Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Distribuído como peça de propaganda em sua viagem a Doha, a principal contribuição do vídeo de quatro minutos do prefeito João Dória sobre São Paulo ocorre no plano cultural. É um lamentável monumento do colonizado a colonização, aqui exibida como opção para salvar a maior cidade brasileira.
Cinco séculos depois da chegada das caravelas de Cabral ao litoral da Bahia, o prefeito da maior cidade brasileira assume a postura do chefe tribal - nada a ver com autoridade eleita democraticamente, direito que os brasileiros só puderam conquistar séculos mais tarde - que decide negociar as riquezas erguidas na cidade. Estamos falado de um patrimônio formado, tijolo a tijolo, desde 1554, pelo trabalho duro de seus cidadãos, numa história que inclui três séculos de escravidão, o braço que plantou e colheu as riquezas originais, para promover o "maior programa de privatização de sua história."
O espírito é aquele mesmo que marcou uma história de atraso, desigualdade e exploração de sucessivas gerações de brasileiras e brasileiros. O resultado produziu um país que, mesmo ocupando a posição de líder regional, ainda se encontra muito abaixo das riquezas e potencialidades da "terra em que se plantando tudo dá," como anunciou o escrivão Caminha, patrono do ufanismo agora exibido à cores, com vários truques de edição e musiquinha de fundo.
Embora não se fale de valores nem de números, o que não é recomendável numa operação desse tipo, o objetivo é evidente. Pretende-se despertar o apetite externo pela imensa riqueza dos espaços públicos de São Paulo, deixando claro que se prepara um comércio de espelhinhos, machadinhas e outras bugigangas. É isso o que ocorre nos programas de privatização desde que o partido de Dória, o PSDB, liderou o processo descrito com maestria por Aloysio Biondi no livro "O Brasil Privatizado." Ali, um mestre respeitado de nosso jornalismo econômico demonstra que, contrariando a conversa padrão dos programas de venda de patrimônio, os subsídios e financiamentos públicos ultrapassaram em muito as receitas, "aumentando a dívida e o rombo do governo".
Como é de se esperar numa oferta desse tipo, sobram objetos de interesse material mas faltam seres humanos. Homens e mulheres são exibidos em movimentos robotizados de alta velocidade. As imagens da São Paulo verdadeira -- inclusive com pichações e grafites de uma população que vive, ama e protesta, expressando-se com os meios de que dispõe -- estão de fora. Não é só estética. É poder. A cidade não é uma obra humana coletiva, com dores e sofrimentos, diversidade e esperanças, mas um grande balcão para negócios.
O vídeo ainda promete "segurança jurídica" aos interessados, conceito que não é confirmado nem pela quebra das grandes empresas investigadas na Lava Jato, num processo com frequentes contestações no plano jurídico, nem pelos índices dramáticos de violência e criminalidade, que atingem tanto os pobres da periferia como os ricos que se pretende atrair com ofertas tão apetitosas.
Exibido em Doha, a 11 871 km de São Paulo, o vídeo foi lançado no mesmo momento em que a prefeitura anunciou o corte em 53% do programa do leite para crianças, numa decisão que excluiu perto de 700 000 estudantes de escolas públicas. Separadas por vários oceanos, são duas faces da mesma moeda.
Ponto de honra do Estado Mínimo patenteado por Margareth Thatcher, o corte do leite pode ser interpretado como um primeiro passo nas mudanças que ameaçam a vida da cidade.
As ofertas de privatização incluem o que você pode imaginar: a gestão do Bilhete Único, do Ibirapuera, o autódromo de Interlagos, o sambódromo e até os cemitérios -- coisa que a cultura dos nativos da Terra de Santa Cruz venerava como área sagrada, destinada à preservação da história e à lembrança dos antepassados. Como não se conhece privatização que beneficie o bolso do usuário, como provam nossas tarifas de telefonia, entre as maiores do mundo, é bom estar preparado.
Anunciando o que pode ser uma das próximas batalhas, um editorial da Folha de S. Paulo, hoje, elogia Dória pelo corte no programa do leite. Refletindo uma postura que espelha a visão dos bairros onde os moradores dispensam transporte coletivo, o jornal também lamenta que, temendo protestos logo depois da posse, o prefeito tenha evitado o reajuste nas passagens de ônibus em nome da "popularidade fácil."
