Por Mário Magalhães, no site The Intercept-Brasil:
No pronunciamento lido na noite do domingo, o presidente eleito Jair Bolsonaro mencionou uma vez o substantivo “democracia” e cinco vezes variações do adjetivo “democrático”. Citou 11 vezes a palavra “liberdade” e seis vezes “Deus”.
O marechal Castello Branco falou duas vezes “liberdade” e três vezes “livres” no discurso de posse como presidente, em abril de 1964. Evocou a democracia em cinco passagens. Limitou-se a uma referência a Deus. O orador tornava-se então o primeiro dos cinco ditadores do regime recém-parido. Foi escolhido por um Congresso manietado, e não por sufrágio universal.
Na ditadura, o governo mais liberticida e carniceiro foi o de Emílio Garrastazu Médici. O general reverenciou a democracia (cinco alusões) e a liberdade (duas), em outubro de 1969, ao assumir a Presidência. Proclamou a “garantia dos direitos fundamentais do homem” (em seu mandato criou-se o sistema de tortura e extermínio do DOI-Codi). Para chegar ao Planalto, Médici recebeu 239 votos (de congressistas).
Numa jornada literária, Millôr Fernandes leu como se fosse dele o antigo discurso de Médici ao ser ungido presidente. Aplaudiram-no de pé. Era uma pegadinha do gênio do Méier, contou Luis Fernando Verissimo, que escreveu: “Millôr provou o perigo e a inconfiabilidade da retórica em qualquer situação”.
Noutras palavras: os indivíduos são mais o que fazem e menos o que dizem. Já, já se saberá como Bolsonaro se comportará como presidente. Se mantiver seus sermões extremistas de direita, velhacos de três décadas, será um dos governantes com pregação mais intolerante do planeta. Declarações pró-democracia, depois de sobrepujar Fernando Haddad por 55% a 45% dos votos válidos, contrastam com sua duradoura profissão de fé no golpismo, na ditadura e na violência.
“Vamos pacificar o Brasil”, prometeu o capitão reformado depois de ler o discurso. Uma semana antes, ele ameaçara Haddad com prisão, onde o petista “apodreceria”. Comentaristas da GloboNews e editoriais dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo se queixaram do professor por não ter telefonado para cumprimentar o homem que lhe acenara com cadeia perpétua. Parcela do jornalismo que chiou contra Haddad omitira ou não noticiara como grave a truculência intimidatória.
Mais tarde, o ex-prefeito tuitou desejando “boa sorte” ao vencedor. Bolsonaro agradeceu, também pelo Twitter, gotejando ironia pueril: “Realmente o Brasil merece o melhor”.
Hipocrisia exacerbada
O jornalismo brasileiro dominante esteve na mesma trincheira de Bolsonaro, a que se bateu por Aécio Neves, no segundo turno da eleição de 2014. Também na ofensiva para depor Dilma Rousseff. E no empenho para impedir Lula de concorrer em 2018. Por que demorou tanto para investigar com determinação a trajetória do deputado? Porque antes suas convicções editoriais e políticas coincidiam? Opinião é o de menos, cada um na sua. O busílis é: por que, com exceções, no mínimo atrasou a busca por informação?
O mesmo jornalismo vai tratando com leniência os balões de ensaio de Bolsonaro e seu anunciado ministro da Economia, o banqueiro Paulo Guedes. Como se os quase 58 milhões de votos autorizassem uma reforma da Previdência predadora de conquistas dos trabalhadores. Bolsonaro não apresentou na campanha o seu projeto previdenciário.
Agora, não tem direito de impor o que bem entender; não ganhou cheque em branco. Assim como Dilma não tinha – mas impôs – um programa, o do PSDB, rejeitado pelos eleitores em 2014. Bolsonaro escondeu seus propósitos para não perder votos. Carece de legitimidade para um bota-abaixo das proteções sociais e da legislação trabalhista.
Sua administração talvez seja, antes da largada, a mais imprevisível da República. O 1º de janeiro de 2019 não será um 1º de abril de 1964. Não que o novo presidente tenha perdido a apetência antidemocrática, mas o muro constitucional erguido em 1988 é um obstáculo ao Brasil que ele idealiza. Uma equação resume o futuro: quanto mais Bolsonaro levar adiante a agenda que cultiva e não expôs aos cidadãos, pior para o país; e vice-versa.
