Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:
Certamente, são poucos os que hoje ostentam certezas sobre a conjuntura que atravessamos no Brasil, e quem sabe no mundo. Mais do que nunca, o pensamento de Romain Rolland, retomado por Gramsci, pessimismo da inteligência, otimismo da vontade, torna-se útil, necessário. Une a necessária capacidade de analisar o que nos cerca com todo rigor com a indispensável interferência da política, da ação para enfrentar os obstáculos que se colocam à nossa frente. A democracia sofreu uma grave derrota nas últimas eleições para uma candidatura que em nenhum momento escondeu suas predileções autoritárias extremadas. Uma derrota que atinge todos os democratas e, de modo especial, a esquerda, que precisa se armar teoricamente para enfrentar os novos desafios.
Não pretendo oferecer respostas. Nem analisar a conjuntura propriamente. Apenas refletir um pouco sobre esse quadro, indagar sobre ele, quem sabe dividir perplexidades, fugindo um pouco ao figurino da esquerda, que é o de sempre apresentar o caminho a ser trilhado, o que não deixa de ser necessário. Essa tarefa tem sido cumprida, mal ou bem, por tantos outros atores. Reencontrei-me, para isso, com Marilena Chaui, cujas lições são sempre valiosas. Com dois livros, Contra a Servidão Voluntária e Conformismo e Resistência. Na escuridão, a gente vai tateando e de repente encontra alguma luz que nos orienta. Vinha me debatendo, volto ao tema, me perguntando sobre como foi possível uma vitória como a de 2018 de um candidato manifestamente a favor da ditadura e de seus assassinos, os torturadores. Como tornou-se possível um político com tais ideias chegar ao poder pelo voto, pela livre manifestação do povo brasileiro?
Claro, o leitor pode objetar que houve um processo político influenciado de modo decisivo por fakenews, uma facada suspeita pelo meio, tantas outras coisas que podem indicar uma eleição fraudada, como alguns apontam. Mal ou bem, no entanto, o voto se deu, e o adversário venceu. Houve manifestação popular pelo voto. E pela poderosa luneta de Marilena Chaui, dou de cara com La Boétie e seu texto “Discurso da servidão voluntária”, um panfleto escrito entre 1552 e 1553, capaz de lançar outro olhar sobre a relação entre os dominados e dominantes. Nossa mirada é sempre condescendente com os tiranizados, compreensiva, cheia de atenuantes. Nunca dividimos responsabilidades com os que foram derrotados. Vou seguir Marilena Chaui, sem os formalismos das citações literais.
O “Discurso da servidão voluntária” é desconcertante.
Filosoficamente desconcertante.
Colocados diante de um enigma: nascemos livres e servos de ninguém e trocamos a liberdade pela servidão.
E o pior: sente-se que não perdemos a liberdade, mas ganhamos a servidão.
La Boétie é cruel com os que exercitam a vontade de servir.
Como Um, dotado de apenas dois olhos, duas mãos, dois ouvidos e dois pés, “frequentemente um homúnculo covarde e não um Sansão ou um Hércules”, encontra-se provido de milhares de olhos e ouvidos para espionar, de milhares de mãos para pilhar, de milhares de pés para esmagar?
Onde obteve esse corpo gigantesco?
E vem a resposta, sem arrodeios:
“Sois vós quem lhe dais todos os órgãos de que precisa para vos manter sob seu poderio, para vos destruir e às vossas famílias, para pilhar vossos bens e derramar vosso sangue em guerras que o fortalecem para vos enfraquecer. É o povo o gerador do soberano que o aniquila”.
Duro ouvir isso, não?
Ainda no esforço para responder ao enigma, La Boétie afirma que os homens não acreditam estar alienando suas vidas a um outro.
Acreditam que estão conferindo poder a si próprios.
Cada um, do mais alto ao mais baixo, deseja ser obedecido pelos demais e, portanto, ser tirano também.
A vontade de servir é o nome da vontade de dominar.
A vontade de servir engendra uma sociedade tirânica de ponta a ponta.
A proteção do tirano é dada pela sociedade que o deseja porque deseja tiranizar também.
Mas La Boétie compreende que o povo é ludibriado pelo seu desejo servil, pelas artimanhas religiosas e os ardis legais que produzem ilusões.
Só tardiamente reconhece que aceitou servir porque imaginou ser servido.
