação sobre o comportamento dela na secretaria até aqui?
Durante todo esse período do governo golpista eu não vi a Flavia Piovesan fazer nada pelos direitos humanos. Na minha opinião, está rasgando a sua biografia. Ela foi do Conselho Nacional de Direitos Humanos no período em que fui ministra. Foi antes também durante a gestão do Vanucchi. Ela aceitou o convite do Temer para fazer parte de um governo de violação da democracia e, como se sabe, não existem direitos humanos sem democracia. Pois bem, até aqui ela não fez nada pelos direitos humanos. A única coisa que ela fez foi contestar o direito de Lula fazer uma petição internacional pelos seus direitos. Como pesquisadora ou professora de direito internacional, ela pode avaliar que isso pode ter um resultado ou outro, mas qualquer cidadão brasileiro pode fazer uma petição internacional. Se ela é uma defensora dos direitos humanos, ela tem que garantir esse direito, ainda mais estando no comando da secretaria responsável por essa área.
O governo Temer desmontou a estrutura de direitos humanos e conta com as polícias dos estados para fazer a repressão suja nas ruas. Isso está ocorrendo agora nos governos de Alckmin, Sartori e vários outros. Além disso, está mobilizando setores da comunidade de informação para promover infiltrações nos movimentos sociais, como foi exposto agora em São Paulo com a presença daquele capitão do exército. Nós estamos preparando um pedido formal de explicações à presidência da República, sobre a utilização do Exército para esse tipo de operação.
Esse cenário de repressão não é episódico. Estamos com uma série de ações estruturais que maculam a democracia. Não estamos vivendo um período democrático, como estávamos até bem pouco tempo. Durante um largo período, nós começamos a fazer nossos pronunciamentos dizendo “estamos vivendo o mais longo período da história democrática do Brasil”. Pois bem, ele acabou. A democracia não está apenas em risco, ela já vive um caminho de obstrução. Nós não podemos mais ter garantias nas instituições, que estão marcadas hoje pela presença do interesse particular contra o interesse coletivo. O Estado está sendo usado para fazer perseguição política, seja na rua contra os manifestantes, seja contra o ex-presidente Lula.
E um golpe, que não foi apenas parlamentar, mas foi institucional em um sentido mais amplo, exige uma possibilidade mais ampla da sociedade e do próprio PT que enfrenta já há algum tempo uma crise de direção importante. O PT tem que encontrar uma capacidade de se reciclar e de mudar a sua direção nacional para poder estar à altura dos desafios que estamos enfrentando, com capacidade de diálogo com os setores da sociedade que já iniciaram uma mobilização em defesa da democracia e não enxergam na atual direção nacional do PT um espelho da sua vontade de lutar pela democracia. Hoje, existe uma presença grande e importante dos petistas nestas mobilizações, mas não da direção do partido. O PT é importante para o Brasil. Por isso achamos que sua direção deve ser renovada. O partido precisa estar à altura da sua base social que ainda é muito expressiva e combativa, depois de tudo o que aconteceu.
O governo Temer promove agora uma ofensiva para aprovar uma série de propostas no Congresso Nacional que incluem a ampliação das terceirizações, a flexibilização e precarização de direitos e alteração do regime de exploração do pré-sal, entre outros temas. Tudo indica que tem ampla maioria para isso. Qual é a estratégia dos partidos de oposição a esse governo para enfrentar essa ofensiva? Já há um debate a respeito disso?
No dia em que a presidenta Dilma estava sendo julgada no Senado, no plenário da Câmara dos Deputados estava sendo debatida a proposta de mudança do regime de exploração do pré-sal. No mesmo dia. Também estava em pauta o programa nacional de investimentos que recupera o programa de privatizações de 1997, do governo Fernando Henrique, agregando a ele instituições financeiras, o que significa abrir a possibilidade de venda do Banco do Brasil, BNDES e outras instituições. Essas medidas não foram preparadas agora. Eles estão atuando com múltiplos focos.
