Espanta-me o fato de que sejam tão poucos os cidadãos capazes de entender a unicidade do Brasil no confronto com quaisquer países há muitos séculos saídos da Idade Média.
Aqui, casa-grande e senzala continuam de pé. Conservo a esperança de que Bolsonaro não confirme o assombroso resultado do primeiro turno, prova implacável da nossa medievalidade.
Consta que os fiéis do deus mercado estão em festa, o que não há de surpreender. Não nos força a espremer as meninges perceber que o capitão cabe no papel de capataz da casa-grande.
Teria de derrubar o queixo do observador isento, isto sim, a incapacidade do povo brasileiro de se enxergar como vítima de 518 anos de prepotência, predação e hipocrisia.
Sosseguem, não derruba. Trata-se apenas de uma razão da nossa infeliz peculiaridade: a casa-grande foi muito eficaz ao manter a maioria na senzala em um dos países mais desiguais do mundo.
Um dos aspectos mais lancinantes da tragédia que todos vivemos, cientes ou não da desgraça, é a atitude de quem ainda traz no lombo a marca da chibata e vota na derradeira versão do capitão do mato. Condenados a viver na Idade Média, e não sabem.
Sempre, desde a mocidade, me perguntei a quem atribuir a responsabilidade por tamanha insensibilidade, tamanha ignorância, tamanho encanto diante das miçangas do mais reles populismo. Pelé disse que a culpa é do próprio povo, que não sabe votar.
Faltam provas a respeito, pelo contrário avultam as culpas de quem haveria de levar os pobres à consciência da cidadania e não quis, ou não pôde, ou não soube, quando não se entregou à mais modorrenta indiferença.
O povo brasileiro é perfeitamente adequado às circunstâncias impostas por quantos mandaram, os senhores da situação, desinteressados da pátria que polui seus discursos, sequiosos somente pelos privilégios e benesses do poder.
Não imaginemos, contudo, que os donos do poder, como escreveu Raymundo Faoro, possuíssem algum gênero de sabedoria, ferozes com os desvalidos, e tão toscos e primitivos igual aos que espezinhavam.
Por isso, somos o que somos, um país de potencialidades infindas, e cada vez mais atrasado e insignificante pela malignidade, ganância e incompetência de quem o comandou.
Quando, ainda em 1979, nasceu a ideia do Partido dos Trabalhadores nas dependências do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, fiquei empolgado diante da perspectiva do surgimento de um partido de esquerda autêntico, na minha visão indispensável à modernização do País, como se deu em diversos países europeus.
Ao longo dos anos, o PT, atento aos acontecimentos mundiais, abrandou algumas posições mais intransigentes, mas sempre se constituiu em uma oposição firme e democrática. A eleição de Lula, em 2002, pareceu-me justo desfecho de uma bela história.
Não repetirei o que já escrevi a respeito do PT no poder, sem deixar de sublinhar que o governo Lula foi ótimo de muitos pontos de vista: deu passos inéditos e importantes no campo social, praticou uma política exterior exemplar, pagou a dívida externa e encheu as burras do Estado.
Certas cautelosas premissas demonstraram, porém, a crença na famigerada conciliação, possível somente entre as chamadas elites, expostas a desavenças entre si a serem rapidamente compostas. A casa-grande jamais abrirá suas portas para o PT. É natural, mas os petistas receio que não tenham entendido, e esta é falha grave.
O resultado de 7 de outubro ressalta pela enésima vez a impossibilidade do acordo com os insufladores da revolta dos pobres contra os pobres. Uma emocionante lição de civilidade e discernimento vem do Nordeste, enquanto os hunos invadem o resto do País, onde mora a demência reacionária.
Da Bahia para cima, terra de emigrantes, entre eles um menino chamado Luiz Inácio, apelidado de Lula. Vinham na boleia de caminhões e, ao lembrar meus tempos de juventude, eram recebidos com desconfiança e animosidade, às vezes traduzida em chacota.
São Paulo rica ria-se dos nordestinos pobres. O tempora, o mores... Não direi que a aula que o Nordeste ministra me surpreende. A região foi muito bem administrada por seus governantes, voltados aos interesses da terra e do povo.
Às vezes, e não me refiro ao que disse acima, encontra-se a civilidade onde em princípio não estava prevista. Na semana passada, quinta-feira 4, Fernando Morais e eu fomos visitar o nosso querido amigo Lula, encarcerado na sede da Polícia Federal de Curitiba.
Estávamos munidos da devida autorização, subitamente revogada por um juiz local. Visitantes jornalistas não poderiam ter contato com o ex-presidente condenado sem prova e preso sem crime, depois de definitiva e irrecorrível decisão do presidente do STF, um certo Toffoli, de negar-lhe a possibilidade de dar entrevistas. E não adiantava afirmar que não era esta a nossa intenção.
