Por Alexandre Padilha, no site Carta Maior:
Em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou o primeiro “Relatório Mundial sobre violência e saúde”, com a intenção de apresentar uma resposta global à violência e tentar tornar o mundo um lugar mais seguro e saudável. Naquela época, mais de 1,6 milhão de vidas eram perdidas por ano em razão desse problema. Esse trágico estado exigia um esforço urgente das nações para o enfrentamento e compreensão do tema.
O Relatório Mundial é parte importante da resposta da OMS à Resolução de 1996, da Assembleia Mundial de Saúde, que considerou a violência como um problema importante, e crescente, de saúde pública no mundo. Em 2002, o Ministério da Saúde estruturou a “Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências”, estabelecendo diretrizes e responsabilidades institucionais com medidas inerentes à promoção da saúde e à prevenção desses eventos, articulando diversos segmentos sociais.
Vê-se, assim, que a relação direta e impactante entre a ocorrência de eventos violentos, como acidentes com veículos automotores, ferimentos ocasionados por armas de fogo, entre outros, a saúde pública tem sido objeto de preocupação de países e órgãos públicos há algum tempo. Dessa forma, para estruturação de uma política pública de saúde é preciso não apenas se atentar para as causas dessas ocorrências como atuar na prevenção desses eventos em total sintonia com outros órgãos e instituições públicas.
Segundo o “Atlas da Violência 2018”, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IPEA, em 2016, o Brasil alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, segundo informações do Ministério da Saúde. Isso equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, que corresponde a 30 vezes a taxa da Europa. Apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil.
De 2006 para 2016, a taxa de homicídio por arma de fogo cresceu 15,4% no país, número próximo aos 14% de crescimento na taxa de homicídio em geral. A maioria das vítimas são jovens pobres e negros.
Vale salientar que mais da metade das mortes por homicídios são de jovens e que a maioria é negra e pobre. Em 2012, quando era ministro da Saúde, ajudei a implementar o “Juventude Viva”, programa que conta com ações interministeriais, a fim de ampliar o acesso às políticas públicas, a prevenção para reduzir a vulnerabilidade e violência de jovens negros e o racismo institucional nos municípios. Em 2017, o “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência”, trouxe que o risco de uma jovem negra ser vítima de homicídio no Brasil é 2,19 vezes maior do que uma branca.
Outro estudo recente, publicado no Global Burden Disease, órgão da OMS coloca o Brasil como o país onde mais se mata com armas de fogo no mundo. O estudo revela, ainda que “Os padrões documentados na África do Sul e no Brasil também apoiam uma ligação entre restrições regulatórias ao acesso de armas de fogo e subsequentes reduções nas taxas de mortes por elas”.
É o que dizem especialistas: sem a política do desarmamento esses números seriam ainda maiores e mais alta e profunda seria a tragédia para a saúde pública. Feita toda essa contextualização, não há como não expressar, como médico e ex-ministro da Saúde, uma profunda e latente preocupação com o que o novo governo, pelo seu presidente e ministro da Justiça, anunciou como uma das prioridades: a flexibilização e liberalização do porte e posse de armas no Brasil.
A medida vem na contramão de todos os estudos realizados durante as últimas décadas, documentos e recomendações da OMS e esforços do Estado desde, inclusive, governos anteriores aos do PT.
É um completo e inexplicável contrassenso de consequências terríveis para a população brasileira e para a saúde pública. Uma completa irresponsabilidade.
O projeto do governo, anunciado sem qualquer estudo prévio de impacto, sendo que uma das inovações seria a utilização do critério de residência “em áreas urbanas com elevados índices de violência” e com índice anual de mais de dez homicídios por cem mil habitantes.
Para se ter uma ideia do impacto dessa decisão, a medida atingiria 3.485 das 5.570 cidades, ou 62% dos municípios do País, onde vivem 76% da população brasileira. Trocando em miúdos, 3 a cada 4 brasileiros poderão ter duas armas em breve. Em Pernambuco, por exemplo, 95,7% dos 185 municípios poderão ter acesso facilitado a armas.
Quem pagará os custos dessa tragédia anunciada? E como a saúde pública, cujo investimento foi congelado por 20 anos pela PEC dos gastos, absorverá essa mórbida, populista e inconsequente decisão?
Dessa forma, se faz necessário uma urgente reação de toda a sociedade contra essa iniciativa que visa de maneira irresponsável atender ao lobby da indústria da arma e o fetiche populista dos membros do atual governo. Sem qualquer preocupação com o presente e com as futuras gerações essa gestão um dia vai passar, mas deixará um legado de aumento da violência com impactos profundos e imensuráveis na vida de milhões de famílias brasileiras e na saúde da pública do país se não formos capazes de denunciar e organizar agora a resistência.
* Alexandre Padilha é médico formado pela Unicamp, foi ministro da Coordenação Política de Lula, ministro da saúde no governo Dilma e secretariado da gestão Haddad em São Paulo.
