Por João Vitor Rodrigues Loureiro, no site Brasil Debate:
A tragédia do presídio em Manaus, a primeira rebelião violenta do ano, seguida de outras três, acendeu novamente o alerta sobre as trágicas condições do sistema penitenciário brasileiro, escancarando uma vez mais a ausência de soluções concretas para um problema maior: o desenho da política criminal brasileira.
A carnificina no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (que integra uma Unidade de presos em regime fechado e outra para os presos em regime semiaberto) explica-se por uma condição básica da instituição prisional: as organizações espontâneas de poder no interior das prisões.
A prisão como instituição social total, sobretudo na maior parte das unidades federativas do Brasil, é uma ilusão enorme. Procurar hoje, no Brasil, instituições que dão conta de controle e disciplina absolutos sobre o dia a dia de internos, assistindo-os e preparando-os para sua reinserção à vida em liberdade, equivale a buscar uma agulha no palheiro. Talvez o modelo mais próximo que atenda a essas condições seja o Sistema Penitenciário Federal, desenhado nessa condição com a intenção de controlar lideranças de facções criminosas.
À parte disso, o controle absoluto sobre pessoas privadas de liberdade, em unidades superlotadas e deixadas sob a custódia de poucos e, em muitas vezes, pouco preparados funcionários, é absolutamente irreal. A auto-organização, nessas condições, equivale a uma máxima: pessoas presas organizam-se de diferentes formas, para pressionar a direção da unidade por alguma benesse, para garantir sobrevivência em espaços de ameaças, para reivindicar por melhorias em suas condições de privação de liberdade, e por outras tantas razões. A vida na prisão é semelhante à vida do lado de fora: pessoas possuem interesses e buscam alcançá-los, organizando-se para isso.
O que, no entanto, tem se verificado é que o modelo prisional brasileiro consiste num misto perigoso entre condições favoráveis para a tragédia: se falta rigor nos aspectos de segurança, disciplina e atividades de assistência e reintegração social, sobram pessoas encarceradas de forma pouco criteriosa, e em condições subumanas.
O tema da gestão dos estabelecimentos volta e meia oscila entre duas extremidades: garantias (reinserção social) e segurança (disciplina e vigilância). Não devem ser tratadas como opostas ou anulantes: uma só é possível se a outra existir, nesse modelo de instituição que é a prisão.
O que o caso da unidade de Manaus nos revela é a existência de uma condição favorável para a ação dos grupos organizados: a unidade estava, em modelo de cogestão do Estado do Amazonas com a iniciativa privada, sob responsabilidade da empresa Umanizzare. A unidade, que possuía capacidade para abrigar 454 detentos, encerrava 1.229 pessoas no momento do conflito, três vezes mais que sua capacidade original.
Ora, uma rebelião com essa dimensão não acontece do dia para a noite. Ela é pensada de forma estratégica, minuciosa, e procura o melhor momento para se efetivar.
Em termos amplos, o momento não poderia ser mais propício: enquanto o Judiciário brasileiro insiste na prisão como medida prioritária, para o exercício estatal da punição, seguiremos abarrotando cadeias que tornam cada dia mais difícil sua gestão, relegada ao controle de grupos internos de interesse. É evidente que nem todos que morreram estivessem necessariamente ligados à Família do Norte ou ao Primeiro Comando da Capital, longe disso. O que se observa, num caso como esse, é a pura demonstração de força pela via da barbárie, autorizada por meio de omissão estatal.
A facção aproveitou tal cenário para uma demonstração de força por meio do massacre: contra batizados ou não batizados, simpatizantes ou não do PCC, atingindo inclusive os presos do regime semiaberto. A disputa externa por redes de tráfico de drogas (o Amazonas é rota importante de entrada de drogas no mercado brasileiro e saída para o exterior) e de crime reflete-se no interior das prisões: trata-se de demonstrar força em um cenário que favorecia tal demonstração.
