Por João Roberto Martins, no site Carta Maior:
“Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”, disse, com sua alegada sinceridade, o então deputado e pré-candidato à Presidência da República, a 29 de junho de 2017, em entrevista coletiva em Porto Alegre. A frase pode servir de atalho para ingressar em sua complexa personalidade.
No verbete dedicado a seu nome na Wikipedia, Jair Messias Bolsonaro é definido como “militar da reserva e político brasileiro”. Saiu do Exército há 29 anos. O uso do presente do indicativo – “sou capitão” - funciona assim como artimanha discursiva, com o fim de se apresentar a seus apoiadores e eleitores como um soldado, com as qualidades ligadas a essa profissão. É possível que para os leigos esse posto soe como chefe ou comandante, alguém que está no domínio da situação. Na carreira castrense, é apenas o início de uma dura ascensão.
Ultimamente, já como candidato, Bolsonaro deu mais um passo: integrou o Exército a sua pessoa. “Nós do Exército” passou a ser com frequência o sujeito de suas respostas. Desnecessário dizer que apresentar-se como especialista na morte é o corolário de sua pele militar, ainda que raros sejam, na realidade, os oficiais que se definem por essa dúbia qualidade.
Bolsonaro é um mago das palavras, dos gestos e das performances. O ex-capitão é capaz de convencer seus seguidores que é justamente o contrário do que efetivamente é: espontâneo e sincero, um tanto rústico, mas honesto e íntegro em suas posições. Justamente o oposto do que se associa à figura do político brasileiro.
Como ele conseguiu trafegar durante os últimos 29 anos, no cipoal da vida parlamentar do país, com tais qualidades tão raras é um mistério, desde que abandonou o Exército, para se eleger vereador. Fez isso na esteira da popularidade que granjeou ao escrever à revista Veja uma carta contra a política de soldos do governo Sarney, o que lhe custou prisão disciplinar de quinze dias.
O capitão Bolsonaro formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) na turma de 1977, ingressando assim no Exército. Serviu em três grupos de artilharia de campanha, o último deles também paraquedista, já como tenente, o posto de entrada do que se chama no Exército de “oficiais subalternos”. Não se sabe bem se se destacou na curta carreira. A 22 de maio de 2017, a Folha de S.Paulo publicou trechos de sua fé de ofício, onde se dizia que ele era dono de “uma excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”.[ii]
A profissão militar não é terreno fértil para os homens com esses traços de caráter. A menos que haja uma guerra, é uma carreira de dura rotina, poucas recompensas, soldos limitados e mordomias quase inexistentes, exercícios diários e promoções extremamente regulamentadas. É quase impossível realizar-se financeira e economicamente nessa profissão, a não ser com idade já avançada. Bolsonaro estava no lugar errado.
A sua segunda pele começou a aparecer quando se insubordinou contra seus superiores e, como vimos, reclamou em público contra os baixos soldos, ganhando projeção que lhe garantiu o ingresso em outro mundo completamente diferente, esse sim propenso a ambições desmesuradas e ganhos econômicos seguros: a política. Hoje, embora se apresente como capitão “especialista em matar”, o candidato acumula 29 anos de uma profissão bem mais pacífica, contra 11 da carreira militar.
Na campanha eleitoral, a segunda pele de Jair Bolsonaro foi reforçada de várias formas, ao cercar-se de generais, a começar pela escolha do vice, ao visitar unidades policiais-militares para mostrar que é um deles e ao prometer “metralhar” seus adversários políticos, para ficar em poucos exemplos.
Feitas as contas, sua pele militar parece curta para esconder a realidade de um oficial que nunca conseguiu se sadaptar aos dois pilares da profissão castrense- a hiersqrquia e disciplina, o que lhe valeu o afastamento da ESAO, a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Não chegou nem perto da Escola de Comando e Estado-Maior, a ECEME.
Estudos recentes mostram que a identidade militar constroi-se sobre a noção de superioridade moral do oficial castrense diante do mundo civil e à suposta ausência nesse meio das mazelas em geral vistas como paisanas.[iii]
Ambicioso, Bolsonaro deu-se bem no mundo das práticas mais lamentáveis da política brasileira. Calculista, soube tirar lucro de sua fama de rebelde. Demagogo, insistiu no discurso cheio de frases bombásticas, horríveis para muitos, mas que soam como música para o público a que se dirigem. Camaleão, vestiu a indumentária de nove sucessivas agremiações partidárias.
