Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Entre as muitas análises do governo Bolsonaro, há poucas concordâncias. Uma delas é que o país está submetido a um projeto sem organicidade, que aponta para pelo menos três grupos de interesses e um coringa fardado. Não se trata da uma divisão programática, mas de uma geleia compósita que, por isso mesmo, conseguiu arregimentar atores de diversas ancoragens sociais, de rematados estúpidos a burocratas aparentemente racionais.
O primeiro grupo estaria ligado aos mais baixos instintos do reacionarismo, com defesa de propostas antimodernas, atrasadas e discriminatórias, amparada por um ideário conservador e religioso. Neste aspecto, o país sofre ações deletérias no campo da educação, cultura, relações internacionais e valores éticos, que teriam na família tradicional o seu suporte e na escola sua agência prioritária de infiltração ideológica.
O segundo aspecto seria o econômico, falsamente vendido como defesa do liberalismo empreendedor e abertura a mercados mais reconhecidos. Na verdade esse projeto abre espaço para a manutenção dos ganhos do setor financeiro e para a desnacionalização do patrimônio nacional. Em Davos, Bolsonaro fez o que dele se esperava, o papelão de oferecer o país, suas riquezas e a dignidade de seus trabalhadores ao apetite dos investidores. Poucos dias depois, o crime da Vale deu a dimensão real da irresponsabilidade do presidente.
O terceiro setor de atuação do governo se dirige para a Justiça. É um campo amorfo, que congregou a principal bandeira eleitoral do presidente – e o sentimento real de indignação de grande parte da sociedade –, na forma de um enfrentamento ao crime comum e à corrupção do setor público. Armar o cidadão foi a primeira medida. Em seguida, sob o comando do juiz Sérgio Moro, foi apresentado um pacote anticrime, que sedimenta a violência como resposta à violência e enfraquece o direito como expressão da justiça.
Pairando com um mantenedor dos rumos das três esferas de ação, os militares garantiriam a caução final do projeto. Seja por meio de seus representantes em todas as áreas da administração, seja pela figura do vice-presidente, que parece anunciar o tempo todo que não recusaria o chamado para intervir, caso seja necessário. Quando um militar de histórico autoritário parece ser a opção mais moderada, passou a hora da sirene da democracia soar alto.
A recente condenação de Lula pela juíza substituta de Moro em Curitiba, Gabriela Hardt, retoma o fio que veio a dar na escolha do atual ministro da Justiça. Nenhuma das ações acima descritas seria possível com a presença do ex-presidente no cenário político nacional. Lula é a força viva de um projeto de sociedade que se opõe radicalmente ao que vem sendo implantado no país. Nem mesmo a vitória eleitoral foi suficiente para apagar sua influência, é fundamental que ele seja destruído como político, formulador e pessoal humana.
Não é um acaso que a execução da pena de Lula siga parâmetros de exceção. Imposição de silêncio com proibição de entrevistas (o que é concedido a outros condenados); impedimento de participar do sepultamento do irmão (como garantido explicitamente na lei); proibição de visitas e apoio espiritual; desrespeito e ameaças na condução de depoimentos; descumprimento de liminares por meio de chicanas. Para mostrar que ele é um cidadão como outro qualquer, é tratado como um cidadão diferente de todos os outros.
Sem falar os erros processuais, nas gafes jurídicas, na ideologização de sentenças, nos seguidos reconhecimentos de que não há provas cabais, mas convicções. E ainda na aceitação de delações quando são condenatórias e seu descarte quando corroboram a defesa. Na crítica ferrenha por parte da comunidade jurídica nacional e internacional. A nova condenação acrescentou ainda um aumento de pena que extrapola a própria dosimetria histórica dos inquéritos da Lava-Jato.
Se o objetivo parece claro – destruir Lula e o que ele representa –, a forma como foi articulado o uso do sistema judiciário para influir diretamente na condução do Estado brasileiro foi aparentemente mais sutil. Era preciso que a linha de frente do novo governo contasse com pessoas capazes de bancar, por força de seus atributos técnicos e popularidade, a abrangência das ações necessárias. É onde entram Sérgio Moro e Paulo Guedes.
Representantes das forças econômicas e jurídicas de um governo inconsistente, eles se revestiram do papel da racionalidade num mar de superstições e ridículo. Afinal, é legítimo e até democrático atuar no campo da discordância. Dado o norte das urnas, os dois ministros foram destacados para apresentar à sociedade e às instituições a tradução de propósitos gerais em projetos objetivos. Os dois primeiros movimentos são a reforma da Previdência, no campo econômico, e o pacote anticrime, na área da justiça.
No entanto, a semelhança se dissolve rápido. Guedes pode arguir, em meio a todos os debates e pressões, que sua proposta tem consistência teórica e viabilidade prática, carregando como fiador uma visão de mundo própria, seja ela de Chicago ou de sua inspiração no período da ditadura chilena. Bolsonaro não alcança essa dimensão, preferiu assumir apenas o que condena em todo mundo (“viés ideológico”) e deixar o frentista assumir o posto da economia.
