sábado, 29 de julho de 2017

As digitais da Volks nas torturas da ditadura

Por Marcelo Auler, em seu blog:

As promíscuas relações da então maior empresa privada da América Latina, a Volkswagen do Brasil – primeira filial fora da Alemanha, instalada em São Bernardo do Campo (SP), em 1959 – com a ditadura civil-militar instaurada no Brasil em 1964 vieram a público. Não tanto no Brasil, palco e alvo destas relações, mas com bastante repercussão na Alemanha. Lá, um canal público de TV lançou o documentário, que já tem versão em português: “Cúmplices? A Volkswagen e a ditadura militar no Brasil“.

A partir da saga de Lúcio Antônio Bellentani, operário da Volks e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que em 1972, aos 27 anos, foi preso às 23h30, na ferramentaria (Pavilhão 8) da fábrica de São Bernardo do Campo, o filme narra o envolvimento da empresa e seus diretores – notadamente o Departamento de Segurança Industrial, comandado por militares brasileiros -, com a repressão política.

Preocupada com as consequências destas revelações, a multinacional alemã contratou o historiador Christopher Kopper da Universidade de Bielefeld, para investigar tais relações. A surpresa maior é que antes de concluir seus trabalhos, Kopper, ao documentário, admitiu o que os antigos diretores da empresa tentam a todo custo negar:

“Estou muito seguro sobre a segurança industrial da Volkswagen. Como a ditadura, ela usava quaisquer meios para perseguir comunistas em particular. Existia uma cooperação regular entre a segurança industrial da VW e as forças policiais do regime. Quando, por exemplo, no banheiro ou no vestiário, era encontrada uma publicação comunista proibida, a segurança industrial não se limitava a registrar isso. Ela denunciava à polícia política“, explica. (33m40′ do filme)

O documentário da TV alemã mostra o desinteresse da imprensa brasileira com a história contemporânea do Brasil. Sem demérito do trabalho dos jornalistas alemães Stefanie Dodt, Thomas Aders e Thilo Guschas, principalmente nas pesquisas junto à matriz da Volks, em Wolfsburg, muito do que o filme mostra foi apurado no Brasil.

Há algum tempo o IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), entidade criada por militantes de diversas organizações, em cooperação com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), juntou dados e promoveu depoimentos de vítimas da Volks no Brasil que denunciaram as digitais dela na repressão política no Brasil.

A partir da coleta destas informações o IIEP representou junto ao Ministério Público Federal de São Paulo contra a Volkswagen gerando um inquérito civil (IC 1.34.001.006706/2015-26). Ele é presidido pelo Procurador Regional de Direitos do Cidadão, da Procuradoria da República de São Paulo, Pedro Antônio de Oliveira Machado. E tem a parceria da promotora de Justiça de Direitos Humanos/Inclusão Social do Ministério Público Estadual de São Paulo, Beatriz Helena Budin Fonseca. Os dois investigam se a Volks entregou seus empregados aos órgãos de repressão, que os torturaram. Os estudos e levantamentos feitos pelo IIEP demonstram que sim. O historiador Kopper também já se convenceu disso.

A própria Volks, ainda que diga que é preciso concluir o trabalho de Kopper, sabe que suas digitais foram encontradas nessa relação promíscua.

Seu antigo historiador, Manfred Grieger, que esteve no Brasil em 2014, ao admitir tais fatos, propôs que a empresa procurasse Bellentani e se dispusesse a construir um memorial como forma de reparar os danos e erros cometidos. Além de não lhe darem ouvido, tentaram limitar suas pesquisas às autorizadas pelo Conselho de Administração da empresa. Ele demitiu-se em 2016, mas por força do acerto na rescisão do contrato, está impedido de falar o que sabe.

Somente depois Kopper foi contratado. Este, como narra o documentário alemão, “de aparentemente inofensivo historiador, tornou-se um acusador”.

A história de Bellentani está registrada em diversos depoimentos. Foi preso, dentro da fábrica, às 23h30 de uma sexta-feira. Policiais do DOPS entraram na linha de montagem com metralhadoras sob a vista do gerente do Departamento de Segurança Industrial, o coronel do Exército Ademar Rudge o qual, com uma arma na mão, segundo o depoimento de Bellentani, tudo assistia de longe. Ainda dentro da fábrica, no Departamento de Recursos Humanos, então chefiado por Jacy Mendonça, começou a ser torturado.

