Por Fernando Nicolazzi, no site Sul-21:
Creio que a lembrança ainda está viva na memória das pessoas. No dia 13 de junho de 2013, em pleno calor das manifestações de rua, que naquele momento ainda tinham por pauta o tema da mobilidade urbana e de outros modelos de cidade e de usos do espaço público – em uma palavra, o tema da cidadania –, a repórter da TV Folha Giuliana Valllone foi gravemente ferida no olho por conta de uma bala de borracha disparada pela tropa de choque da polícia militar paulista. O fato ocorreu na rua Augusta, em São Paulo e, segundo a repórter, o policial, que estava a cerca de 20 metros de distância, mirou e efetuou o disparou em sua direção. A intenção de ferir estava patente.
O episódio teve grande repercussão nacional e a recorrente violência policial contra manifestações sociais pacíficas passou a ser questionada, inclusive por empresas de comunicação que costumeiramente se mostram, se não abertamente favoráveis, ao menos veladamente coniventes com ela. Obviamente, Giuliana não foi a única vítima da brutalidade policial, mas seu caso se tornou mais evidenciado muito em função da sua atividade profissional e da empresa para a qual estava trabalhando. No mesmo dia, o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, que também fazia a cobertura dos protestos, parou durante alguns instantes para ajustar sua câmera, quando foi atingido no olho por outra bala de borracha. O ferimento foi de tal gravidade que Sérgio teve que colocar uma prótese onde antes estava seu globo ocular.
Aquela irresponsável e injustificável violência policial serviu de combustível para inflamar ainda mais os protestos de rua, que haviam começado alguns meses antes em cidades como Porto Alegre e Florianópolis e se espalharam por outros diversos espaços urbanos em todo o Brasil. A pauta original, com um caráter eminentemente positivo, passou a dividir espaço com outras demandas mais difusas e de mais difícil compreensão. A demanda social para o aprimoramento de nossa precária cidadania se viu acompanhada por uma outra forma de descontentamento que, na falta de uma formulação política mais precisa, encontrou amparo em uma espécie de raiva latente que talvez poucos conseguiram perceber sua existência antes que tomasse formas nas ruas. Nem a imagem pouco simpática do pato amarelo que mais tarde passou a fazer parte da paisagem escondia a cólera que era sentida e salivada pelas gentes de bem.
Não é preciso ser um grande estudioso para entender que uma população enraivecida acaba por se tornar um terreno fértil para se cultivar o ódio social. E foi justamente isso que setores importantes de nossa sociedade, das velhas entidades empresariais até novos movimento originados nas redes sociais, passando pelas organizações de sempre, como grandes meios de comunicação ou setores do judiciário e da esfera religiosa, da indústria e do agronegócio, acabaram por realizar: em um esforço habilmente conduzido, mesmo que eticamente condenável, conseguiram canalizar toda aquela raiva difusa, transformando-a no ódio a um alvo específico: o petismo, com todas as suas variantes não conceituadas (lulo-petismo, dilmismo, esquerdismo, comunismo, bolivarianismo, feminismo, chavismo, castrismo, guevarismo e tantas outras palavras esvaziadas de sentido, mas incessantemente utilizadas nos mais diversos espaços). Não custa recordar: no editorial de 13 de março de 2016, o jornal O Estado de São Paulo ecoou o “basta!” de 1964 e, ao falar em nome da moral da “família indignada” brasileira, chamou de “matilha de petista e agregados” todos aqueles que, partidários ou não, defendiam o regime democrático no Brasil.
Três anos depois que Giuliana teve seu rosto atingido e Sérgio perdeu o seu olho, o golpe de Estado que depôs a presidenta eleita Dilma Rousseff foi consumado. É certo que ele teve seus atores principais e seus coadjuvantes, alguns mais estridentes girando bandeiras em discursos sobre cobras, outros mais discretos, com a discrição que a toga impunha. Todos partícipes, no entanto, buscando seu lugar no golpe. Como neste caso o gesto autoritário não contou com o protagonismo direto das forças armadas (embora a proteção da polícia militar tenha sido fundamental), resta a curiosidade de quem será o bode expiatório no futuro. Ou seja, sobre quem pairará a culpa pelo colaboracionismo civil desta vez. Como se sabe, nossa memória democrática se assenta em invenções deste tipo.