Guedes, que não representa o governo Bolsonaro, mas o mercado, tem a liberdade de esticar a corda até o limite e de pedir o boné, se for contrariado, e deixar o mico com o capitão. Para o presidente, a economia é apenas um detalhe. Ele não percebeu que foi eleito pelos argumentos do reacionarismo moral, mas que vai governar para o dono da banca, e não para o cidadão de camisa canarinho.
O caso de Moro é diferente. Ao deixar de lado a magistratura, depois de interferir indevidamente na eleição, foi além da fraude da entrada para se tornar uma espécie de garantidor do projeto de permanência. Ocorre que se Bolsonaro é petiz em economia, na área da justiça, mesmo com posturas hediondas, julga-se especialista. Nesse sentido, Moro não pode se autonomear condutor, para passageiro do trem da irracionalidade e violência em que embarcou com sua vaidade ilimitada.
O presidente e sua família fizeram carreira com essa pauta. Têm histórico de defesa de torturadores, de ações policiais violentas e até de proximidade ainda não totalmente esclarecida com milícias, como revelou recentemente a investigação da ação de Flávio Bolsonaro na Alerj. Quando Moro toma a frente de um projeto anticrime, ele pode e deve ser cobrado pelas ações de seu chefe e familiares. Não pode dizer que não sabia e que são atos que extrapolam a suas responsabilidades.
Moro está no Ministério da Justiça porque condenou Lula em processo questionável e ainda não concluído em todas as instâncias. Quando seu pacote defende a prisão depois da decisão em segunda instância, passando por cima da Constituição Federal, não se trata da defesa de um princípio, mas de uma justificativa pretérita para uma ação para a qual se empenhou acima de sua competência funcional.
Possivelmente o pacote dos sonhos de Moro fosse apenas uma maquiagem no projeto do Ministério Público para endurecer o combate à corrupção do PT e aos crimes eleitorais. Mas teve que agasalhar a posse de quatro armas por cidadão e o excludente de ilicitude, uma forma de esconder a licença para matar muito além da legítima defesa. Sem falar no punitivismo exacerbado e fora do tempo e no agravamento anunciado da superpopulação carcerária, alimentando uma das matrizes mais cruéis do crime organizado. O juiz da Lava-Jato aceitou enfiar a faca na caveira.
Sergio Moro não pode, como Guedes, pedir para sair caso discorde de Bolsonaro em matéria referente à justiça ou combate ao crime. Ele, como todo mundo, sabia o que o chefe defende nessa área. Não pode, muito menos, se julgar que foi constrangido em seu juízo moral. Ele está lá para isso: é o juízo moral do governo. O ministro pode virar as costas para a imprensa em coletivas e deixar de responder aos deputados, mesmo quando vai ao Congresso em busca de apoio. Difícil vai ser olhar-se no espelho e perceber a sombra que vai aumentando a mancha na sua trajetória.
O primeiro grupo estaria ligado aos mais baixos instintos do reacionarismo, com defesa de propostas antimodernas, atrasadas e discriminatórias, amparada por um ideário conservador e religioso. Neste aspecto, o país sofre ações deletérias no campo da educação, cultura, relações internacionais e valores éticos, que teriam na família tradicional o seu suporte e na escola sua agência prioritária de infiltração ideológica.
O segundo aspecto seria o econômico, falsamente vendido como defesa do liberalismo empreendedor e abertura a mercados mais reconhecidos. Na verdade esse projeto abre espaço para a manutenção dos ganhos do setor financeiro e para a desnacionalização do patrimônio nacional. Em Davos, Bolsonaro fez o que dele se esperava, o papelão de oferecer o país, suas riquezas e a dignidade de seus trabalhadores ao apetite dos investidores. Poucos dias depois, o crime da Vale deu a dimensão real da irresponsabilidade do presidente.
O terceiro setor de atuação do governo se dirige para a Justiça. É um campo amorfo, que congregou a principal bandeira eleitoral do presidente – e o sentimento real de indignação de grande parte da sociedade –, na forma de um enfrentamento ao crime comum e à corrupção do setor público. Armar o cidadão foi a primeira medida. Em seguida, sob o comando do juiz Sérgio Moro, foi apresentado um pacote anticrime, que sedimenta a violência como resposta à violência e enfraquece o direito como expressão da justiça.
Pairando com um mantenedor dos rumos das três esferas de ação, os militares garantiriam a caução final do projeto. Seja por meio de seus representantes em todas as áreas da administração, seja pela figura do vice-presidente, que parece anunciar o tempo todo que não recusaria o chamado para intervir, caso seja necessário. Quando um militar de histórico autoritário parece ser a opção mais moderada, passou a hora da sirene da democracia soar alto.
A recente condenação de Lula pela juíza substituta de Moro em Curitiba, Gabriela Hardt, retoma o fio que veio a dar na escolha do atual ministro da Justiça. Nenhuma das ações acima descritas seria possível com a presença do ex-presidente no cenário político nacional. Lula é a força viva de um projeto de sociedade que se opõe radicalmente ao que vem sendo implantado no país. Nem mesmo a vitória eleitoral foi suficiente para apagar sua influência, é fundamental que ele seja destruído como político, formulador e pessoal humana.
