Por André Cintra, no site Vermelho:
Como num juramento típico das máfias do sul da Itália, o clã Bolsonaro declarou guerra à família Marinho. Quem ouve os áudios revelados nesta terça-feira (19) das conversas entre o presidente da República e seu ex-ministro deduz que a vendeta do governo contra a TV Globo está encomendada. É possível concluir, também, que a emissora, como adversária poderosa que é, já se infiltrou no front adversário. É uma guerra sem volta.
Capo di tutti i capi, Jair Bolsonaro (PSL) se sentiu traído ao saber que Gustavo Bebianno, ainda na condição de ministro da Secretaria-Geral da Presidência, agendou reunião com um representante do Grupo Globo. Não um representante qualquer - mas, sim, o vice-presidente de Relações Institucionais, Paulo Tonet Camargo, responsável pelo lobby da empresa em Brasília e presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).
Segundo Bolsonaro, levar “esse cara da Globo dentro do Palácio do Planalto” causaria, em primeiro lugar, um imenso ruído. É o que ele diz em um áudio dirigido no WhatsApp a seu então comandado: “Qual a mensagem que vai dar para as outras emissoras? Que nós estamos (sic) se aproximando da Globo. Então não dá para ter esse tipo de relacionamento”.
Em setembro passado, na reta final das eleições presidenciais, Bolsonaro selou um acordo com o bispo Edir Macedo, dono da TV Record. O próprio Macedo postou no Facebook uma declaração de apoio ao candidato do PSL. O retorno veio logo: em 4 de outubro, a três dias do primeiro turno, o capitão anunciou que não participaria do último debate entre os presidenciáveis, na Globo. No mesmo horário do encontro, concedeu uma entrevista exclusiva de 25 minutos ao Jornal da Record.
Ao site The Intercept, um repórter do portal R7, ligado à Record, resumiu o avanço do acordo: “Passado o primeiro turno, começou o jogo sujo. Nada de pauta negativa ao Bolsonaro, a não ser que seja um assunto de grande visibilidade. A gente pode subir pautas positivas do Haddad, mas geralmente elas não são chamadas na capa nem nas redes sociais. Ou seja: ninguém vê”.
Ao mesmo tempo em que se enlaçava com Edir Macedo, Bolsonaro estabeleceu um vínculo preferencial, repleto de privilégios, com dois jornalistas – José Luiz Datena (Band) e Augusto Nunes (Rádio Jovem Pan). A ambos, desde o primeiro turno, também deu depoimentos longos e exclusivos, aos quais o restante da grande mídia não podia deixar de se referir.
Uma vez eleito, Bolsonaro foi atrás de Silvio Santos e conseguiu a adesão do SBT. Silvio reeditou o chapa-branca Semana do Presidente e foi premiado com a primeira entrevista do presidente depois da posse, ao telejornal SBT Brasil, em 3 de janeiro. Foram 41 minutos de uma prosa amena entre Bolsonaro e os jornalistas Carlos Nascimento, Thiago Nolasco e Débora Bergamasco.
Proibir o BV
No caso da Record, em troca de imensa visibilidade, reportagens favoráveis e entrevistas amigáveis, Bolsonaro prometeu, entre outras coisas, quebrar a hegemonia da Globo sobre a publicidade oficial. Um dos compromissos é reduzir sensivelmente a verba do governo federal destinada à Globo – que, segundo a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, vai de R$ 400 milhões a R$ 500 milhões por ano.
Não parou por aí. O presidente anunciou a elaboração de um projeto de lei para proibir o chamado BV (“bonificação por volume”) – prática criada na década de 1960 por um ex-diretor da própria Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, com o aval de Roberto Marinho. Por meio do BV, as agências recebem uma propina das emissoras – a tal “bonificação” – para fechar um número maior de anúncios.
Essa “comissão”, em média, varia entre 15% e 20% do valor do contrato. Como a Globo detém a maior audiência na televisão brasileira – e como a TV aberta no País não foi superada (ainda) pelas plataformas digitais –, a propina paga pela família Marinho segue imbatível.