De todo modo, o palco onde toda a peça foi encenada tinha por alicerce principal aquela raiva latente, transmutada em ódio cuidadosamente cultivado desde alguns anos antes. Um ódio que poderia ser definido como ódio de classe, de gênero, de raça ou de tantas outras formas de ódio, já que parte de nossa sociedade sempre foi primorosa em diversificar a qualidade e a quantidade das suas aversões. Não importa, contudo, o epíteto que se agrega a este sentimento: depois que naturalizado, ele jamais poderia transformar nossa sociedade em algo melhor. Nosso cotidiano tem dado mostras em demasia disso, seja nas ruas, nas páginas dos jornais, nas redes sociais ou em grupos de telefone.
Em agosto de 2016, a justiça achou justo considerar o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva culpado por ter perdido o olho durante a cobertura jornalística dos protestos ocorridos três anos antes. Segundo argumento dos advogados de defesa do Estado de São Paulo, contra quem Sérgio abriu pedido de indenização, sua profissão não dependia da “visão binocular”; logo ele, um fotógrafo! Na sentença, o juiz Olavo Zampol Júnior afirmou que o pleiteante “voluntária e conscientemente assumiu o risco de ser alvejado por alguns dos grupos em confronto (polícia e manifestantes)”, complementando em seguida que “não se está a falar de exercício regular de direito ou estrito cumprimento de dever legal na atuação do agente público, mas de culpa exclusiva do autor, pelas condições em que os fatos se deram”. Só faltou cobrar de Sérgio indenização pelo estrago que seu olho causou na bala de borracha, comprada com dinheiro público.
No mês seguinte ao da decisão judicial, a manifestante Deborah Fabri participava em São Paulo de um ato contra o golpe, que já estava a galope, quando uma bomba lançada pela polícia atingiu seu rosto, fazendo com que um estilhaço perfurasse o olho esquerdo e, segundo informação dada por ela própria, perdesse a visão. Na ocasião, um professor universitário resolveu tornar pública sua opinião sobre o caso: ao celebrar a violência cometida, afirmou que “se for petista é uma boa notícia”. Nada mais distante do que as reações em relação ao caso envolvendo a repórter da TV Folha! Ainda que os dois fatos guardem enorme semelhança de fundo, entre Giuliana e Deborah parece haver um abismo que apenas três anos de diferença cronológica não são suficientes para explicar.
Dizer aqui que o ódio cega seria uma metáfora fácil e conveniente para descrever a situação. Mas, como tem ficado cada vez mais visível em nosso ambiente político, quem odeia parece enxergar muito bem, embora tenha dificuldades para ver o que está acontecendo.
* Fernando Nicolazzi é Professor do Departamento de História da UFRGS.
Creio que a lembrança ainda está viva na memória das pessoas. No dia 13 de junho de 2013, em pleno calor das manifestações de rua, que naquele momento ainda tinham por pauta o tema da mobilidade urbana e de outros modelos de cidade e de usos do espaço público – em uma palavra, o tema da cidadania –, a repórter da TV Folha Giuliana Valllone foi gravemente ferida no olho por conta de uma bala de borracha disparada pela tropa de choque da polícia militar paulista. O fato ocorreu na rua Augusta, em São Paulo e, segundo a repórter, o policial, que estava a cerca de 20 metros de distância, mirou e efetuou o disparou em sua direção. A intenção de ferir estava patente.
O episódio teve grande repercussão nacional e a recorrente violência policial contra manifestações sociais pacíficas passou a ser questionada, inclusive por empresas de comunicação que costumeiramente se mostram, se não abertamente favoráveis, ao menos veladamente coniventes com ela. Obviamente, Giuliana não foi a única vítima da brutalidade policial, mas seu caso se tornou mais evidenciado muito em função da sua atividade profissional e da empresa para a qual estava trabalhando. No mesmo dia, o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, que também fazia a cobertura dos protestos, parou durante alguns instantes para ajustar sua câmera, quando foi atingido no olho por outra bala de borracha. O ferimento foi de tal gravidade que Sérgio teve que colocar uma prótese onde antes estava seu globo ocular.
Aquela irresponsável e injustificável violência policial serviu de combustível para inflamar ainda mais os protestos de rua, que haviam começado alguns meses antes em cidades como Porto Alegre e Florianópolis e se espalharam por outros diversos espaços urbanos em todo o Brasil. A pauta original, com um caráter eminentemente positivo, passou a dividir espaço com outras demandas mais difusas e de mais difícil compreensão. A demanda social para o aprimoramento de nossa precária cidadania se viu acompanhada por uma outra forma de descontentamento que, na falta de uma formulação política mais precisa, encontrou amparo em uma espécie de raiva latente que talvez poucos conseguiram perceber sua existência antes que tomasse formas nas ruas. Nem a imagem pouco simpática do pato amarelo que mais tarde passou a fazer parte da paisagem escondia a cólera que era sentida e salivada pelas gentes de bem.