O marechal Castello Branco falou duas vezes “liberdade” e três vezes “livres” no discurso de posse como presidente, em abril de 1964. Evocou a democracia em cinco passagens. Limitou-se a uma referência a Deus. O orador tornava-se então o primeiro dos cinco ditadores do regime recém-parido. Foi escolhido por um Congresso manietado, e não por sufrágio universal.
Na ditadura, o governo mais liberticida e carniceiro foi o de Emílio Garrastazu Médici. O general reverenciou a democracia (cinco alusões) e a liberdade (duas), em outubro de 1969, ao assumir a Presidência. Proclamou a “garantia dos direitos fundamentais do homem” (em seu mandato criou-se o sistema de tortura e extermínio do DOI-Codi). Para chegar ao Planalto, Médici recebeu 239 votos (de congressistas).
Numa jornada literária, Millôr Fernandes leu como se fosse dele o antigo discurso de Médici ao ser ungido presidente. Aplaudiram-no de pé. Era uma pegadinha do gênio do Méier, contou Luis Fernando Verissimo, que escreveu: “Millôr provou o perigo e a inconfiabilidade da retórica em qualquer situação”.
Noutras palavras: os indivíduos são mais o que fazem e menos o que dizem. Já, já se saberá como Bolsonaro se comportará como presidente. Se mantiver seus sermões extremistas de direita, velhacos de três décadas, será um dos governantes com pregação mais intolerante do planeta. Declarações pró-democracia, depois de sobrepujar Fernando Haddad por 55% a 45% dos votos válidos, contrastam com sua duradoura profissão de fé no golpismo, na ditadura e na violência.
“Vamos pacificar o Brasil”, prometeu o capitão reformado depois de ler o discurso. Uma semana antes, ele ameaçara Haddad com prisão, onde o petista “apodreceria”. Comentaristas da GloboNews e editoriais dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo se queixaram do professor por não ter telefonado para cumprimentar o homem que lhe acenara com cadeia perpétua. Parcela do jornalismo que chiou contra Haddad omitira ou não noticiara como grave a truculência intimidatória.
Mais tarde, o ex-prefeito tuitou desejando “boa sorte” ao vencedor. Bolsonaro agradeceu, também pelo Twitter, gotejando ironia pueril: “Realmente o Brasil merece o melhor”.
Hipocrisia exacerbada
O jornalismo brasileiro dominante esteve na mesma trincheira de Bolsonaro, a que se bateu por Aécio Neves, no segundo turno da eleição de 2014. Também na ofensiva para depor Dilma Rousseff. E no empenho para impedir Lula de concorrer em 2018. Por que demorou tanto para investigar com determinação a trajetória do deputado? Porque antes suas convicções editoriais e políticas coincidiam? Opinião é o de menos, cada um na sua. O busílis é: por que, com exceções, no mínimo atrasou a busca por informação?
O mesmo jornalismo vai tratando com leniência os balões de ensaio de Bolsonaro e seu anunciado ministro da Economia, o banqueiro Paulo Guedes. Como se os quase 58 milhões de votos autorizassem uma reforma da Previdência predadora de conquistas dos trabalhadores. Bolsonaro não apresentou na campanha o seu projeto previdenciário.
Agora, não tem direito de impor o que bem entender; não ganhou cheque em branco. Assim como Dilma não tinha – mas impôs – um programa, o do PSDB, rejeitado pelos eleitores em 2014. Bolsonaro escondeu seus propósitos para não perder votos. Carece de legitimidade para um bota-abaixo das proteções sociais e da legislação trabalhista.
Sua administração talvez seja, antes da largada, a mais imprevisível da República. O 1º de janeiro de 2019 não será um 1º de abril de 1964. Não que o novo presidente tenha perdido a apetência antidemocrática, mas o muro constitucional erguido em 1988 é um obstáculo ao Brasil que ele idealiza. Uma equação resume o futuro: quanto mais Bolsonaro levar adiante a agenda que cultiva e não expôs aos cidadãos, pior para o país; e vice-versa.
