A política de cortes do governo de Michel Temer, expressa na Emenda Constitucional 95, a “emenda do teto”, que congela o orçamento público por 20 anos, tem entre os seus alvos os programas voltados para a agricultura familiar, setor responsável por colocar comida na mesa do brasileiro. Segundo o agrônomo Luciano Mansor de Mattos, pesquisador da Embrapa e autor de um estudo sobre as consequências da austeridade no campo, o enfraquecimento e a extinção dessas políticas levarão ao aumento da violência, à volta do êxodo rural, ao empobrecimento no meio rural, além de reduzirem a produção de alimentos, comprometendo a segurança alimentar e nutricional brasileira.
De acordo com Mattos, o governo não anuncia o fim dos programas, mas age para “desidratá-los”. Seu estudo foi apresentado e discutido em sessão do “Observatório de Austeridade”, uma série de reuniões para debater os efeitos das políticas de ajuste fiscal promovida pela Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES), GT de Macro da Sociedade de Economia Política (SEP) e o Brasil Debate.
Dois dos programas mais ameaçados, alertou Mattos, são o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), conhecido como Merenda Escolar, a maior política de alimentação gratuita do mundo – que atende cerca de 38 milhões de alunos –, e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Criado por Getúlio Vargas, o PNAE foi mantido por 16 presidentes, inclusive os militares, o que faz dele um dos programas de Estado mais importantes do país. Mattos levantou dados via Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) que mostram que até outubro apenas 53,4% da dotação tinha sido empenhada ou paga, sendo que, desde 2000, a partir de quando os dados estão publicamente disponíveis, não houve nenhuma gestão que não tenha honrado a dotação anual.
Corte mais significativo e com grande potencial de desestruturação é o que atinge o PAA, criado no âmbito do Programa Fome Zero com o objetivo de promover o acesso à alimentação e o incentivo à agricultura familiar. O programa compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e destina-os à parcela da população sob risco alimentar e nutricional, à rede de assistência social e à rede pública e filantrópica de ensino. Ele tem o mérito de fortalecer redes regionais de comercialização, valorizar a agrobiodiversidade e a produção orgânica e agroecológica de alimentos, além de estimular o associativismo e o cooperativismo rural.
Houve redução drástica das dotações anuais de 2016 e 2017 do PAA, com efetivo pago, entre janeiro e outubro de 2017, de apenas R$ 5 milhões (quando o dotado é de R$ 330 milhões). O orçamento de 2018 prevê aproximadamente 0,12% do orçamento do programa em 2015, de R$ 609.360.875,00 (sobre esse dado, veja aqui). “Os valores revelam que o programa está virtualmente extinto”, disse Mattos.
O desmonte das políticas para a agricultura familiar, iniciado com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) assim que o Temer assumiu, seguiu com o fim da Ouvidoria Agrária Nacional, vinculada ao Incra, e atingiu ainda programas como Territórios Rurais, Territórios da Cidadania, Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pronater), Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), Programa Cisternas e Minha Casa Minha Vida Rural (PNHR).
As políticas destinadas ao financiamento e crédito da atividade de agricultura familiar também foram impactadas após o impeachment de Dilma. Pela primeira vez o Plano Safra da Agricultura Familiar (criado no primeiro governo Lula) terá estagnação orçamentária, em 2018/2019, e o crédito rural do Pronaf apresenta queda de recursos de 21% em relação à safra 2016/2017 e de 37% em comparação à safra 2017/2018.
“O que se observa é que, com o golpe parlamentar de 2016 e ascensão do governo ilegítimo, deixa de haver o reconhecimento da agricultura familiar como categoria produtiva”, afirma Mattos, que explica que a agenda da agricultura familiar nos governos anteriores, em especial os de Lula e Dilma, mostra que esta era tratada não somente como objeto de política social, mas também como ativa na economia nacional.
Os números justificam essa visão. Segundo o Censo Agropecuário 2006, diz o estudo, existem pouco mais de 4 milhões de estabelecimentos familiares, que ocupam 24,3% da área rural produtiva e participam com 87% da produção de mandioca, 70% do feijão, 67% do leite de cabra, 59% da carne suína, 58% do leite de vaca, 50% da carne de aves, 46% do milho (fonte de alimentação animal), 38% do café, 34% do arroz e 30% da carne bovina. Com isso, abastecem nada menos que 70% do mercado doméstico de alimentos.
Outros números que podem impressionar os que acham que nossa economia rural se restringe ao agronegócio: a participação da agricultura familiar brasileira no PIB está estimada em 3,42% e emprega 12,3 milhões (74,4%) das 16,5 milhões de pessoas que trabalham no campo.
Austeridade e barganha dos ruralistas
Da forma como vem sendo aplicada, a política de austeridade no campo atinge basicamente a agricultura familiar e deixa de fora dos “sacrifícios” fiscais os grandes produtores, responsáveis pelo agronegócio brasileiro. Segundo a economista Luiza Borges Dulci, doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ), também presente ao debate, “a bancada ruralista é a agremiação que melhor tem conseguido barganhar com o governo Temer”.
Ela enumerou uma série de “conquistas” dessa bancada no Congresso, hoje com mais de 200 parlamentares, que são ao mesmo tempo derrotas para os trabalhadores da agricultura familiar, para os que lutam por reforma agrária e pelos que buscam a demarcação de suas terras, como indígenas e quilombolas: a extinção da Ouvidoria Agrária, a CPI da Funai e do Incra, o desmonte da Funai, a regularização fundiária urbana e rural (Lei n. 13/465/2017, antes chamada de “MP da Grilagem”); a terceirização, a contrarreforma trabalhista e o PL da reforma trabalhista rural, a portaria do Ministério do Trabalho sobre trabalho escravo, estrangeirização das terras (PL 4.059/2012), a liberação de agrotóxicos (benzoato de emamectina), entre outras.
“O agronegócio é hoje um setor altamente tecnológico e inserido internacionalmente, mas com práticas de superexploração do trabalho e do meio ambiente”, afirmou. Luiza não tem dúvidas de que o que está por trás da ideia de austeridade, que esvazia as políticas sociais do campo, “é a luta de classes”. “(A austeridade) simplesmente não funciona: a dívida dos Estados é efeito e não causa da crise”.
Na mesma direção, Renato S. Maluf, do Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar, outro participante do debate, afirmou que uma medida extrema como a EC 95 – na verdade uma política fiscal determinada na Constituição, o que não existe em nenhum lugar do mundo –, “é irrealizável”. “Eles estão usando o sentido simbólico de austeridade para criar a possibilidade do balcão, de negociar ponto a ponto, por 20 anos”.
Os efeitos dessas medidas, no entanto, já se fazem sentir. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), citados por Mattos, dão conta de que os assassinatos no campo aumentaram 22% entre 2015 e 2016, período que registrou também elevação no número de tentativas de assassinatos, ameaças de morte, agressões e prisões.
Até junho deste ano já são 48 assassinatos no campo registrados, alta de 79% em relação ao período de janeiro a dezembro de 2016. Essa violência é causa direta da concentração da terra no país, onde grandes propriedades somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país (dados da Oxfam). “E ainda tem gente, mesmo na esquerda, que acha que o tempo histórico da reforma agrária acabou”, concluiu Mattos.
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