Por Alexandre Santini, no site Vermelho:
Durante 10 anos, meu pai dirigiu o Instituto Nacional de Câncer (INCa). Mais do que um hospital ali na praça da Cruz Vermelha, o INCa é uma instituição de atenção à saúde, ensino e pesquisa, extremamente complexa e responsável pela política de atenção oncológica em toda a rede do SUS. Eu não sabia de nada disso, mas acabei sabendo.
Durante 10 anos, meu pai dirigiu o Instituto Nacional de Câncer (INCa). Mais do que um hospital ali na praça da Cruz Vermelha, o INCa é uma instituição de atenção à saúde, ensino e pesquisa, extremamente complexa e responsável pela política de atenção oncológica em toda a rede do SUS. Eu não sabia de nada disso, mas acabei sabendo.
Nesse período, quase que semanalmente eu recebia telefonemas de amigos, conhecidos, amigos de amigos, algumas pessoas muito queridas, para conseguir uma ajuda, agilizar a marcação de uma consulta, adiantar alguém na fila da triagem, antecipar um determinado procedimento. E se isso era assim comigo, que nem médico sou, imagina com meu pai! Diz ele que passava parte importante do dia dando atenção a estas solicitações. Mesmo que nada pudesse ser feito a não ser seguir os procedimentos e protocolos estabelecidos pela rotina hospitalar, a simples escuta e diálogo com o diretor da instituição já era um alento para o paciente e seus familiares.
A dor e o desespero de quem convive com alguém próximo vítima do Câncer é algo inimaginável. O tratamento por si só já é algo invasivo, desconfortável, doloroso, mesmo quando há possibilidade de cura. Cada pessoa é singular na dor e no sofrimento. É sempre uma contradição para o sistema de saúde pública o fato da doença de cada um ser única, e do sistema ser universal, tendo como objetivo assegurar a saúde como direito de todos e dever do Estado. Como lidar, de forma igualitária, com tantas diferenças e especificidades de cada caso?
Quem já teve um filho, mãe, parente próximo, esperando por um procedimento médico no sistema público, e não desejou, pediu ou tentou “mexer os pauzinhos” para conseguir um atendimento mais ágil ou mais individualizado?
Quando eu li e ouvi sobre o episódio da reunião do Prefeito- bispo Crivella com os pastores, o oferecimento de passar na frente da fila das cirurgias de catarata, o “fala com a Márcia que ela resolve”, imediatamente me veio à mente as situações que vivi, por tabela, com meu pai na direção do INCa. Muita gente de esquerda, progressista, de ética inabalável, condenou o episódio e repeliu publicamente o bispo-prefeito nas redes. Alguns desejando e militando pelo seu afastamento por conta dos favorecimentos oferecidos. E de fato, não cabe defender o indefensável. Mas eu vi, entre os que criticaram o episódio do Crivella, pessoas que em algum momento já me procuraram pedindo ajuda para passar a si mesmo ou a alguém na frente, na fila do INCa ou em alguma outra fila.
E não se trata de comparar a situação de pacientes e suas famílias, movidos por dores e angústias em um sistema público de saúde deficitário, com a concessão de benefícios e facilidades a grupos específicos por parte de agentes públicos. São razões e objetivos completamente distintos. Mas o cerne da questão é o mesmo: a relação do cidadão e da sociedade com o Estado, no acesso a direitos básicos de cidadania. E neste ponto, grande parte da esquerda tem subestimado o imenso papel social que igrejas evangélicas neopetencostais cumprem hoje na base da sociedade, particularmente nas favelas e territórios populares da cidade do Rio de Janeiro, no sentido de mediar o acesso a direitos e criar laços de vínculo, escuta, afeto e inclusão.
Na ausência do próprio Estado, com o enfraquecimento do trabalho pastoral de base da igreja católica, o abandono progressivo da disputa destes territórios pelos partidos, sindicatos, movimentos sociais, criando certo contraponto ao controle pela força do tráfico e das milícias, lá estão os pastores e suas Igrejas provando que não existe espaço vazio na natureza nem na sociedade.