Em compensação, descobrimos três simpáticos, atenciosos cavalheiros, o superintendente Mauricio Valleixo, seu braço direito, Reinaldo de Almeida Cesar (aliás, velho e caro amigo) e Jorge Chastalo Filho, encarregado de cuidar de Lula.
No gabinete do superintendente conversamos longamente com eles, a nos explicarem, constrangidos, como e por que cumpriam ordens. Foi um papo entre amigos. Já me dissera do impecável comportamento destes policiais Massimo D’Alema, que esteve em São Paulo faz pouco tempo para participar de um seminário organizado pela Fundação Perseu Abramo, a partir de uma ideia de Celso Amorim e Dominique de Villepin. Antes do início dos trabalhos, o ex-premier italiano visitou Lula.
A esta altura, CartaCapital reforça seu apoio a Fernando Haddad e Manuela D’Ávila e seus apelos pela unidade do bloco progressista. Gostaria muito que Lula chamasse Ciro Gomes para compor de vez uma desavença que prejudica o País.
A formação de uma Frente Democrática, aberta a todos os brasileiros achegados à razão, é a nossa esperança. Não excluiria golpistas arrependidos, eleitores tucanos e emedebistas, e aqueles do governador França, chamado a enfrentar em segundo turno o engomado rei dos oportunistas, João Doria.
O Brasil nunca enfrentou um risco tão imponente, incluída a demoníaca constatação da desorientação de tantos que neste momento endossam o ideário de Bolsonaro. O qual, permito-me insistir, não é fascista. Ele representa um fenômeno exclusivamente brasileiro. Se uma vaga semelhança existisse, seria mais com os preconceitos nazistas.
Mas o capitão, de verdade, é típico do país em que ir à rua é arriscado. Bolsonaro é bolsonarista, inserido na unicidade e medievalidade brasileiras. O meu empenho em definir a personalidade do capitão e de quantos o sufragam está longe de ser semântica. Batalha perdida, eu sei, como outra a favor do substantivo copo que por aqui foi batizado como aquilo que não é, taça.
Há casos em que poderíamos falar em cálice a bem da precisão, mas taça, como Bolsonaro, é representativa da unicidade nativa, na pretensão de um refinamento tão falso quanto ridículo.
Aqui, casa-grande e senzala continuam de pé. Conservo a esperança de que Bolsonaro não confirme o assombroso resultado do primeiro turno, prova implacável da nossa medievalidade.
Consta que os fiéis do deus mercado estão em festa, o que não há de surpreender. Não nos força a espremer as meninges perceber que o capitão cabe no papel de capataz da casa-grande.
Teria de derrubar o queixo do observador isento, isto sim, a incapacidade do povo brasileiro de se enxergar como vítima de 518 anos de prepotência, predação e hipocrisia.
Sosseguem, não derruba. Trata-se apenas de uma razão da nossa infeliz peculiaridade: a casa-grande foi muito eficaz ao manter a maioria na senzala em um dos países mais desiguais do mundo.
Um dos aspectos mais lancinantes da tragédia que todos vivemos, cientes ou não da desgraça, é a atitude de quem ainda traz no lombo a marca da chibata e vota na derradeira versão do capitão do mato. Condenados a viver na Idade Média, e não sabem.
Sempre, desde a mocidade, me perguntei a quem atribuir a responsabilidade por tamanha insensibilidade, tamanha ignorância, tamanho encanto diante das miçangas do mais reles populismo. Pelé disse que a culpa é do próprio povo, que não sabe votar.
Faltam provas a respeito, pelo contrário avultam as culpas de quem haveria de levar os pobres à consciência da cidadania e não quis, ou não pôde, ou não soube, quando não se entregou à mais modorrenta indiferença.
O povo brasileiro é perfeitamente adequado às circunstâncias impostas por quantos mandaram, os senhores da situação, desinteressados da pátria que polui seus discursos, sequiosos somente pelos privilégios e benesses do poder.
Não imaginemos, contudo, que os donos do poder, como escreveu Raymundo Faoro, possuíssem algum gênero de sabedoria, ferozes com os desvalidos, e tão toscos e primitivos igual aos que espezinhavam.
Por isso, somos o que somos, um país de potencialidades infindas, e cada vez mais atrasado e insignificante pela malignidade, ganância e incompetência de quem o comandou.
Quando, ainda em 1979, nasceu a ideia do Partido dos Trabalhadores nas dependências do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, fiquei empolgado diante da perspectiva do surgimento de um partido de esquerda autêntico, na minha visão indispensável à modernização do País, como se deu em diversos países europeus.