Infelizmente, em três décadas, a hierarquia do Exército não cuidou de afastar-se de forma mais eficaz do bem-sucedido político. Ao contrário, ele sempre pareceu bem-vindo nas formaturas de sua alma-mater, a AMAN, mesmo que estivesse longe de propiciar aos jovens cadetes um modelo de oficial a ser imitado. No Exército havia inúmeros outros bem melhores, que alcançaram o generalato.
Desde o governo Sarney, o político Bolsonaro, com extrema perícia, procurou fazer-se porta-voz das sucessivas insatisfações na caserna, silenciadas em parte no regime democrático. Sob Sarney, conseguiu expressar as saudades da ditadura, sob Fernando Henrique Cardoso, a indignação com os cortes orçamentários. Sob os governos petistas, o desconforto com a ascensão da esquerda à Presidência e, no final, a amargura com a criação da Comissão Nacional da Verdade, transformada em indignação quando os resultados desta foram publicados. As denúncias de corrupção condimentaram fortemente o caldo.
Jair Bolsonaro é e sempre foi um homem de várias peles. Na dualidade de Maquiavel, apresenta-se como leão para esconder sua personalidade de raposa. Nos últimos tempos, passou a vestir sobre esta última uma pele de cordeiro. Se vencer as eleições, essas coberturas serão penduradas nos cabides dos amplos armários do Palácio da Alvorada. Prontas para serem vestidas, conforme exija a ocasião.
* João Roberto Martins é Professor Titular de Ciência Política, UFSCar.
[i] https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/sou-capitao-do-exercito-a-minha-especialidade-e-matar-diz-bolsonaro-5jt6tsot2v8jygy6l50uswd0h/
[iii] Ver Celso Corrêa Pinto de Castro e Piero de Camargo Leirner, Antropologia dos militares, Rio de Janeiro, FGV, 2008.
“Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”, disse, com sua alegada sinceridade, o então deputado e pré-candidato à Presidência da República, a 29 de junho de 2017, em entrevista coletiva em Porto Alegre. A frase pode servir de atalho para ingressar em sua complexa personalidade.
No verbete dedicado a seu nome na Wikipedia, Jair Messias Bolsonaro é definido como “militar da reserva e político brasileiro”. Saiu do Exército há 29 anos. O uso do presente do indicativo – “sou capitão” - funciona assim como artimanha discursiva, com o fim de se apresentar a seus apoiadores e eleitores como um soldado, com as qualidades ligadas a essa profissão. É possível que para os leigos esse posto soe como chefe ou comandante, alguém que está no domínio da situação. Na carreira castrense, é apenas o início de uma dura ascensão.
Ultimamente, já como candidato, Bolsonaro deu mais um passo: integrou o Exército a sua pessoa. “Nós do Exército” passou a ser com frequência o sujeito de suas respostas. Desnecessário dizer que apresentar-se como especialista na morte é o corolário de sua pele militar, ainda que raros sejam, na realidade, os oficiais que se definem por essa dúbia qualidade.
Bolsonaro é um mago das palavras, dos gestos e das performances. O ex-capitão é capaz de convencer seus seguidores que é justamente o contrário do que efetivamente é: espontâneo e sincero, um tanto rústico, mas honesto e íntegro em suas posições. Justamente o oposto do que se associa à figura do político brasileiro.
Como ele conseguiu trafegar durante os últimos 29 anos, no cipoal da vida parlamentar do país, com tais qualidades tão raras é um mistério, desde que abandonou o Exército, para se eleger vereador. Fez isso na esteira da popularidade que granjeou ao escrever à revista Veja uma carta contra a política de soldos do governo Sarney, o que lhe custou prisão disciplinar de quinze dias.
