Por Felipe Mascari, na Rede Brasil Atual:
O cenário internacional do futebol vive seu momento de maior turbulência. Cercado de denúncias, como a compra de votos do Catar para sediar a Copa do Mundo de 2022, ou de propinas pagas por emissoras de televisão, incluindo a Rede Globo, para transmissões do evento da Fifa, o torcedor é a principal vítima dessa estrutura corrompida do esporte. É o que aponta o jornalista especializado na cobertura internacional e autor do livro Política, Propina e Futebol (Cia das Letras, 2015), Jamil Chade.
"Quando não se sabe que isso acontece, você vai ao estádio para torcer, acreditando que tudo o que acontece é legítimo, do resultado ao árbitro escolhido. Na verdade, as investigações mostram que o torcedor foi enganado", afirma Jamil, em entrevista exclusiva à RBA.
Chade conta que investigações nos Estados Unidos mostram que a corrupção no esporte mais popular do mundo é algo presente há 25 anos, no minimo. Ainda de acordo com ele, é bem possível que tal crime pode ter entrado para as quatro linhas do gramado, com influência em resultados.
Ele também chama a atenção para os cúmplices que formam a estrutura corrupta do futebol, como os bancos, empresas multinacionais e autoridades. "Falar que o mal do futebol é cartolagem, é ignorar a indústria do futebol que é mais ampla", afirma.
Um dos casos mais comentados recentemente foi o depoimento de Alejandro Buzarco, ex-executivo da companhia de marketing argentina Torneos y Competencias S.A, na qual afirma que a Rede Globo e outras emissoras pagaram propina pelos direitos de transmissão das Copas de 2026 e 2030. Segundo o jornalista, as acusações não descartam outros casos de corrupção sobre os torneios nacionais.
"Se houve o pagamento de propina num evento como a Copa do Mundo, a gente pode imaginar que a mesma estrutura existia para outros torneios. Tanto é assim, que o próprio ex-presidente da CBF José Maria Marin é julgado pela venda de direitos da Copa do Brasil", aponta.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
As delações do caso Globo e Fifa falam que a emissora pagou propina para transmissão das Copas de 2026 e 2030. Porém, em seus relatos, houve o mesmo crime nas Copas de 2002 e 2006. Uma prática antiga?
A denúncia foi feita pelos procuradores suíços em um processo contra João Havellange, no caso da ISL, a empresa que tinha os direitos de marketing da Copa do Mundo pela Fifa. Não é a primeira vez que o nome da Globo aparece. Já apareceu em um outro processo na Suíça e, agora, surge pela segunda vez através da declaração de uma testemunha, no caso que tramita nos Estados Unidos.
Com esse caso da propina, alguns partidos estão exigindo represálias à Globo. O governo brasileiro tem obrigação de investigar as denúncias? Há alguma coisa que possa ser feita em território nacional?
Sim, deve ser feita a investigação, que seria pelo Ministério Público ou a Polícia Federal. Agora, existe uma questão de que a declaração de uma testemunha, em outro país, seja suficiente para abrir um processo.
A história é muito relevante, precisa ser apurada, mas o caminho é complicado, já que o Brasil não coopera com os Estados Unidos neste caso Fifa. Desde 2015, uma decisão de uma juíza do Rio de Janeiro impediu a troca de informação entre brasileiros e americanos. De todos os países implicados nesta história, o Brasil é um dos únicos que não ajuda.
Então, se essa cooperação ainda for liberada, uma das coisas que o Brasil poderá fazer é pedir as informações para que se possa alimentar um processo em território nacional. Vale lembrar que o processo que ocorre nos Estados Unidos não é só contra o Marin. Na verdade, está sendo julgada a estrutura de poder do futebol brasileiro.
A própria defesa do Marin coloca a questão de forma mais ampla, mostrando uma estrutura suspeita de corrupção nos últimos 30 anos. Por isso, essas informações são importantes, colocando também o (presidente da CBF) Marco Polo Del Nero, o (ex-presidente da CBF) Ricardo Teixeira e a Rede Globo.
Se há denúncias envolvendo a compra direitos das Copas, pode-se imaginar que o mesmo aconteça nos torneios domésticos. Quanto essas denúncias comprometem o futebol brasileiro?
Se houve o pagamento de propina num evento como a Copa do Mundo, a gente pode imaginar que a mesma estrutura existia para outros torneios. Tanto é assim, que o próprio Marin é julgado pela venda de direitos da Copa do Brasil. Então, de uma forma clara, essa corrupção atinge a estrutura internacional e também atinge o cenário doméstico.
Em seu artigo no El País, você diz que essas denúncias revelam o lado escondido do futebol, como ele é de verdade. Quando esse obscurantismo tomou conta do esporte?