A ausência de critérios e efetiva classificação de pessoas privadas de liberdade permite a existência de espaços em que traficantes pequenos (aviõezinhos), sentenciados de pequenos valores, coexistam num mesmo espaço que grandes chefes de quadrilha, de tráfico, contrabando e homicidas profissionais. Essa permissividade do sistema é ainda mais grave quando se verifica ainda existirem, no Brasil, unidades que sequer conseguem separar definitivamente presos provisórios de presos sentenciados.
A solução do problema passa por uma questão primordial: a prisão não é solução nem resposta suficiente aos problemas de segurança pública no país, enquanto usada de forma indiscriminada. Construir mais prisões sem deter o hiperencarceramento somente produzirá um resultado: mais prisões superlotadas, e mais recrutas para o crime organizado ou reincidente.
Na definição de Foulcault, os corpos indesejados ao convívio social, segregados, separados da sociedade são os sujeitos prioritariamente empurrados às masmorras brasileiras. Talvez precisemos, enquanto sociedade, rever nossos desejos. O que desejamos é prender ou punir? Desde quando uma coisa significa a outra? Quando é de fato justa e necessária a aplicação de pena privativa de liberdade? Essas perguntas podem oferecer um outro cenário a nossas prisões.
Seguiremos promovendo o recrutamento para o crime e a profissionalização de grupos específicos, se o problema não for enfrentado em sua raiz constitutiva: a efetividade e proporcionalidade da punição estatal, a adequada racionalização de assistências e políticas de reintegração e de egressos, e o controle efetivo daqueles que de fato importariam ser controlados e vigiados. Essa mudança não é fácil, mas requer um esforço inicial de nossas autoridades judiciárias, responsáveis por decidir sobre os destinos da liberdade de pessoas diariamente.
Caso contrário, o sistema implodirá pelas mãos de seus próprios usuários. Novas tragédias vergonhosas serão inscritas nos anais de nossa enorme lista de violações internacionais de direitos humanos. O relógio corre, em pesado ritmo de bomba-relógio.
A tragédia do presídio em Manaus, a primeira rebelião violenta do ano, seguida de outras três, acendeu novamente o alerta sobre as trágicas condições do sistema penitenciário brasileiro, escancarando uma vez mais a ausência de soluções concretas para um problema maior: o desenho da política criminal brasileira.
A carnificina no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (que integra uma Unidade de presos em regime fechado e outra para os presos em regime semiaberto) explica-se por uma condição básica da instituição prisional: as organizações espontâneas de poder no interior das prisões.
A prisão como instituição social total, sobretudo na maior parte das unidades federativas do Brasil, é uma ilusão enorme. Procurar hoje, no Brasil, instituições que dão conta de controle e disciplina absolutos sobre o dia a dia de internos, assistindo-os e preparando-os para sua reinserção à vida em liberdade, equivale a buscar uma agulha no palheiro. Talvez o modelo mais próximo que atenda a essas condições seja o Sistema Penitenciário Federal, desenhado nessa condição com a intenção de controlar lideranças de facções criminosas.
À parte disso, o controle absoluto sobre pessoas privadas de liberdade, em unidades superlotadas e deixadas sob a custódia de poucos e, em muitas vezes, pouco preparados funcionários, é absolutamente irreal. A auto-organização, nessas condições, equivale a uma máxima: pessoas presas organizam-se de diferentes formas, para pressionar a direção da unidade por alguma benesse, para garantir sobrevivência em espaços de ameaças, para reivindicar por melhorias em suas condições de privação de liberdade, e por outras tantas razões. A vida na prisão é semelhante à vida do lado de fora: pessoas possuem interesses e buscam alcançá-los, organizando-se para isso.
O que, no entanto, tem se verificado é que o modelo prisional brasileiro consiste num misto perigoso entre condições favoráveis para a tragédia: se falta rigor nos aspectos de segurança, disciplina e atividades de assistência e reintegração social, sobram pessoas encarceradas de forma pouco criteriosa, e em condições subumanas.