No documentário alemão, Mendonça e o ex-presidente do Grupo Volks, Carl Hahn, que como diretor de vendas da matriz em Wolfsburg vinha ao Brasil com constância por participar do conselho de administração da filial, negam a presença da polícia – em especial a política, do DOPS e do DOI-CODI – dentro da fábrica. Aliás, Mendonça nega até que o Brasil tenha vivido uma ditadura e enaltece o período no qual os militares se apossaram do poder pelas armas.

A versão de Bellentani é outra e confere com a de diversos antigos trabalhadores da montadora alemã:

Desde que se instalou no Brasil a Volks sempre teve na gerência de Segurança Interna um militar do Exército que falasse fluentemente alemão – a língua utilizada entre os diretores. O primeiro a ocupar o cargo de 1959 a 1969 foi o general da reserva Alcides Carneiro Castro da Silva que criou todo o grupo de segurança interna na fábrica.

Há uma grande confusão na história da fábrica sobre o papel do nazista Franz Stangl, criminoso de guerra, responsável por dois campos de concentração nazistas e como tal, condenado pelo assassinato de mais de 400 mil judeus. Ele foi preso, em março de 1967, pelo DOPS paulista, quando trabalhava na Volkswagen com sua identidade original. Julgado na Alemanha, foi condenado à prisão perpétua. Morreu na cadeia.

Acostumado a prender oposicionistas ao regime militar, o delegado civil José Paulo Bonchristiano, então chefe da Divisão de Ordem Política do DOPS, estranhou ao cumprir o mandado de prisão expedido a pedido da Interpol. Afinal, o alvo, como definiram diretores da Volks na época, “era um dos nossos”.

Mas, a prisão de Stangl foi comemorada pelo então governador paulista, Abreu Sodré, como mostra a reportagem da Folha de S. Paulo de 02 de março de 1967. Nela, escondeu-se o nome da Volks – maior fábrica da América Latina – e se alegou que o austríaco vivia com nome trocado, o que na verdade não ocorreu.

Olho sensível e olho cego – Tampouco é verdade, como noticiou, na quinta-feira (27/07), o Estado de S. Paulo em matéria de Genebra, assinada pelo seu correspondente Jamil Chade – Volkswagen no Brasil ‘desconhecia’ passado nazista de funcionário, diz historiador – que Stangl fosse responsável pela segurança interna da empresa e pela interligação com os órgãos de repressão. Mas, é pouco provável que os alemães, que tudo sabiam e a todos vigiavam, não soubessem do seu passado como Chade diz ter concluído o historiador Kopper.

Embora até já se tenha falado na imprensa brasileira sobre a prisão de Stangl, a grande repercussão pelo fato de um carrasco nazista procurado pelo governo Alemão e Austríaco (nacionalidade dele) ter trabalhado na Volks está ocorrendo agora, na Alemanha. Curiosamente, por uma iniciativa da TV Pública local. Ao divulgar que um criminoso de guerra, com sua identidade original, trabalhava na Volks do Brasil, cujo Departamento de Segurança Industrial tinha o hábito de repassar nomes de operários ligados a atividades oposicionistas aos governos militares, o próprio documentário alemão questiona:

“Um olho esquerdo demasiado sensível e cego do olho direito?”

Mais curioso ainda é o fato, ressaltado no documentário alemão, que ao mesmo tempo em que a Volkswagen mandava relação de empregados oposicionistas ao regime militar para os órgãos de repressão – e eles acabavam presos e torturados, como ocorreu com Bellentani – no caso do nazista preso por crimes de guerra, a empresa pagou até advogado para defendê-lo.

O envolvimento do Departamento de Segurança Industrial com órgãos de repressão está comprovado por uma quantidade enorme de cartas e ofícios da Volks que as pesquisas do IIEP junto com a C0missão da Verdade localizaram em arquivos do DOPS. São relações de empregados “suspeitos”, fotografias dos mesmos e até de ex-empregados, que acabaram presos e torturados, como Bellentani narrou ao Blog, definindo esse departamento como uma extensão dos órgãos de repressão do governo.

Cinismo e negativa

O coronel Rudge, com 91 anos, foi ouvido pelo procurador Machado e pela promotora Beatriz Helena no bojo do Inquérito Civil que eles tocam. Negou tudo, mesmo diante de evidências documentais. Segundo seu depoimento, a história e sofrimento de Bellentani seria uma farsa, pois jamais houve prisão dentro da fábrica, como ele afirma no vídeo [aqui] que editamos, retirando comentários repetitivos.