Para se realizar uma cirurgia de catarata, é necessário primeiro um diagnóstico médico que identifique a doença e encaminhe o paciente para o procedimento. É uma doença que acomete pessoas idosas. Não são poucos os idosos que perdem a visão progressivamente, passando anos nesta condição, sem se dar conta, ou sem condições mínimas de acesso ao próprio diagnóstico,que começa na própria casa, e na cabeça da própria pessoa, ao se dar conta – ou não – de que a visão está diminuindo. É aí que o pastor e a igreja passam na frente, ao dar uma atenção individualizada para aquela pessoa, marginalizada na família e na sociedade, e identificar nela necessidades e problemas de saúde, sejam físicos ou psicológicos. Que outra instituição realiza hoje esta mediação junto ao povo pobre de forma orgânica, sistemática e capilarizada no Brasil e em outros países?
Crivella é muito mais perigoso e nocivo pelo que ele encarna como projeto de poder de longo prazo do que por seus desmandos de alcalde desinteressado e inepto. Oferecer cirurgias de catarata e acelerar processos de obtenção de CNPJ e isenção de impostos para igrejas pode se configurar como crime de responsabilidade. Mas chega a ser coisa ingênua perto de negociações e facilidades que são oferecidas diariamente para bancos, empreiteiras e grandes empresas de comunicação, empresas de ônibus, etc.
O efeito reverso que toda esta história pode provocar no eleitorado popular e evangélico, com o qual as pontes e vínculos da esquerda são mínimos, e os dos pastores reunidos por Crivella são sólidos e estreitos, ainda não sabemos. Mas é possível supor que ao xingar e pedir o Fora Crivella, a estranha aliança formada pela esquerda da zona sul, a Globo e as famílias Marinho e Maia (a César, o que é de César) estejam reforçando junto a este eleitorado a imagem messiânica de um líder sensível à dor dos mais pobres, humilhado e ofendido, mas exaltado pelo Senhor. E assim seguimos, derrubando pontes e construindo abismos.
* Alexandre Santini é gestor cultural, dramaturgo e escritor, é diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, em Niterói (RJ) e autor do livro "Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina".
A dor e o desespero de quem convive com alguém próximo vítima do Câncer é algo inimaginável. O tratamento por si só já é algo invasivo, desconfortável, doloroso, mesmo quando há possibilidade de cura. Cada pessoa é singular na dor e no sofrimento. É sempre uma contradição para o sistema de saúde pública o fato da doença de cada um ser única, e do sistema ser universal, tendo como objetivo assegurar a saúde como direito de todos e dever do Estado. Como lidar, de forma igualitária, com tantas diferenças e especificidades de cada caso?
Quem já teve um filho, mãe, parente próximo, esperando por um procedimento médico no sistema público, e não desejou, pediu ou tentou “mexer os pauzinhos” para conseguir um atendimento mais ágil ou mais individualizado?
Quando eu li e ouvi sobre o episódio da reunião do Prefeito- bispo Crivella com os pastores, o oferecimento de passar na frente da fila das cirurgias de catarata, o “fala com a Márcia que ela resolve”, imediatamente me veio à mente as situações que vivi, por tabela, com meu pai na direção do INCa. Muita gente de esquerda, progressista, de ética inabalável, condenou o episódio e repeliu publicamente o bispo-prefeito nas redes. Alguns desejando e militando pelo seu afastamento por conta dos favorecimentos oferecidos. E de fato, não cabe defender o indefensável. Mas eu vi, entre os que criticaram o episódio do Crivella, pessoas que em algum momento já me procuraram pedindo ajuda para passar a si mesmo ou a alguém na frente, na fila do INCa ou em alguma outra fila.