E aí, consciente de sua fraqueza, faz o que lhe ordenam e prefere deixar o tirano onde está a desalojá-lo, ali talvez ele possa fazer algum bem. Frequentemente se conserva iludido pelo tirano, cuja astúcia está em deixar aos demais a prática da violência visível e reservar para si tudo quanto possa parecer benefício.
La Boétie não é condescendente, como se poderia imaginar, com a classe dominante, a escória, os que são movidos pela ambição e avareza, os que fazem as leis, vigiam e punem, os poderosos que rapinam, torturam, destroem, esmagam e oprimem. Os que vivem em torno do tirano, os tiranetes, os que tentam adivinhar seus pensamentos, que avisam quem o trai, e recuando mais e mais de sua liberdade, abraçam a servidão.
Marilena Chaui lembra que a tradição do pensamento político nos acostumou com a ideia de que a alienação é uma determinação própria dos explorados. La Boétie, ao descrever os amigos do rei, inverte essa suposição.
E por que os homens se dão um senhor?
Como se enraizou tão antes essa obstinada vontade de servir?
Eles o fazem porque não desejam a liberdade e não a desejam porque ela lhes parece “demasiado fácil”.
A renúncia à liberdade é gênese simultânea da vontade de servir e do poder do Um, renúncia produzida por uma divisão no interior da vontade, cindida entre o desejo de liberdade e o desejo de servir.
Dar a palavra a Marilena, mais do que já o fiz, porque uma síntese:
– Ter o corpo e o espírito dos homens – eis o desejo do tirano; ter parte no mando e nos espólios – eis o desejo dos grandes; ter segurança, crenças e bens – eis o desejo do povo. Todavia, porque nenhum desses desejos pode ser plenamente satisfeito no real, a servidão voluntária produzirá um bem imaginário que possa figurar de maneira fantástica o preenchimento do desejo de servir: a figura do Um.
O mais desconcertante no “Discurso da servidão voluntária” é que ele não oferece um programa de ação para a luta contra a tirania. Só há uma proposição: perante o tirano, La Boétie conclama que não se lhe dê o que ele pede, e ele então cairá. Não propõe resistência passiva ou desobediência civil. Propõe que não seja reiterado o ato gerador do tirano. Não servir é resgatar aquilo que é contrário à servidão: a igualdade dos amigos, aos quais a natureza deu o dom precioso da fala.
O “Discurso da servidão voluntária” pode assustar, e assusta. Porque nos afasta de algumas ideias-chave a que nós, da esquerda, estamos acostumados, sobretudo a de romantizar o popular, como se tal ator tivesse um caminho reto, ou como se ele só eventualmente cometesse equívocos, sem que nos debrucemos sobre as razões pelas quais o desejo de servir se sobrepõe ao desejo de liberdade.
Não se analisa o caldo de cultura da sociedade, não se investigam as ambiguidades do movimento popular, tratadas por Marilena Chaui em Conformismo e Resistência. Não se discutem os erros dos partidos políticos, das chamadas vanguardas, que se acreditam capazes de ensinar ao movimento popular o que fazer, às vezes ignorando a cultura mais profunda de tal movimento, de modo especial suas ambiguidades, como já dito.
Uma derrota de tal envergadura, como a última, que não se analisa aqui, há de nos fazer voltar à nossa história, e não só às muitas manifestações de rebeldia em todo o país, mas às estratégias de sobrevivência do povo, suas ambiguidades, quem sabe sua servidão voluntária manifestada em nosso tempo, passados tantos séculos do texto de La Boétie.
Quase quatrocentos anos de escravidão deixam feridas abertas, e condicionam muito o movimento das classes dominadas. A derrota foi eleitoral, e não se pode fugir disso. Mas também cultural, simbólica, e pode ser que levemos tempo para recuperar o terreno. Para tanto, teremos que desenvolver, e muito, o pessimismo da inteligência e ir tateando no deserto para descobrir caminhos que nos levem à conquista da hegemonia.
Seguramente, não soubemos lidar com o fenômeno religioso, não obstante ser o PT, principal partido da esquerda, originário também de comunidades eclesiais de base. Impossível ser indiferente a um crescimento tão significativo das igrejas neopentencostais, ser indiferente a uma movimentação do povo em direção a um abrigo. O mundo, vasto mundo, convida-nos sempre a entender as ambiguidades, como convida Marilena Chaui a penetrar os terrenos da resistência, mas também os do conformismo. Mas evito resvalar em temas específicos.