Distribuído como peça de propaganda em sua viagem a Doha, a principal contribuição do vídeo de quatro minutos do prefeito João Dória sobre São Paulo ocorre no plano cultural. É um lamentável monumento do colonizado a colonização, aqui exibida como opção para salvar a maior cidade brasileira.
Cinco séculos depois da chegada das caravelas de Cabral ao litoral da Bahia, o prefeito da maior cidade brasileira assume a postura do chefe tribal - nada a ver com autoridade eleita democraticamente, direito que os brasileiros só puderam conquistar séculos mais tarde - que decide negociar as riquezas erguidas na cidade. Estamos falado de um patrimônio formado, tijolo a tijolo, desde 1554, pelo trabalho duro de seus cidadãos, numa história que inclui três séculos de escravidão, o braço que plantou e colheu as riquezas originais, para promover o "maior programa de privatização de sua história."
O espírito é aquele mesmo que marcou uma história de atraso, desigualdade e exploração de sucessivas gerações de brasileiras e brasileiros. O resultado produziu um país que, mesmo ocupando a posição de líder regional, ainda se encontra muito abaixo das riquezas e potencialidades da "terra em que se plantando tudo dá," como anunciou o escrivão Caminha, patrono do ufanismo agora exibido à cores, com vários truques de edição e musiquinha de fundo.
Embora não se fale de valores nem de números, o que não é recomendável numa operação desse tipo, o objetivo é evidente. Pretende-se despertar o apetite externo pela imensa riqueza dos espaços públicos de São Paulo, deixando claro que se prepara um comércio de espelhinhos, machadinhas e outras bugigangas. É isso o que ocorre nos programas de privatização desde que o partido de Dória, o PSDB, liderou o processo descrito com maestria por Aloysio Biondi no livro "O Brasil Privatizado." Ali, um mestre respeitado de nosso jornalismo econômico demonstra que, contrariando a conversa padrão dos programas de venda de patrimônio, os subsídios e financiamentos públicos ultrapassaram em muito as receitas, "aumentando a dívida e o rombo do governo".
Como é de se esperar numa oferta desse tipo, sobram objetos de interesse material mas faltam seres humanos. Homens e mulheres são exibidos em movimentos robotizados de alta velocidade. As imagens da São Paulo verdadeira -- inclusive com pichações e grafites de uma população que vive, ama e protesta, expressando-se com os meios de que dispõe -- estão de fora. Não é só estética. É poder. A cidade não é uma obra humana coletiva, com dores e sofrimentos, diversidade e esperanças, mas um grande balcão para negócios.
O vídeo ainda promete "segurança jurídica" aos interessados, conceito que não é confirmado nem pela quebra das grandes empresas investigadas na Lava Jato, num processo com frequentes contestações no plano jurídico, nem pelos índices dramáticos de violência e criminalidade, que atingem tanto os pobres da periferia como os ricos que se pretende atrair com ofertas tão apetitosas.
Exibido em Doha, a 11 871 km de São Paulo, o vídeo foi lançado no mesmo momento em que a prefeitura anunciou o corte em 53% do programa do leite para crianças, numa decisão que excluiu perto de 700 000 estudantes de escolas públicas. Separadas por vários oceanos, são duas faces da mesma moeda.
Ponto de honra do Estado Mínimo patenteado por Margareth Thatcher, o corte do leite pode ser interpretado como um primeiro passo nas mudanças que ameaçam a vida da cidade.
As ofertas de privatização incluem o que você pode imaginar: a gestão do Bilhete Único, do Ibirapuera, o autódromo de Interlagos, o sambódromo e até os cemitérios -- coisa que a cultura dos nativos da Terra de Santa Cruz venerava como área sagrada, destinada à preservação da história e à lembrança dos antepassados. Como não se conhece privatização que beneficie o bolso do usuário, como provam nossas tarifas de telefonia, entre as maiores do mundo, é bom estar preparado.
Anunciando o que pode ser uma das próximas batalhas, um editorial da Folha de S. Paulo, hoje, elogia Dória pelo corte no programa do leite. Refletindo uma postura que espelha a visão dos bairros onde os moradores dispensam transporte coletivo, o jornal também lamenta que, temendo protestos logo depois da posse, o prefeito tenha evitado o reajuste nas passagens de ônibus em nome da "popularidade fácil."
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