Em janeiro, na cerimônia de posse dos novos presidentes dos bancos públicos, um açodado Bolsonaro entregou o jogo: “Vamos buscar junto ao Parlamento brasileiro a questão do BV. Isso tem de deixar de existir. Eu aprendi há pouco o que é isso e fiquei surpreso e até mesmo assustado. Vamos eliminar essas questões para que a imprensa possa cada vez mais fazer um bom trabalho no Brasil”.
Embora o BV seja um expediente escandaloso, a chance de o atual Congresso Nacional proibi-lo é nula. Ainda mais depois que Bolsonaro indicou como relator do projeto Alexandre Frota (PSL-SP), um dos deputados mais rejeitados por seus pares na Câmara Federal. Os filhos de Roberto Marinho já estiveram – digamos assim – bem mais intranquilos com as estratégias do novo governo.
“Pelo amor de Deus”
Os áudios trocados entre Bebianno e Bolsonaro não deixam dúvida de que a Globo é uma espécie de arquirrival. A dica do presidente ao então ministro é se portar como “inimigo passivo” – não dar na cara que a ordem é esmigalhar a emissora da família Marinho. Por isso, a agenda entre Bebianno e Tonet Camargo teria de ser implodida.
“Trazer o inimigo para dentro de casa é outra história. Pô, cê tem que ter essa visão, pelo amor de Deus, cara”, irrita-se um Bolsonaro cada vez mais ameaçador. “Fica complicado a gente ter um relacionamento legal dessa forma... Porque cê tá trazendo o maior cara que me ferrou – antes, durante, agora e após a campanha – para dentro de casa.” Por fim, uma ordem peremptória: “Cancela! Não quero esse cara aí dentro. Ponto final. Um abraço aí!”.
Conquanto o chefe tenha se mostrado inconformado com o gesto de seu aliado junto à Globo, está claro que esse fato, por si só, não foi a razão central da crise entre eles. Bolsonaro diz, ora com sutileza, ora sem meias palavras, que Bebianno estaria vazando à imprensa informações e versões constrangedoras à Presidência.
O capitão tampouco gostou das notícias que apontavam ao menos três conversas entre eles depois das denúncias de que o PSL teria desviado verbas do Fundo Partidário, nas eleições 2018, por meio de candidaturas laranjas. Por fim, desde o início do governo, o ministro se afastava gradualmente dos filhos de Bolsonaro e acenava cada vez mais ao vice-presidente, general Hamilton Mourão, e aos ministros militares.
De todo modo, Jair Bolsonaro desconhecia o fato de que Paulo Tonet Camargo – o executivo da Globo – era um habitué do Palácio do Planalto. Tinha se reunido com outros ministros da “cozinha” do governo, como Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Carlos Alberto Santos Cruz (Secretaria de Governo). Independentemente dos gestos de Bebianno, o “inimigo” já estava dentro de casa havia tempo.
Próximas batalhas
Passada a demissão de Bebianno, sobrevieram áudios reveladores. Tivemos a confirmação de que Bolsonaro e seu filho Carlos mentiram ao negar as conversas entre o presidente e o então ministro. Não restaram mais dúvidas de que o capitão é um homem doentiamente desconfiado e chantagista. De resto, tornou-se pública, agora, a declaração de guerra dos Bolsonaros aos Marinhos – famiglia versus famiglia.
De forma marota, a Globo divulgou uma nota à nesta terça-feira (19) para declarar que “não tem nem cultiva inimigos”. As relações da emissora com governantes, conforme o texto, são “estritamente institucionais e republicanas”. Nesse sentido, as “visitas de diretores do Grupo Globo a autoridades”, além de “rotineiras”, buscam apenas “ouvir todas as vozes de uma sociedade livre, de forma transparente e com agenda pública”. Nessa guerra troglodita – aparências e dissimulações à parte –, a Globo passa a ter o trunfo de um bolsonarista arrependido, com muito a falar e esclarecer.
Se vivesse na Sicília da Cosa Nostra, da Nápoles da Camorra, na Calábria da ‘Ndrangheta ou na Puglia da Sacra Corona Unita, Bebianno seria o protótipo de homem-bomba a ser implacavelmente morto pela máfia. Mas, na Brasília de Bolsonaro, o ex-ministro pode refletir sem pressa sobre seu papel nos rumos do País. Contrária ou favorável à Globo, a palavra de ordem “Fala, Bebianno” é muito bem-vinda.