O porvir é tão incerto que são verossímeis cenários contrastantes como: Bolsonaro recuará na voracidade antissocial e se reelegerá; manterá o aparente furor neoliberal e será derrubado pelo Congresso e pelo STF, pressionados por protestos populares; dará um golpe com o Exército e se investirá de poderes interditados pela Carta; comandará um governo desastroso e perderá a eleição de 2022 para uma direita, a de João Doria, com mais afetação e botox; será superado daqui a quatro anos por um oponente de esquerda ou centro-esquerda. Hoje, prognósticos não passam de chute.
Abre-se uma era de hipocrisia exacerbada. No domingo, Bolsonaro recorreu ao apóstolo João: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. A verdade: nunca a mentira influenciou tanto uma eleição presidencial no Brasil. Há muito a descobrir sobre a operação no WhatsApp que ajudou o bolsonarismo. O “kit gay” que teria sido adotado por Haddad foi invencionice criminosa. As urnas eletrônicas programadas para fraudar só existiram, até o dia 28, como farsa para engambelar trouxas.
O presidente eleito prestigiou no discurso dominical “o direito de ir e vir”. Na véspera um jovem de 23 anos fora assassinado a tiros em Pacajus, na região metropolitana de Fortaleza. O servente de pedreiro Charlione Lessa Albuquerque participava de uma carreata pró-Haddad. Bolsonaro silenciou sobre o homicídio.
O eleito não representa um triunfo solitário da direita, nesse caso extremada. Os Estados Unidos passaram da novidade do primeiro presidente negro ao retrocesso Trump. É tempo de Duterte (Filipinas), Erdogan (Turquia) e Orbán (Hungria). Salvini é vice-primeiro-ministro da Itália.
A ascensão radical é tamanha que a alemã Merkel, de direita ou centro-direita, estabeleceu-se como âncora de sensatez. Na América Latina, a maré também é direitista. Ela vai e vem, assim é a história. Ou, na antiga fórmula de um judeu russo, os países têm desenvolvimento desigual e combinado.
Convite a Moro
É provável ou possível que a Justiça tenha decidido a eleição. Se Lula, condenado sem prova acima de dúvida, tivesse concorrido, Bolsonaro não seria o favorito. No fim de agosto, no último levantamento Datafolha com o ex-presidente como opção, ele alcançava 39% no primeiro turno, contra 19% do deputado. Na segunda rodada, vencia por 52% a 32% do total de votos.
Ninguém pode acusar Bolsonaro de ingratidão. Anteontem ele convidou o juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça ou uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Rasgaram a fantasia; escancararam.
Lula sobreviveria à artilharia de mentiras? Impossível responder. Teria certamente mais chances do que Haddad – que sai da campanha muito maior do que entrou. No Estado do Rio, depois do veto judicial, milhões de eleitores trocaram Lula por Bolsonaro. O antipetismo é vasto e profundo, e o PT esforçou-se em dar bons motivos para ele. Mas, se fosse determinante, o ex-presidente não manteria a dianteira até dois meses atrás.
Bolsonaro foi o grande beneficiário do movimento pelo impeachment de Dilma. E do espírito “contra tudo e contra todos” das Jornadas de Junho de 2013, marcadas pela pluralidade de pensamento. Feriu a esquerda e devastou a direita e a centro-direita tradicionais. Vendeu-se como outsider antissistema, o que está longe de ser.
Envenenou o país com ódio que contaminou a vida nacional mais do que no período pré-golpe de 1964 e na época, os anos 1930, dos galinhas-verdes integralistas. No domingo, entre a multidão que o aclamava na Barra da Tijuca, desfraldaram uma bandeira com a efígie do torturador Ustra. Um gesto infame, como infamante é a veneração de Bolsonaro pelo coronel sanguinário.
Depois de semear a guerra com verrinas fascistoides, Bolsonaro pede “pacificação” para implantar sua política obscurantista. É uma atitude farisaica, como ele demonstrou com o tom beligerante no Jornal Nacional da segunda-feira, ao disparar contra a liberdade de imprensa. Bolsonaro não dará trégua. Diante do presidente eleito, cabe a quem defende mais democracia e menos desigualdade resistir. Um bom escudo é a Constituição. A tormenta está só no começo.
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