A PEC 241 prevê o congelamento de investimentos públicos por até 20 anos em várias áreas, inclusive saúde, educação e segurança. Esse congelamento se daria nos níveis orçamentários de 2016, que foi um ano muito ruim para o orçamento nacional. A cada ano, seria acrescida apenas a inflação. O legado que Temer quer deixar para o Brasil, se é que ele quer deixar algum legado, é que a cada ano só teremos investidos na saúde, educação e segurança aquilo que foi aplicado em 2016 mais a inflação do ano. Para a educação, isso significa mais de 50 bilhões de perdas. Áreas como educação e saúde não se medem pela inflação, mas sim por novas tecnologias que são agregadas a elas, entre outros fatores. Na saúde, quando se descobre um novo medicamento, um novo tratamento ou um novo exame, é preciso incorporar essa novidade ao Sistema Único de Saúde para que ela pode ser acessada pela população. Essa tecnologia, muitas vezes, tem um custo maior do que a inflação do período.
Então, uma medida como esta proposta pela PEC 241 significa desatender a sociedade. Quantos cérebros nós vamos perder por não investir na educação durante 20 anos? Estamos falando de uma geração inteira. Na minha opinião, o programa que eles têm é de saque aos cofres públicos. Não se trata de nenhuma estratégia de desenvolvimento.
Na semana passada, mais uma vez, você foi alvo de uma agressão do deputado Jair Bolsonaro. Quais medidas que estão sendo tomadas em relação a esses ataques?
Existem duas ações judiciais em andamento. Na ação por danos morais, já conquistamos duas vitórias, em primeira e segunda instância. A sentença determina que ele se retrate publicamente em diferentes veículos e pague uma indenização de dez mil reais, que serão doados para uma organização de defesa dos direitos das mulheres. Essa civil encontra-se agora no STF. Além desta, há uma ação criminal movida pelo Ministério Público Federal, por apologia à violência e ao estupro, assinada pela então vice-procuradora Ela Wiecko, que já foi acolhida no Supremo pelo ministro Luiz Fuchs.
Desde que eu cheguei à Câmara dos Deputados em 2003 e já vivenciei uma agressão desse parlamentar, tomei uma decisão de não ter qualquer abordagem em relação ao mesmo. Há uma inovação importante na ação do Ministério Público Federal. A imunidade parlamentar deixará de ser um manto encobridor de crimes e calúnias. Eu gostaria muito de poder ficar falando sobre o meu trabalho e não sobre essas agressões que sofri. Gostaria de falar que, ao longo da minha vida parlamentar, sou autora de projetos como o da mudança do Código Penal que unificou os tipos de atentado violento ao pudor e estupro, protegendo meninos e meninas. Todas as vezes que as pessoas escutam a expressão “estupro de vulnerável”, saibam que ela só existe por causa de uma lei que aprovamos para proteger pessoas com deficiência e crianças.
Eu sou autora também do PL da Escuta, que determina que uma criança deve ser escutada de modo diferenciado, sobretudo em casos envolvendo estupro. Com base em algumas experiências, inclusive da Vara da Infância aqui do Rio Grande do Sul, o projeto prevê que a criança tenha uma escuta protegida, respeitada, com apoio psicológico, ao contrário do que muitas vezes acontece hoje, onde as crianças são escutadas em várias ocasiões em condições inadequadas. Nós estamos criando um procedimento que já existe em vários países para escutar vítimas de violência sexual e de outras violências também. Essa sessão no plenário da Câmara, na qual ocorreu a nova agressão do referido deputado, estava debatendo justamente esse tema: sobre como escutar vítimas. Há uma violência política contra as mulheres também na Câmara dos Deputados, movida por essa direita. Aí se expressa também a misoginia do golpe, da qual falamos no início. Esses sujeitos são promotores desse ódio que se propagam nas redes sociais e na sociedade também.
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