Como num juramento típico das máfias do sul da Itália, o clã Bolsonaro declarou guerra à família Marinho. Quem ouve os áudios revelados nesta terça-feira (19) das conversas entre o presidente da República e seu ex-ministro deduz que a vendeta do governo contra a TV Globo está encomendada. É possível concluir, também, que a emissora, como adversária poderosa que é, já se infiltrou no front adversário. É uma guerra sem volta.
Capo di tutti i capi, Jair Bolsonaro (PSL) se sentiu traído ao saber que Gustavo Bebianno, ainda na condição de ministro da Secretaria-Geral da Presidência, agendou reunião com um representante do Grupo Globo. Não um representante qualquer - mas, sim, o vice-presidente de Relações Institucionais, Paulo Tonet Camargo, responsável pelo lobby da empresa em Brasília e presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).
Segundo Bolsonaro, levar “esse cara da Globo dentro do Palácio do Planalto” causaria, em primeiro lugar, um imenso ruído. É o que ele diz em um áudio dirigido no WhatsApp a seu então comandado: “Qual a mensagem que vai dar para as outras emissoras? Que nós estamos (sic) se aproximando da Globo. Então não dá para ter esse tipo de relacionamento”.
Em setembro passado, na reta final das eleições presidenciais, Bolsonaro selou um acordo com o bispo Edir Macedo, dono da TV Record. O próprio Macedo postou no Facebook uma declaração de apoio ao candidato do PSL. O retorno veio logo: em 4 de outubro, a três dias do primeiro turno, o capitão anunciou que não participaria do último debate entre os presidenciáveis, na Globo. No mesmo horário do encontro, concedeu uma entrevista exclusiva de 25 minutos ao Jornal da Record.
Ao site The Intercept, um repórter do portal R7, ligado à Record, resumiu o avanço do acordo: “Passado o primeiro turno, começou o jogo sujo. Nada de pauta negativa ao Bolsonaro, a não ser que seja um assunto de grande visibilidade. A gente pode subir pautas positivas do Haddad, mas geralmente elas não são chamadas na capa nem nas redes sociais. Ou seja: ninguém vê”.
Ao mesmo tempo em que se enlaçava com Edir Macedo, Bolsonaro estabeleceu um vínculo preferencial, repleto de privilégios, com dois jornalistas – José Luiz Datena (Band) e Augusto Nunes (Rádio Jovem Pan). A ambos, desde o primeiro turno, também deu depoimentos longos e exclusivos, aos quais o restante da grande mídia não podia deixar de se referir.
Uma vez eleito, Bolsonaro foi atrás de Silvio Santos e conseguiu a adesão do SBT. Silvio reeditou o chapa-branca Semana do Presidente e foi premiado com a primeira entrevista do presidente depois da posse, ao telejornal SBT Brasil, em 3 de janeiro. Foram 41 minutos de uma prosa amena entre Bolsonaro e os jornalistas Carlos Nascimento, Thiago Nolasco e Débora Bergamasco.
Proibir o BV
No caso da Record, em troca de imensa visibilidade, reportagens favoráveis e entrevistas amigáveis, Bolsonaro prometeu, entre outras coisas, quebrar a hegemonia da Globo sobre a publicidade oficial. Um dos compromissos é reduzir sensivelmente a verba do governo federal destinada à Globo – que, segundo a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, vai de R$ 400 milhões a R$ 500 milhões por ano.
Não parou por aí. O presidente anunciou a elaboração de um projeto de lei para proibir o chamado BV (“bonificação por volume”) – prática criada na década de 1960 por um ex-diretor da própria Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, com o aval de Roberto Marinho. Por meio do BV, as agências recebem uma propina das emissoras – a tal “bonificação” – para fechar um número maior de anúncios.
Essa “comissão”, em média, varia entre 15% e 20% do valor do contrato. Como a Globo detém a maior audiência na televisão brasileira – e como a TV aberta no País não foi superada (ainda) pelas plataformas digitais –, a propina paga pela família Marinho segue imbatível.