Marilena Chaui é dessas figuras admiráveis, pela capacidade de reflexão e pela disposição de luta, de ser uma intelectual sempre presente na arena pública, que tem posição, não se esconde, não tem medo do debate. Filosofa politicamente, se é possível dizer assim.
Ao trazer La Boétie à cena em seus estudos e em debates recentes, quer nos alertar.
Chamar para a história.
Escapar do contingente, sem fugir dele.
Ela já disse: encontra no pensamento filosófico uma trilha para enfrentar as indeterminações e opacidades da ação, tanto a ação cotidiana quanto a ação política e cultural. Ao trazer à luz com força, novamente, o “Discurso da servidão voluntária” não está nos convidando à inação, ao contrário. Está dizendo que é preciso conhecer mais nossa gente, ombrear-se com ela, travar a luta político-cultural lado a lado com ela, sendo mestres e alunos, dirigentes e dirigidos, que o exercício da política reclama reflexão, conhecimento, teoria, sem o que não avançaremos na busca de hegemonia, não a do passado, perdida, mas outra, a ser ganha pacientemente.
É preciso compreender o quanto é necessário o mergulho no mundo da cultura, em seu sentido mais amplo, antropológico, sempre, independentemente das flutuações da conjuntura. Sem mudanças culturais, sem mudanças no coração e mentes do nosso povo, não faremos voos consistentes. Ficaremos nos voos de galinha.
Referências bibliográficas
CHAUI, Marilena. Contra a Servidão Voluntária. Homero Santiago (Org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013 (Coleção Escritos de Marilena Chaui, 1).
CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência. Homero Santiago (Org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014 (Coleção Escritos de Marilena Chaui, 4).
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.
Certamente, são poucos os que hoje ostentam certezas sobre a conjuntura que atravessamos no Brasil, e quem sabe no mundo. Mais do que nunca, o pensamento de Romain Rolland, retomado por Gramsci, pessimismo da inteligência, otimismo da vontade, torna-se útil, necessário. Une a necessária capacidade de analisar o que nos cerca com todo rigor com a indispensável interferência da política, da ação para enfrentar os obstáculos que se colocam à nossa frente. A democracia sofreu uma grave derrota nas últimas eleições para uma candidatura que em nenhum momento escondeu suas predileções autoritárias extremadas. Uma derrota que atinge todos os democratas e, de modo especial, a esquerda, que precisa se armar teoricamente para enfrentar os novos desafios.
Não pretendo oferecer respostas. Nem analisar a conjuntura propriamente. Apenas refletir um pouco sobre esse quadro, indagar sobre ele, quem sabe dividir perplexidades, fugindo um pouco ao figurino da esquerda, que é o de sempre apresentar o caminho a ser trilhado, o que não deixa de ser necessário. Essa tarefa tem sido cumprida, mal ou bem, por tantos outros atores. Reencontrei-me, para isso, com Marilena Chaui, cujas lições são sempre valiosas. Com dois livros, Contra a Servidão Voluntária e Conformismo e Resistência. Na escuridão, a gente vai tateando e de repente encontra alguma luz que nos orienta. Vinha me debatendo, volto ao tema, me perguntando sobre como foi possível uma vitória como a de 2018 de um candidato manifestamente a favor da ditadura e de seus assassinos, os torturadores. Como tornou-se possível um político com tais ideias chegar ao poder pelo voto, pela livre manifestação do povo brasileiro?
Claro, o leitor pode objetar que houve um processo político influenciado de modo decisivo por fakenews, uma facada suspeita pelo meio, tantas outras coisas que podem indicar uma eleição fraudada, como alguns apontam. Mal ou bem, no entanto, o voto se deu, e o adversário venceu. Houve manifestação popular pelo voto. E pela poderosa luneta de Marilena Chaui, dou de cara com La Boétie e seu texto “Discurso da servidão voluntária”, um panfleto escrito entre 1552 e 1553, capaz de lançar outro olhar sobre a relação entre os dominados e dominantes. Nossa mirada é sempre condescendente com os tiranizados, compreensiva, cheia de atenuantes. Nunca dividimos responsabilidades com os que foram derrotados. Vou seguir Marilena Chaui, sem os formalismos das citações literais.