Muita gente desconfiava, mas só agora estamos descobrindo esse lado. Os americanos dizem que a estrutura existe há 25 anos pelo menos. Desde os anos 90, isso era realidade. Esse lado pode ter existido antes, mas o movimento do dinheiro no futebol, com a chegada das televisões, do marketing e da estrutura de exploração aos direitos de imagem do esporte fizeram aqueles que controlavam o futebol enxergarem uma maneira de enriquecer.
Portanto, a partir dos anos 90, os “donos” do futebol começaram a cobrar pedágio para quem quisesse fazer parte dessa indústria. A Conmebol, a CBF e demais federações viram que o esporte cresceria. Então, de uma forma sistemática e generalizada, há a presença da corrupção a partir daí.
Você fala que as investigações rondam o marketing esportivo e direitos de imagem. Há alguma chance de elas chegarem dentro de campo?
Esta investigação nos Estados Unidos, por enquanto, não mostra. Porém, não quer dizer que esses casos não ganhem novos capítulos, porque parte das gravações e informações coletadas mostram que, por exemplo, o presidente da AFA, Julio Grondona, chegava a escolher o árbitro dos jogos. Então, se ele tinha essa liberdade, obviamente havia um interesse por trás disso.
Você tem indícios claros de que, sim, a investigação aponta que havia corrupção e irregularidades não só fora do campo. Dentro das quatro linhas, os dirigentes também influenciaram de alguma forma nos resultados.
Após tantas denúncias contra a CBF, o torcedor deixa de se ver representado pela camisa da seleção? O quanto isso afeta essa paixão?
O torcedor é a vítima. Quando você não sabe que isso acontece, você vai ao estádio para torcer, acreditando que tudo o que acontece é legítimo, do resultado ao árbitro escolhido. Na verdade, as investigações mostram que o torcedor foi enganado.
Para dar um exemplo, o jogo acontece em uma hora do dia, não porque ele atende o interesse do torcedor, mas sim dos parceiros de marketing e da televisão. O jogo não acontece em um estádio para satisfazer o adepto, mas para atender um interesse político e econômico.
O próprio dinheiro que circula no futebol, que vem originalmente do torcedor, não vai apenas ao futebol, mas para contas secretas na Suíça, Andorra, Mônaco e Caribe. Ou seja, sem saber, o torcedor enriquece esses dirigentes. Quando você é enganado dessa forma, a decepção é óbvia. Você não está falando só do Marin, está mostrando como a torcida foi enganada.
É importante lembrar que, mesmo após uma eventual conquista (pelo Brasil) na Copa de 2018, a pressão não pode ser reduzida. Com essa estrutura montada, os dirigentes só ganharão ainda mais com a seleção indo bem. É importante torcer, mas é preciso lembrar que os adversários não estão em campo: eles são os donos da seleção brasileira hoje.
Falando sobre a Copa de 2018, há alguma denúncia sobre essa edição? E como está a situação do torneio de 2022, no Catar?
Tem, mas na investigação feita sobre a Copa de 2018, a Rússia destruiu todos os computadores com os dados desse processo. A investigação quase não existiu, já que não teve colaboração da Rússia.
A realidade é essa: as evidencias de como foi preparada a campanha da Rússia de 2018 foram destruídas. Por que se destrói um computador com provas?
Já no Catar há uma discussão que ainda está acontecendo. A Fifa diz que vai ser no Catar e ponto final. Porém, ao mesmo tempo, há um número maior de informação apontando para questões reais sobre o Catar.
Eu publiquei, em outubro, uma notícia que mostrava que uma conta do Ricardo Teixeira, em Mônaco, tinha transações do Catar. O Grondona foi denunciado por receber também dinheiro de lá. Na minha opinião, se depender da Justiça, essa Copa é um ponto de interrogação.
Na sua opinião, após as investigações, há alguma chance da Copa do Mundo e a Globo caírem em descrédito?
Isso é uma consequência natural do processo. O próprio mundial está sendo questionado. Nos últimos dois anos, a Fifa teve prejuízo financeiro, sem lucro. De uma certa forma, a estrutura está sentindo um efeito.
Sobre as televisões, não há um debate na Fifa sobre rever os contratos. Há as denúncias, não é nada novo. Então, se nada foi feito sobre as emissoras de televisão em geral, é porque convém.
Tem outro aspecto que precisa ser olhado de perto: os dirigentes esportivos não são os únicos atores. É importante descobrir quem são os cúmplices desse sistema. Nesse caso, os cúmplices não são só as televisões, são bancos, empresas multinacionais que fazem marketing na Copa do Mundo, políticos, autoridades de controles dos países onde o evento acontece. Então, falar que o mal do futebol é a cartolagem, é ignorar a indústria do futebol que é mais ampla.E esse processo dos Estados Unidos abre um debate para saber quem são os cúmplices deste futebol corroído.
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