O capitão Bolsonaro formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) na turma de 1977, ingressando assim no Exército. Serviu em três grupos de artilharia de campanha, o último deles também paraquedista, já como tenente, o posto de entrada do que se chama no Exército de “oficiais subalternos”. Não se sabe bem se se destacou na curta carreira. A 22 de maio de 2017, a Folha de S.Paulo publicou trechos de sua fé de ofício, onde se dizia que ele era dono de “uma excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”.[ii]
A profissão militar não é terreno fértil para os homens com esses traços de caráter. A menos que haja uma guerra, é uma carreira de dura rotina, poucas recompensas, soldos limitados e mordomias quase inexistentes, exercícios diários e promoções extremamente regulamentadas. É quase impossível realizar-se financeira e economicamente nessa profissão, a não ser com idade já avançada. Bolsonaro estava no lugar errado.
A sua segunda pele começou a aparecer quando se insubordinou contra seus superiores e, como vimos, reclamou em público contra os baixos soldos, ganhando projeção que lhe garantiu o ingresso em outro mundo completamente diferente, esse sim propenso a ambições desmesuradas e ganhos econômicos seguros: a política. Hoje, embora se apresente como capitão “especialista em matar”, o candidato acumula 29 anos de uma profissão bem mais pacífica, contra 11 da carreira militar.
Na campanha eleitoral, a segunda pele de Jair Bolsonaro foi reforçada de várias formas, ao cercar-se de generais, a começar pela escolha do vice, ao visitar unidades policiais-militares para mostrar que é um deles e ao prometer “metralhar” seus adversários políticos, para ficar em poucos exemplos.
Feitas as contas, sua pele militar parece curta para esconder a realidade de um oficial que nunca conseguiu se sadaptar aos dois pilares da profissão castrense- a hiersqrquia e disciplina, o que lhe valeu o afastamento da ESAO, a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Não chegou nem perto da Escola de Comando e Estado-Maior, a ECEME.
Estudos recentes mostram que a identidade militar constroi-se sobre a noção de superioridade moral do oficial castrense diante do mundo civil e à suposta ausência nesse meio das mazelas em geral vistas como paisanas.[iii]
Ambicioso, Bolsonaro deu-se bem no mundo das práticas mais lamentáveis da política brasileira. Calculista, soube tirar lucro de sua fama de rebelde. Demagogo, insistiu no discurso cheio de frases bombásticas, horríveis para muitos, mas que soam como música para o público a que se dirigem. Camaleão, vestiu a indumentária de nove sucessivas agremiações partidárias.
Infelizmente, em três décadas, a hierarquia do Exército não cuidou de afastar-se de forma mais eficaz do bem-sucedido político. Ao contrário, ele sempre pareceu bem-vindo nas formaturas de sua alma-mater, a AMAN, mesmo que estivesse longe de propiciar aos jovens cadetes um modelo de oficial a ser imitado. No Exército havia inúmeros outros bem melhores, que alcançaram o generalato.
Desde o governo Sarney, o político Bolsonaro, com extrema perícia, procurou fazer-se porta-voz das sucessivas insatisfações na caserna, silenciadas em parte no regime democrático. Sob Sarney, conseguiu expressar as saudades da ditadura, sob Fernando Henrique Cardoso, a indignação com os cortes orçamentários. Sob os governos petistas, o desconforto com a ascensão da esquerda à Presidência e, no final, a amargura com a criação da Comissão Nacional da Verdade, transformada em indignação quando os resultados desta foram publicados. As denúncias de corrupção condimentaram fortemente o caldo.
Jair Bolsonaro é e sempre foi um homem de várias peles. Na dualidade de Maquiavel, apresenta-se como leão para esconder sua personalidade de raposa. Nos últimos tempos, passou a vestir sobre esta última uma pele de cordeiro. Se vencer as eleições, essas coberturas serão penduradas nos cabides dos amplos armários do Palácio da Alvorada. Prontas para serem vestidas, conforme exija a ocasião.
* João Roberto Martins é Professor Titular de Ciência Política, UFSCar.
Notas:
[i] https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/sou-capitao-do-exercito-a-minha-especialidade-e-matar-diz-bolsonaro-5jt6tsot2v8jygy6l50uswd0h/
[ii] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1884332-bolsonaro-era-agressivo-e-tinha-excessiva-ambicao-diz-ficha-militar.shtml
[iii] Ver Celso Corrêa Pinto de Castro e Piero de Camargo Leirner, Antropologia dos militares, Rio de Janeiro, FGV, 2008.
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