O “Discurso da servidão voluntária” é desconcertante.
Filosoficamente desconcertante.
Colocados diante de um enigma: nascemos livres e servos de ninguém e trocamos a liberdade pela servidão.
E o pior: sente-se que não perdemos a liberdade, mas ganhamos a servidão.
La Boétie é cruel com os que exercitam a vontade de servir.
Como Um, dotado de apenas dois olhos, duas mãos, dois ouvidos e dois pés, “frequentemente um homúnculo covarde e não um Sansão ou um Hércules”, encontra-se provido de milhares de olhos e ouvidos para espionar, de milhares de mãos para pilhar, de milhares de pés para esmagar?
Onde obteve esse corpo gigantesco?
E vem a resposta, sem arrodeios:
“Sois vós quem lhe dais todos os órgãos de que precisa para vos manter sob seu poderio, para vos destruir e às vossas famílias, para pilhar vossos bens e derramar vosso sangue em guerras que o fortalecem para vos enfraquecer. É o povo o gerador do soberano que o aniquila”.
Duro ouvir isso, não?
Ainda no esforço para responder ao enigma, La Boétie afirma que os homens não acreditam estar alienando suas vidas a um outro.
Acreditam que estão conferindo poder a si próprios.
Cada um, do mais alto ao mais baixo, deseja ser obedecido pelos demais e, portanto, ser tirano também.
A vontade de servir é o nome da vontade de dominar.
A vontade de servir engendra uma sociedade tirânica de ponta a ponta.
A proteção do tirano é dada pela sociedade que o deseja porque deseja tiranizar também.
Mas La Boétie compreende que o povo é ludibriado pelo seu desejo servil, pelas artimanhas religiosas e os ardis legais que produzem ilusões.
Só tardiamente reconhece que aceitou servir porque imaginou ser servido.
E aí, consciente de sua fraqueza, faz o que lhe ordenam e prefere deixar o tirano onde está a desalojá-lo, ali talvez ele possa fazer algum bem. Frequentemente se conserva iludido pelo tirano, cuja astúcia está em deixar aos demais a prática da violência visível e reservar para si tudo quanto possa parecer benefício.
La Boétie não é condescendente, como se poderia imaginar, com a classe dominante, a escória, os que são movidos pela ambição e avareza, os que fazem as leis, vigiam e punem, os poderosos que rapinam, torturam, destroem, esmagam e oprimem. Os que vivem em torno do tirano, os tiranetes, os que tentam adivinhar seus pensamentos, que avisam quem o trai, e recuando mais e mais de sua liberdade, abraçam a servidão.
Marilena Chaui lembra que a tradição do pensamento político nos acostumou com a ideia de que a alienação é uma determinação própria dos explorados. La Boétie, ao descrever os amigos do rei, inverte essa suposição.
E por que os homens se dão um senhor?
Como se enraizou tão antes essa obstinada vontade de servir?
Eles o fazem porque não desejam a liberdade e não a desejam porque ela lhes parece “demasiado fácil”.
A renúncia à liberdade é gênese simultânea da vontade de servir e do poder do Um, renúncia produzida por uma divisão no interior da vontade, cindida entre o desejo de liberdade e o desejo de servir.
Dar a palavra a Marilena, mais do que já o fiz, porque uma síntese:
– Ter o corpo e o espírito dos homens – eis o desejo do tirano; ter parte no mando e nos espólios – eis o desejo dos grandes; ter segurança, crenças e bens – eis o desejo do povo. Todavia, porque nenhum desses desejos pode ser plenamente satisfeito no real, a servidão voluntária produzirá um bem imaginário que possa figurar de maneira fantástica o preenchimento do desejo de servir: a figura do Um.
O mais desconcertante no “Discurso da servidão voluntária” é que ele não oferece um programa de ação para a luta contra a tirania. Só há uma proposição: perante o tirano, La Boétie conclama que não se lhe dê o que ele pede, e ele então cairá. Não propõe resistência passiva ou desobediência civil. Propõe que não seja reiterado o ato gerador do tirano. Não servir é resgatar aquilo que é contrário à servidão: a igualdade dos amigos, aos quais a natureza deu o dom precioso da fala.