Pesquisas junto aos arquivos do DOPS e também na própria Volks mostraram a troca de correspondências contumaz. Documentos da Volks foram encontrados nos arquivos do DOPS assim como ofícios do DOPS estavam na Volks. Ainda no documentário, a desmentir Rudge, o ex-delegado do DOPS, Bonchristiano, como diz a narradora, “confirmou as suspeitas de que a VW e os militares eram cúmplices“. Para ele , membro da equipe do torturador Sérgio Fernando Paranhos Fleury, a relação era de proximidade. Ao que parece, na verdade, era de promiscuidade:

“Quando a gente pedia, eles faziam o que a gente determinava. Eu pedia uma procura de alguém que eu estava querendo e eles me falavam onde estava. Assim, coisa de proximidade“.

Mesmo diante de documentos com a sua assinatura, o coronel continuou negando peremptória e insistentemente esse envolvimento da Volks- e do departamento que gerenciava – com a repressão política no Brasil. Inclusive a participação da empresa em reuniões no então Comando do II Exército, hoje Comando Militar do Sudeste, que documentos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) relatam terem ocorridos com a participação dos representantes dos setores de segurança interna de diversas empresas. Entre ele, Rudge.

A Volks, segundo pesquisas feitas para a Comissão Nacional da Verdade, coordenava um grupo de empresários que financiavam as atividades dos órgãos de repressão. Também doavam carros para as instituições – o “Fusca” para o DOI-CODI, enquanto a Chevrolet doava Veraneios para o DOPS. Facilitavam, ainda, a compra de carros pelos militares e policiais. Mas Rudge negou por diversas vezes, como mostramos no vídeo [aqui] que também editamos retirando repetições:

“Chiqueirinho” – Os conselhos a que se refere o procurador Machado funcionavam levando as empresas a criarem lista negras de empregados, ou seja, relação daqueles que estavam “queimados” por atividades ou simples participação política. Em consequência, eram barrados ao procurarem uma ocupação.

Mas, na Volks, as atrocidades ainda eram maiores. Servidores eram mantidos presos, segundo depoimentos de diversos empregados. A expressão usada era “mantidos em castigo”. Na realidade, ficavam em uma sala do setor de segurança, às vezes por dias, tolhidos no direito de ir e vir. No filme um dos operários ouvidos – José da Costa, o Zé Costa (31min46′) – denuncia, inclusive, ter sido interrogado dentro da empresa, como se fosse uma delegacia policial.

O assunto foi levantado no depoimento do coronel Rudge pela promotora dos Direitos Humanos e Inclusão Social do MPP de São Paulo, Beatriz Helena mas, como fez o tempo todo, o militar negou a existência de tais salas, como se constata no vídeo [aqui] que editamos.

Não foi o único a desmentir informações que os documentos comprovam. Em Wolfsburg, a equipe do documentário localizou correspondência da filial brasileira para a matriz da Volkswagen (36min) informando a prisão de pelo menos cinco dos seus empregados por atividades “comunistas subversivas” como demonstra a ilustração ao lado. Mas, mesmo diante de tais provas, o ex-presidente do Grupo Volks, que participava do Conselho de Administração da Volks brasileira, Hahn, diz que nunca tinha ouvido falar das prisões nem visto o documento que comunicou à diretoria da empresa na Alemanha tais prisões (36min30′).

Sem falar que no final da década de 70, Devanir Ribeiro, empregado da Volks e diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, foi a um Congresso do Sindicato Alemão, no Congress Park, em Wolfsburg (Alemanha) cobrar uma posição da diretoria da empresa, cujo presidente na época era Toni Schmücker (37min):

“Na empresa, é você quem manda. Então como prender trabalhadores dentro da fábrica? Com qual motivo? Qual a razão? Quem autorizou?”, cobrou o sindicalista brasileiro.

“Não, porque o regime é forte, o regime militar é quem manda“, desconversou Schmücker, segundo Ribeiro.

As provas que estão sendo anexadas ao Inquérito Civil são contundentes, mas o procurador Machado ainda quer juntar mais elementos para poder propor a multinacional um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

Isto, apesar de afirmar no vídeo que as informações levadas pelos ex-empregados serem muitas. Além da farta documentação já juntada ao Inquérito.

No documentário revela-se o medo da Volks em perder milhões em indenizações. Mas, no caso de Bellentani ele garante não querer dinheiro, apenas que se restabeleça a verdade. O próprio Kopper reconhece que os antigos trabalhadores da Volks estão à espera há anos de uma explicação, mas “não há um sinal de boa vontade” por parte da empresa. Foi a oportunidade para Bellentani mandar um recado a empresa e seus diretores. Se ele será acatado ou não, o tempo dirá:

“Seja honesto! Seja honesto, pelo menos uma vez na vida!”

Ainda sobre a participação das empresas na ditadura brasileira recomendo a leitura: Indústria química e ditadura, de Thomaz Ferreira Jensen.

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