O tema da gestão dos estabelecimentos volta e meia oscila entre duas extremidades: garantias (reinserção social) e segurança (disciplina e vigilância). Não devem ser tratadas como opostas ou anulantes: uma só é possível se a outra existir, nesse modelo de instituição que é a prisão.
O que o caso da unidade de Manaus nos revela é a existência de uma condição favorável para a ação dos grupos organizados: a unidade estava, em modelo de cogestão do Estado do Amazonas com a iniciativa privada, sob responsabilidade da empresa Umanizzare. A unidade, que possuía capacidade para abrigar 454 detentos, encerrava 1.229 pessoas no momento do conflito, três vezes mais que sua capacidade original.
Ora, uma rebelião com essa dimensão não acontece do dia para a noite. Ela é pensada de forma estratégica, minuciosa, e procura o melhor momento para se efetivar.
Em termos amplos, o momento não poderia ser mais propício: enquanto o Judiciário brasileiro insiste na prisão como medida prioritária, para o exercício estatal da punição, seguiremos abarrotando cadeias que tornam cada dia mais difícil sua gestão, relegada ao controle de grupos internos de interesse. É evidente que nem todos que morreram estivessem necessariamente ligados à Família do Norte ou ao Primeiro Comando da Capital, longe disso. O que se observa, num caso como esse, é a pura demonstração de força pela via da barbárie, autorizada por meio de omissão estatal.
A facção aproveitou tal cenário para uma demonstração de força por meio do massacre: contra batizados ou não batizados, simpatizantes ou não do PCC, atingindo inclusive os presos do regime semiaberto. A disputa externa por redes de tráfico de drogas (o Amazonas é rota importante de entrada de drogas no mercado brasileiro e saída para o exterior) e de crime reflete-se no interior das prisões: trata-se de demonstrar força em um cenário que favorecia tal demonstração.
A ausência de critérios e efetiva classificação de pessoas privadas de liberdade permite a existência de espaços em que traficantes pequenos (aviõezinhos), sentenciados de pequenos valores, coexistam num mesmo espaço que grandes chefes de quadrilha, de tráfico, contrabando e homicidas profissionais. Essa permissividade do sistema é ainda mais grave quando se verifica ainda existirem, no Brasil, unidades que sequer conseguem separar definitivamente presos provisórios de presos sentenciados.
A solução do problema passa por uma questão primordial: a prisão não é solução nem resposta suficiente aos problemas de segurança pública no país, enquanto usada de forma indiscriminada. Construir mais prisões sem deter o hiperencarceramento somente produzirá um resultado: mais prisões superlotadas, e mais recrutas para o crime organizado ou reincidente.
Na definição de Foulcault, os corpos indesejados ao convívio social, segregados, separados da sociedade são os sujeitos prioritariamente empurrados às masmorras brasileiras. Talvez precisemos, enquanto sociedade, rever nossos desejos. O que desejamos é prender ou punir? Desde quando uma coisa significa a outra? Quando é de fato justa e necessária a aplicação de pena privativa de liberdade? Essas perguntas podem oferecer um outro cenário a nossas prisões.
Seguiremos promovendo o recrutamento para o crime e a profissionalização de grupos específicos, se o problema não for enfrentado em sua raiz constitutiva: a efetividade e proporcionalidade da punição estatal, a adequada racionalização de assistências e políticas de reintegração e de egressos, e o controle efetivo daqueles que de fato importariam ser controlados e vigiados. Essa mudança não é fácil, mas requer um esforço inicial de nossas autoridades judiciárias, responsáveis por decidir sobre os destinos da liberdade de pessoas diariamente.
Caso contrário, o sistema implodirá pelas mãos de seus próprios usuários. Novas tragédias vergonhosas serão inscritas nos anais de nossa enorme lista de violações internacionais de direitos humanos. O relógio corre, em pesado ritmo de bomba-relógio.
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