E não se trata de comparar a situação de pacientes e suas famílias, movidos por dores e angústias em um sistema público de saúde deficitário, com a concessão de benefícios e facilidades a grupos específicos por parte de agentes públicos. São razões e objetivos completamente distintos. Mas o cerne da questão é o mesmo: a relação do cidadão e da sociedade com o Estado, no acesso a direitos básicos de cidadania. E neste ponto, grande parte da esquerda tem subestimado o imenso papel social que igrejas evangélicas neopetencostais cumprem hoje na base da sociedade, particularmente nas favelas e territórios populares da cidade do Rio de Janeiro, no sentido de mediar o acesso a direitos e criar laços de vínculo, escuta, afeto e inclusão.
Na ausência do próprio Estado, com o enfraquecimento do trabalho pastoral de base da igreja católica, o abandono progressivo da disputa destes territórios pelos partidos, sindicatos, movimentos sociais, criando certo contraponto ao controle pela força do tráfico e das milícias, lá estão os pastores e suas Igrejas provando que não existe espaço vazio na natureza nem na sociedade.
Para se realizar uma cirurgia de catarata, é necessário primeiro um diagnóstico médico que identifique a doença e encaminhe o paciente para o procedimento. É uma doença que acomete pessoas idosas. Não são poucos os idosos que perdem a visão progressivamente, passando anos nesta condição, sem se dar conta, ou sem condições mínimas de acesso ao próprio diagnóstico,que começa na própria casa, e na cabeça da própria pessoa, ao se dar conta – ou não – de que a visão está diminuindo. É aí que o pastor e a igreja passam na frente, ao dar uma atenção individualizada para aquela pessoa, marginalizada na família e na sociedade, e identificar nela necessidades e problemas de saúde, sejam físicos ou psicológicos. Que outra instituição realiza hoje esta mediação junto ao povo pobre de forma orgânica, sistemática e capilarizada no Brasil e em outros países?
Crivella é muito mais perigoso e nocivo pelo que ele encarna como projeto de poder de longo prazo do que por seus desmandos de alcalde desinteressado e inepto. Oferecer cirurgias de catarata e acelerar processos de obtenção de CNPJ e isenção de impostos para igrejas pode se configurar como crime de responsabilidade. Mas chega a ser coisa ingênua perto de negociações e facilidades que são oferecidas diariamente para bancos, empreiteiras e grandes empresas de comunicação, empresas de ônibus, etc.
O efeito reverso que toda esta história pode provocar no eleitorado popular e evangélico, com o qual as pontes e vínculos da esquerda são mínimos, e os dos pastores reunidos por Crivella são sólidos e estreitos, ainda não sabemos. Mas é possível supor que ao xingar e pedir o Fora Crivella, a estranha aliança formada pela esquerda da zona sul, a Globo e as famílias Marinho e Maia (a César, o que é de César) estejam reforçando junto a este eleitorado a imagem messiânica de um líder sensível à dor dos mais pobres, humilhado e ofendido, mas exaltado pelo Senhor. E assim seguimos, derrubando pontes e construindo abismos.
* Alexandre Santini é gestor cultural, dramaturgo e escritor, é diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, em Niterói (RJ) e autor do livro "Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina".
1 comentários:
Excelente análise. Percebam que nela está implícita uma crítica correta aos métodos políticos da esquerda como um todo, e principalmente do PT, que abandonou a ação política e social que realizava nas periferias, deixando o campo livre para a ação política, travestida de "amor cristão",aos vigaristas das igrejas pentecostais (vale esclarecer que nem todos os pastores dessas igrejas são vigaristas, desonestos intelectuais, muitos deles acreditam sinceramente estarem se empenhados em uma empresa de salvação de almas, inspiradas pelo amor a Jesus). O alerta para a forma como as pessoas, objetos dessas ações sociais manipulatórias, podem interpretar as denúncias contra o bispo-prefeito-vigarista é igualmente perfeito, pois tenderiam a serem vistas como mais um ato de perseguição contra os evangélicos, produzido um efeito político oposto ao pretendido.
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