Não é um acaso que a execução da pena de Lula siga parâmetros de exceção. Imposição de silêncio com proibição de entrevistas (o que é concedido a outros condenados); impedimento de participar do sepultamento do irmão (como garantido explicitamente na lei); proibição de visitas e apoio espiritual; desrespeito e ameaças na condução de depoimentos; descumprimento de liminares por meio de chicanas. Para mostrar que ele é um cidadão como outro qualquer, é tratado como um cidadão diferente de todos os outros.
Sem falar os erros processuais, nas gafes jurídicas, na ideologização de sentenças, nos seguidos reconhecimentos de que não há provas cabais, mas convicções. E ainda na aceitação de delações quando são condenatórias e seu descarte quando corroboram a defesa. Na crítica ferrenha por parte da comunidade jurídica nacional e internacional. A nova condenação acrescentou ainda um aumento de pena que extrapola a própria dosimetria histórica dos inquéritos da Lava-Jato.
Se o objetivo parece claro – destruir Lula e o que ele representa –, a forma como foi articulado o uso do sistema judiciário para influir diretamente na condução do Estado brasileiro foi aparentemente mais sutil. Era preciso que a linha de frente do novo governo contasse com pessoas capazes de bancar, por força de seus atributos técnicos e popularidade, a abrangência das ações necessárias. É onde entram Sérgio Moro e Paulo Guedes.
Representantes das forças econômicas e jurídicas de um governo inconsistente, eles se revestiram do papel da racionalidade num mar de superstições e ridículo. Afinal, é legítimo e até democrático atuar no campo da discordância. Dado o norte das urnas, os dois ministros foram destacados para apresentar à sociedade e às instituições a tradução de propósitos gerais em projetos objetivos. Os dois primeiros movimentos são a reforma da Previdência, no campo econômico, e o pacote anticrime, na área da justiça.
No entanto, a semelhança se dissolve rápido. Guedes pode arguir, em meio a todos os debates e pressões, que sua proposta tem consistência teórica e viabilidade prática, carregando como fiador uma visão de mundo própria, seja ela de Chicago ou de sua inspiração no período da ditadura chilena. Bolsonaro não alcança essa dimensão, preferiu assumir apenas o que condena em todo mundo (“viés ideológico”) e deixar o frentista assumir o posto da economia.
Guedes, que não representa o governo Bolsonaro, mas o mercado, tem a liberdade de esticar a corda até o limite e de pedir o boné, se for contrariado, e deixar o mico com o capitão. Para o presidente, a economia é apenas um detalhe. Ele não percebeu que foi eleito pelos argumentos do reacionarismo moral, mas que vai governar para o dono da banca, e não para o cidadão de camisa canarinho.
O caso de Moro é diferente. Ao deixar de lado a magistratura, depois de interferir indevidamente na eleição, foi além da fraude da entrada para se tornar uma espécie de garantidor do projeto de permanência. Ocorre que se Bolsonaro é petiz em economia, na área da justiça, mesmo com posturas hediondas, julga-se especialista. Nesse sentido, Moro não pode se autonomear condutor, para passageiro do trem da irracionalidade e violência em que embarcou com sua vaidade ilimitada.
O presidente e sua família fizeram carreira com essa pauta. Têm histórico de defesa de torturadores, de ações policiais violentas e até de proximidade ainda não totalmente esclarecida com milícias, como revelou recentemente a investigação da ação de Flávio Bolsonaro na Alerj. Quando Moro toma a frente de um projeto anticrime, ele pode e deve ser cobrado pelas ações de seu chefe e familiares. Não pode dizer que não sabia e que são atos que extrapolam a suas responsabilidades.
Moro está no Ministério da Justiça porque condenou Lula em processo questionável e ainda não concluído em todas as instâncias. Quando seu pacote defende a prisão depois da decisão em segunda instância, passando por cima da Constituição Federal, não se trata da defesa de um princípio, mas de uma justificativa pretérita para uma ação para a qual se empenhou acima de sua competência funcional.
Possivelmente o pacote dos sonhos de Moro fosse apenas uma maquiagem no projeto do Ministério Público para endurecer o combate à corrupção do PT e aos crimes eleitorais. Mas teve que agasalhar a posse de quatro armas por cidadão e o excludente de ilicitude, uma forma de esconder a licença para matar muito além da legítima defesa. Sem falar no punitivismo exacerbado e fora do tempo e no agravamento anunciado da superpopulação carcerária, alimentando uma das matrizes mais cruéis do crime organizado. O juiz da Lava-Jato aceitou enfiar a faca na caveira.
Sergio Moro não pode, como Guedes, pedir para sair caso discorde de Bolsonaro em matéria referente à justiça ou combate ao crime. Ele, como todo mundo, sabia o que o chefe defende nessa área. Não pode, muito menos, se julgar que foi constrangido em seu juízo moral. Ele está lá para isso: é o juízo moral do governo. O ministro pode virar as costas para a imprensa em coletivas e deixar de responder aos deputados, mesmo quando vai ao Congresso em busca de apoio. Difícil vai ser olhar-se no espelho e perceber a sombra que vai aumentando a mancha na sua trajetória.
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