Não é preciso ser um grande estudioso para entender que uma população enraivecida acaba por se tornar um terreno fértil para se cultivar o ódio social. E foi justamente isso que setores importantes de nossa sociedade, das velhas entidades empresariais até novos movimento originados nas redes sociais, passando pelas organizações de sempre, como grandes meios de comunicação ou setores do judiciário e da esfera religiosa, da indústria e do agronegócio, acabaram por realizar: em um esforço habilmente conduzido, mesmo que eticamente condenável, conseguiram canalizar toda aquela raiva difusa, transformando-a no ódio a um alvo específico: o petismo, com todas as suas variantes não conceituadas (lulo-petismo, dilmismo, esquerdismo, comunismo, bolivarianismo, feminismo, chavismo, castrismo, guevarismo e tantas outras palavras esvaziadas de sentido, mas incessantemente utilizadas nos mais diversos espaços). Não custa recordar: no editorial de 13 de março de 2016, o jornal O Estado de São Paulo ecoou o “basta!” de 1964 e, ao falar em nome da moral da “família indignada” brasileira, chamou de “matilha de petista e agregados” todos aqueles que, partidários ou não, defendiam o regime democrático no Brasil.
Três anos depois que Giuliana teve seu rosto atingido e Sérgio perdeu o seu olho, o golpe de Estado que depôs a presidenta eleita Dilma Rousseff foi consumado. É certo que ele teve seus atores principais e seus coadjuvantes, alguns mais estridentes girando bandeiras em discursos sobre cobras, outros mais discretos, com a discrição que a toga impunha. Todos partícipes, no entanto, buscando seu lugar no golpe. Como neste caso o gesto autoritário não contou com o protagonismo direto das forças armadas (embora a proteção da polícia militar tenha sido fundamental), resta a curiosidade de quem será o bode expiatório no futuro. Ou seja, sobre quem pairará a culpa pelo colaboracionismo civil desta vez. Como se sabe, nossa memória democrática se assenta em invenções deste tipo.
De todo modo, o palco onde toda a peça foi encenada tinha por alicerce principal aquela raiva latente, transmutada em ódio cuidadosamente cultivado desde alguns anos antes. Um ódio que poderia ser definido como ódio de classe, de gênero, de raça ou de tantas outras formas de ódio, já que parte de nossa sociedade sempre foi primorosa em diversificar a qualidade e a quantidade das suas aversões. Não importa, contudo, o epíteto que se agrega a este sentimento: depois que naturalizado, ele jamais poderia transformar nossa sociedade em algo melhor. Nosso cotidiano tem dado mostras em demasia disso, seja nas ruas, nas páginas dos jornais, nas redes sociais ou em grupos de telefone.
Em agosto de 2016, a justiça achou justo considerar o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva culpado por ter perdido o olho durante a cobertura jornalística dos protestos ocorridos três anos antes. Segundo argumento dos advogados de defesa do Estado de São Paulo, contra quem Sérgio abriu pedido de indenização, sua profissão não dependia da “visão binocular”; logo ele, um fotógrafo! Na sentença, o juiz Olavo Zampol Júnior afirmou que o pleiteante “voluntária e conscientemente assumiu o risco de ser alvejado por alguns dos grupos em confronto (polícia e manifestantes)”, complementando em seguida que “não se está a falar de exercício regular de direito ou estrito cumprimento de dever legal na atuação do agente público, mas de culpa exclusiva do autor, pelas condições em que os fatos se deram”. Só faltou cobrar de Sérgio indenização pelo estrago que seu olho causou na bala de borracha, comprada com dinheiro público.
No mês seguinte ao da decisão judicial, a manifestante Deborah Fabri participava em São Paulo de um ato contra o golpe, que já estava a galope, quando uma bomba lançada pela polícia atingiu seu rosto, fazendo com que um estilhaço perfurasse o olho esquerdo e, segundo informação dada por ela própria, perdesse a visão. Na ocasião, um professor universitário resolveu tornar pública sua opinião sobre o caso: ao celebrar a violência cometida, afirmou que “se for petista é uma boa notícia”. Nada mais distante do que as reações em relação ao caso envolvendo a repórter da TV Folha! Ainda que os dois fatos guardem enorme semelhança de fundo, entre Giuliana e Deborah parece haver um abismo que apenas três anos de diferença cronológica não são suficientes para explicar.
Dizer aqui que o ódio cega seria uma metáfora fácil e conveniente para descrever a situação. Mas, como tem ficado cada vez mais visível em nosso ambiente político, quem odeia parece enxergar muito bem, embora tenha dificuldades para ver o que está acontecendo.
* Fernando Nicolazzi é Professor do Departamento de História da UFRGS.
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