Ao longo dos anos, o PT, atento aos acontecimentos mundiais, abrandou algumas posições mais intransigentes, mas sempre se constituiu em uma oposição firme e democrática. A eleição de Lula, em 2002, pareceu-me justo desfecho de uma bela história.
Não repetirei o que já escrevi a respeito do PT no poder, sem deixar de sublinhar que o governo Lula foi ótimo de muitos pontos de vista: deu passos inéditos e importantes no campo social, praticou uma política exterior exemplar, pagou a dívida externa e encheu as burras do Estado.
Certas cautelosas premissas demonstraram, porém, a crença na famigerada conciliação, possível somente entre as chamadas elites, expostas a desavenças entre si a serem rapidamente compostas. A casa-grande jamais abrirá suas portas para o PT. É natural, mas os petistas receio que não tenham entendido, e esta é falha grave.
O resultado de 7 de outubro ressalta pela enésima vez a impossibilidade do acordo com os insufladores da revolta dos pobres contra os pobres. Uma emocionante lição de civilidade e discernimento vem do Nordeste, enquanto os hunos invadem o resto do País, onde mora a demência reacionária.
Da Bahia para cima, terra de emigrantes, entre eles um menino chamado Luiz Inácio, apelidado de Lula. Vinham na boleia de caminhões e, ao lembrar meus tempos de juventude, eram recebidos com desconfiança e animosidade, às vezes traduzida em chacota.
São Paulo rica ria-se dos nordestinos pobres. O tempora, o mores... Não direi que a aula que o Nordeste ministra me surpreende. A região foi muito bem administrada por seus governantes, voltados aos interesses da terra e do povo.
Às vezes, e não me refiro ao que disse acima, encontra-se a civilidade onde em princípio não estava prevista. Na semana passada, quinta-feira 4, Fernando Morais e eu fomos visitar o nosso querido amigo Lula, encarcerado na sede da Polícia Federal de Curitiba.
Estávamos munidos da devida autorização, subitamente revogada por um juiz local. Visitantes jornalistas não poderiam ter contato com o ex-presidente condenado sem prova e preso sem crime, depois de definitiva e irrecorrível decisão do presidente do STF, um certo Toffoli, de negar-lhe a possibilidade de dar entrevistas. E não adiantava afirmar que não era esta a nossa intenção.
Em compensação, descobrimos três simpáticos, atenciosos cavalheiros, o superintendente Mauricio Valleixo, seu braço direito, Reinaldo de Almeida Cesar (aliás, velho e caro amigo) e Jorge Chastalo Filho, encarregado de cuidar de Lula.
No gabinete do superintendente conversamos longamente com eles, a nos explicarem, constrangidos, como e por que cumpriam ordens. Foi um papo entre amigos. Já me dissera do impecável comportamento destes policiais Massimo D’Alema, que esteve em São Paulo faz pouco tempo para participar de um seminário organizado pela Fundação Perseu Abramo, a partir de uma ideia de Celso Amorim e Dominique de Villepin. Antes do início dos trabalhos, o ex-premier italiano visitou Lula.
A esta altura, CartaCapital reforça seu apoio a Fernando Haddad e Manuela D’Ávila e seus apelos pela unidade do bloco progressista. Gostaria muito que Lula chamasse Ciro Gomes para compor de vez uma desavença que prejudica o País.
A formação de uma Frente Democrática, aberta a todos os brasileiros achegados à razão, é a nossa esperança. Não excluiria golpistas arrependidos, eleitores tucanos e emedebistas, e aqueles do governador França, chamado a enfrentar em segundo turno o engomado rei dos oportunistas, João Doria.
O Brasil nunca enfrentou um risco tão imponente, incluída a demoníaca constatação da desorientação de tantos que neste momento endossam o ideário de Bolsonaro. O qual, permito-me insistir, não é fascista. Ele representa um fenômeno exclusivamente brasileiro. Se uma vaga semelhança existisse, seria mais com os preconceitos nazistas.
Mas o capitão, de verdade, é típico do país em que ir à rua é arriscado. Bolsonaro é bolsonarista, inserido na unicidade e medievalidade brasileiras. O meu empenho em definir a personalidade do capitão e de quantos o sufragam está longe de ser semântica. Batalha perdida, eu sei, como outra a favor do substantivo copo que por aqui foi batizado como aquilo que não é, taça.
Há casos em que poderíamos falar em cálice a bem da precisão, mas taça, como Bolsonaro, é representativa da unicidade nativa, na pretensão de um refinamento tão falso quanto ridículo.
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