Foto: José Cruz/Agência Brasil |
Mesmo num governo que é uma permanente fonte de indignação por parte dos brasileiros, a começar pela origem ilegítima, o desempenho da ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois chama a atenção por uma razão particular.
Num país onde a condição da mulher negra é uma tragédia social reconhecida pelas estatísticas e pelas cenas da vida cotidiana, na qual enfrenta a dupla opressão como mulher e como negra, em vez de ajudar no combate necessário ao preconceito e à discriminação, o comportamento da ministra apenas contribui para reforçar o que deveria ser eliminado e enfraquecer o que deveria ser fortalecido. Este é o aspecto lamentável do caso recente em que Luislinda Valois se envolveu.
No lugar de somar-se à repulsa interna e externa contra uma portaria do governo Temer que flexibiliza regras para punição ao trabalho escravo, como seria o dever de todo cidadão brasileiro, em particular da população afrodescendente, que chegou escravizada ao país, descobriu-se que a ministra de Direitos Humanos estava ocupada em reivindicar -- para si -- vencimentos mensais de R$ 61.400, 80% acima do teto legal para funcionários do Estado.
Só para se ter uma ideia do que vem a ser isso no país onde Luislinda Valois tem emprego de ministra e é desembargadora aposentada pelo Tribunal de Justiça da Bahia. Conforme dados do IPEA/2015, a quantia equivale a 59 vezes a renda média mensal de uma mulher negra no mercado de trabalho, que lhe reserva ocupa o andar mais baixo da escala salarial. No primeiro degrau acima, o homem negro recebe 50% a mais; dois andares acima, a mulher branca embolsa 70% a mais; no topo da pirâmide, o homem branco recebe 150% a mais do que a mulher negra.
Os R$ 61.400 solicitados pela ministra também representam um estouro de mais de 80% teto máximo constitucional. Outro ponto chocante é que, para cobrar tamanho reforço nos vencimentos, impensável na penúria geral da maioria dos brasileiros, a ministra foi capaz de colocar-se na posição daquele cidadão que trabalha sem rendimento algum -- justamente sob a condição "análoga à escravidão" que o governo Temer tenta proteger.
Alegando que o teto de gastos lhe impedia de receber o salário integral de ministra, pois já era quase inteiramente atingido pela aposentadoria de desembargadora -- equivale a 23 vezes à média aquilo que recebe um aposentado comum -- escreveu que " o trabalho executado sem a correspondente contrapartida, a que se denomina remuneração, sem sombra de dúvida, se assemelha a trabalho escravo". Mais tarde, numa entrevista, referindo-se ao vencimento atual, de R$ 33 700, alegou que era suficiente para ficar em casa "de chinelinho". Mas perguntou: "como é que eu vou comer? Como é que vou beber? Como é que se vai calçar?"
Pode-se reconhecer que o pleito monetário de Luislinda não é original. O esforço permanente de uma parcela de integrantes do Judiciário e outras fatias da cúpula do Estado para encontrar atalhos para estourar o teto salarial constitui uma praga conhecida.
Também se pode opinar que a reação fora do comum gerada pelo caso específico de Luislinda Valois tem origem, ao menos em parte, na condição de mulher e negra. Me parece indiscutível.
Nada disso justifica, contudo, um pleito fora de qualquer medida, com base na contabilidade do "chinelinho" acessível para quem recebe R$ 33 700 mensais. Em fevereiro, quando sua nomeação foi anunciada, descobriu-se que o Planalto tentara enfeitar o currículo da nova ministra com uma fantasia -- o título de embaixadora da Paz da Organização das Nações Unidas em 2002, honraria que nem existe nos estatutos da ONU. Mais comprometedor ainda, o título lhe foi conferido pela Federação da Paz Universal, uma ONG fundada pelo bilionário sul-coreano Sun Yung Moon, conhecido em todo mundo como reverendo Moon (1920-2012), patrocinador de causas de extrema-direita e alvo frequente denúncias de sonegação fiscal.
A nomeação de Luislinda para o ministério buscava atingir um componente simbólico evidente para compensar um dos muitos desfalques de legitimidade do governo Temer. Num ministério denunciado desde o primeiro dia como um governo de homens brancos, ela representou uma tentativa dar um lustro na imagem da coalizão golpista. Numa sociedade que trava uma luta necessária e difícil contra o racismo e a opressão feminina, o comportamento da Luislinda Valois só contribui para reforçar estereótipos que enfraquecem a luta dos mais sofridos e mais pobres para erguer a cabeça e defender seus direitos.
Mesmo reconhecendo que nada se pode esperar dos integrantes do governo Michel Temer em qualquer questão de interesse do povo, este é e sempre será o foco de atenção sobre sua atuação, até porque se trata da ministra dos Direitos Humanos.
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