Em janeiro, na cerimônia de posse dos novos presidentes dos bancos públicos, um açodado Bolsonaro entregou o jogo: “Vamos buscar junto ao Parlamento brasileiro a questão do BV. Isso tem de deixar de existir. Eu aprendi há pouco o que é isso e fiquei surpreso e até mesmo assustado. Vamos eliminar essas questões para que a imprensa possa cada vez mais fazer um bom trabalho no Brasil”.
Embora o BV seja um expediente escandaloso, a chance de o atual Congresso Nacional proibi-lo é nula. Ainda mais depois que Bolsonaro indicou como relator do projeto Alexandre Frota (PSL-SP), um dos deputados mais rejeitados por seus pares na Câmara Federal. Os filhos de Roberto Marinho já estiveram – digamos assim – bem mais intranquilos com as estratégias do novo governo.
“Pelo amor de Deus”
Os áudios trocados entre Bebianno e Bolsonaro não deixam dúvida de que a Globo é uma espécie de arquirrival. A dica do presidente ao então ministro é se portar como “inimigo passivo” – não dar na cara que a ordem é esmigalhar a emissora da família Marinho. Por isso, a agenda entre Bebianno e Tonet Camargo teria de ser implodida.
“Trazer o inimigo para dentro de casa é outra história. Pô, cê tem que ter essa visão, pelo amor de Deus, cara”, irrita-se um Bolsonaro cada vez mais ameaçador. “Fica complicado a gente ter um relacionamento legal dessa forma... Porque cê tá trazendo o maior cara que me ferrou – antes, durante, agora e após a campanha – para dentro de casa.” Por fim, uma ordem peremptória: “Cancela! Não quero esse cara aí dentro. Ponto final. Um abraço aí!”.
Conquanto o chefe tenha se mostrado inconformado com o gesto de seu aliado junto à Globo, está claro que esse fato, por si só, não foi a razão central da crise entre eles. Bolsonaro diz, ora com sutileza, ora sem meias palavras, que Bebianno estaria vazando à imprensa informações e versões constrangedoras à Presidência.
O capitão tampouco gostou das notícias que apontavam ao menos três conversas entre eles depois das denúncias de que o PSL teria desviado verbas do Fundo Partidário, nas eleições 2018, por meio de candidaturas laranjas. Por fim, desde o início do governo, o ministro se afastava gradualmente dos filhos de Bolsonaro e acenava cada vez mais ao vice-presidente, general Hamilton Mourão, e aos ministros militares.
De todo modo, Jair Bolsonaro desconhecia o fato de que Paulo Tonet Camargo – o executivo da Globo – era um habitué do Palácio do Planalto. Tinha se reunido com outros ministros da “cozinha” do governo, como Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Carlos Alberto Santos Cruz (Secretaria de Governo). Independentemente dos gestos de Bebianno, o “inimigo” já estava dentro de casa havia tempo.
Próximas batalhas
Passada a demissão de Bebianno, sobrevieram áudios reveladores. Tivemos a confirmação de que Bolsonaro e seu filho Carlos mentiram ao negar as conversas entre o presidente e o então ministro. Não restaram mais dúvidas de que o capitão é um homem doentiamente desconfiado e chantagista. De resto, tornou-se pública, agora, a declaração de guerra dos Bolsonaros aos Marinhos – famiglia versus famiglia.
De forma marota, a Globo divulgou uma nota à nesta terça-feira (19) para declarar que “não tem nem cultiva inimigos”. As relações da emissora com governantes, conforme o texto, são “estritamente institucionais e republicanas”. Nesse sentido, as “visitas de diretores do Grupo Globo a autoridades”, além de “rotineiras”, buscam apenas “ouvir todas as vozes de uma sociedade livre, de forma transparente e com agenda pública”. Nessa guerra troglodita – aparências e dissimulações à parte –, a Globo passa a ter o trunfo de um bolsonarista arrependido, com muito a falar e esclarecer.
Se vivesse na Sicília da Cosa Nostra, da Nápoles da Camorra, na Calábria da ‘Ndrangheta ou na Puglia da Sacra Corona Unita, Bebianno seria o protótipo de homem-bomba a ser implacavelmente morto pela máfia. Mas, na Brasília de Bolsonaro, o ex-ministro pode refletir sem pressa sobre seu papel nos rumos do País. Contrária ou favorável à Globo, a palavra de ordem “Fala, Bebianno” é muito bem-vinda.
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