Em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou o primeiro “Relatório Mundial sobre violência e saúde”, com a intenção de apresentar uma resposta global à violência e tentar tornar o mundo um lugar mais seguro e saudável. Naquela época, mais de 1,6 milhão de vidas eram perdidas por ano em razão desse problema. Esse trágico estado exigia um esforço urgente das nações para o enfrentamento e compreensão do tema.
O Relatório Mundial é parte importante da resposta da OMS à Resolução de 1996, da Assembleia Mundial de Saúde, que considerou a violência como um problema importante, e crescente, de saúde pública no mundo. Em 2002, o Ministério da Saúde estruturou a “Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências”, estabelecendo diretrizes e responsabilidades institucionais com medidas inerentes à promoção da saúde e à prevenção desses eventos, articulando diversos segmentos sociais.
Vê-se, assim, que a relação direta e impactante entre a ocorrência de eventos violentos, como acidentes com veículos automotores, ferimentos ocasionados por armas de fogo, entre outros, a saúde pública tem sido objeto de preocupação de países e órgãos públicos há algum tempo. Dessa forma, para estruturação de uma política pública de saúde é preciso não apenas se atentar para as causas dessas ocorrências como atuar na prevenção desses eventos em total sintonia com outros órgãos e instituições públicas.
Segundo o “Atlas da Violência 2018”, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IPEA, em 2016, o Brasil alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, segundo informações do Ministério da Saúde. Isso equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, que corresponde a 30 vezes a taxa da Europa. Apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil.
De 2006 para 2016, a taxa de homicídio por arma de fogo cresceu 15,4% no país, número próximo aos 14% de crescimento na taxa de homicídio em geral. A maioria das vítimas são jovens pobres e negros.
Vale salientar que mais da metade das mortes por homicídios são de jovens e que a maioria é negra e pobre. Em 2012, quando era ministro da Saúde, ajudei a implementar o “Juventude Viva”, programa que conta com ações interministeriais, a fim de ampliar o acesso às políticas públicas, a prevenção para reduzir a vulnerabilidade e violência de jovens negros e o racismo institucional nos municípios. Em 2017, o “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência”, trouxe que o risco de uma jovem negra ser vítima de homicídio no Brasil é 2,19 vezes maior do que uma branca.
Outro estudo recente, publicado no Global Burden Disease, órgão da OMS coloca o Brasil como o país onde mais se mata com armas de fogo no mundo. O estudo revela, ainda que “Os padrões documentados na África do Sul e no Brasil também apoiam uma ligação entre restrições regulatórias ao acesso de armas de fogo e subsequentes reduções nas taxas de mortes por elas”.
É o que dizem especialistas: sem a política do desarmamento esses números seriam ainda maiores e mais alta e profunda seria a tragédia para a saúde pública. Feita toda essa contextualização, não há como não expressar, como médico e ex-ministro da Saúde, uma profunda e latente preocupação com o que o novo governo, pelo seu presidente e ministro da Justiça, anunciou como uma das prioridades: a flexibilização e liberalização do porte e posse de armas no Brasil.
A medida vem na contramão de todos os estudos realizados durante as últimas décadas, documentos e recomendações da OMS e esforços do Estado desde, inclusive, governos anteriores aos do PT.
É um completo e inexplicável contrassenso de consequências terríveis para a população brasileira e para a saúde pública. Uma completa irresponsabilidade.
O projeto do governo, anunciado sem qualquer estudo prévio de impacto, sendo que uma das inovações seria a utilização do critério de residência “em áreas urbanas com elevados índices de violência” e com índice anual de mais de dez homicídios por cem mil habitantes.
Para se ter uma ideia do impacto dessa decisão, a medida atingiria 3.485 das 5.570 cidades, ou 62% dos municípios do País, onde vivem 76% da população brasileira. Trocando em miúdos, 3 a cada 4 brasileiros poderão ter duas armas em breve. Em Pernambuco, por exemplo, 95,7% dos 185 municípios poderão ter acesso facilitado a armas.
Quem pagará os custos dessa tragédia anunciada? E como a saúde pública, cujo investimento foi congelado por 20 anos pela PEC dos gastos, absorverá essa mórbida, populista e inconsequente decisão?
Dessa forma, se faz necessário uma urgente reação de toda a sociedade contra essa iniciativa que visa de maneira irresponsável atender ao lobby da indústria da arma e o fetiche populista dos membros do atual governo. Sem qualquer preocupação com o presente e com as futuras gerações essa gestão um dia vai passar, mas deixará um legado de aumento da violência com impactos profundos e imensuráveis na vida de milhões de famílias brasileiras e na saúde da pública do país se não formos capazes de denunciar e organizar agora a resistência.
* Alexandre Padilha é médico formado pela Unicamp, foi ministro da Coordenação Política de Lula, ministro da saúde no governo Dilma e secretariado da gestão Haddad em São Paulo.
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