O “Discurso da servidão voluntária” pode assustar, e assusta. Porque nos afasta de algumas ideias-chave a que nós, da esquerda, estamos acostumados, sobretudo a de romantizar o popular, como se tal ator tivesse um caminho reto, ou como se ele só eventualmente cometesse equívocos, sem que nos debrucemos sobre as razões pelas quais o desejo de servir se sobrepõe ao desejo de liberdade.
Não se analisa o caldo de cultura da sociedade, não se investigam as ambiguidades do movimento popular, tratadas por Marilena Chaui em Conformismo e Resistência. Não se discutem os erros dos partidos políticos, das chamadas vanguardas, que se acreditam capazes de ensinar ao movimento popular o que fazer, às vezes ignorando a cultura mais profunda de tal movimento, de modo especial suas ambiguidades, como já dito.
Uma derrota de tal envergadura, como a última, que não se analisa aqui, há de nos fazer voltar à nossa história, e não só às muitas manifestações de rebeldia em todo o país, mas às estratégias de sobrevivência do povo, suas ambiguidades, quem sabe sua servidão voluntária manifestada em nosso tempo, passados tantos séculos do texto de La Boétie.
Quase quatrocentos anos de escravidão deixam feridas abertas, e condicionam muito o movimento das classes dominadas. A derrota foi eleitoral, e não se pode fugir disso. Mas também cultural, simbólica, e pode ser que levemos tempo para recuperar o terreno. Para tanto, teremos que desenvolver, e muito, o pessimismo da inteligência e ir tateando no deserto para descobrir caminhos que nos levem à conquista da hegemonia.
Seguramente, não soubemos lidar com o fenômeno religioso, não obstante ser o PT, principal partido da esquerda, originário também de comunidades eclesiais de base. Impossível ser indiferente a um crescimento tão significativo das igrejas neopentencostais, ser indiferente a uma movimentação do povo em direção a um abrigo. O mundo, vasto mundo, convida-nos sempre a entender as ambiguidades, como convida Marilena Chaui a penetrar os terrenos da resistência, mas também os do conformismo. Mas evito resvalar em temas específicos.
Marilena Chaui é dessas figuras admiráveis, pela capacidade de reflexão e pela disposição de luta, de ser uma intelectual sempre presente na arena pública, que tem posição, não se esconde, não tem medo do debate. Filosofa politicamente, se é possível dizer assim.
Ao trazer La Boétie à cena em seus estudos e em debates recentes, quer nos alertar.
Chamar para a história.
Escapar do contingente, sem fugir dele.
Ela já disse: encontra no pensamento filosófico uma trilha para enfrentar as indeterminações e opacidades da ação, tanto a ação cotidiana quanto a ação política e cultural. Ao trazer à luz com força, novamente, o “Discurso da servidão voluntária” não está nos convidando à inação, ao contrário. Está dizendo que é preciso conhecer mais nossa gente, ombrear-se com ela, travar a luta político-cultural lado a lado com ela, sendo mestres e alunos, dirigentes e dirigidos, que o exercício da política reclama reflexão, conhecimento, teoria, sem o que não avançaremos na busca de hegemonia, não a do passado, perdida, mas outra, a ser ganha pacientemente.
É preciso compreender o quanto é necessário o mergulho no mundo da cultura, em seu sentido mais amplo, antropológico, sempre, independentemente das flutuações da conjuntura. Sem mudanças culturais, sem mudanças no coração e mentes do nosso povo, não faremos voos consistentes. Ficaremos nos voos de galinha.
Referências bibliográficas
CHAUI, Marilena. Contra a Servidão Voluntária. Homero Santiago (Org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013 (Coleção Escritos de Marilena Chaui, 1).
CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência. Homero Santiago (Org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014 (Coleção Escritos de Marilena Chaui, 4).
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.
2 comentários:
É triste e desalentador ver que a classe média brasileira ao se prostrar servilmente aos interesses da elite, o faz com vistas a conquistar privilégios e não direitos. Paradoxalmente ela ama seus próprios algozes.
Marilena e Emiliano têm a marca da coragem, do amor pela liberdade e de incansável e intransigentemente defenderem a democracia! Belas referências!
COISAS DA REFORMA TRABALHISTA:
No carnaval eu vou fantasiado de trabalhador que negocia com patrão, porque não há nada mais fantasioso que isso.
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