Achar que Lula foi condenado e encarcerado por causa de atos de corrupção é a mesma coisa que acreditar que os EUA estão intervindo na Venezuela em nome da democracia.
Quem acredita nessas duas coisas deve acreditar também em kit gay, mamadeira de piroca e que Trump é o novo Messias do Ocidente.
A comparação entre os dois fatos não é casual. Eles estão inter-relacionados.
Ambos não podem ser entendidos plenamente sem se compreender a grande disputa geoestratégica e geopolítica que se desenvolve no mundo e em nosso subcontinente.
Os EUA definiram a grande disputa pelo poder mundial com China, Rússia e aliados como seu principal objetivo geoestratégico. Eles vêm com apreensão o crescimento exponencial da China no campo econômico e a articulação política de países emergentes no cenário mundial, notadamente por meio dos BRICS.
Do seu ponto de vista, isso representa uma ameaça grave à ordem mundial unilateralista por eles defendida.
Querem recuperar e consolidar a hegemonia ameaçada.
Os EUA sabem que quem dominar a supercontinente da Eurásia dominará o mundo.
Essa tese foi exposta claramente por Zbigniew Brzezinski, que publicou, na Foreign Affairs, um artigo intitulado "Uma Geoestratégia para a Eurásia", que já antecipava algumas teses de seu livro "O Grande Tabuleiro de Xadrez".
A geoestratégia concebida por Brzezinski implicava várias ações de longo prazo concomitantes.
Em primeiro lugar, o fortalecimento da Europa unida, sob a liderança dos EUA.
Para tanto, Brzezinski já sugeria, inclusive, a celebração de um tratado de livre comércio transatlântico, como o anunciado recentemente.
Em segundo, o fortalecimento das novas nações independentes da Ásia Central e do Leste Europeu, que surgiram após o colapso da União Soviética, e a consequente expansão da OTAN até a Ucrânia.
Em terceiro lugar, e mais importante, a geoestratégia de Brzezinski previa o enfraquecimento da Rússia e o enquadramento de sua política externa nos imperativos geopolíticos dos EUA e seus aliados.
Havia dois pressupostos nessa geoestratégia, delineada no início dos anos 1990.
O primeiro era o de que o Japão e alguns tigres asiáticos, como a Coreia do Sul e Taiwan, dominariam o Leste da Ásia e seriam os polos dinâmicos do Pacífico. O segundo era o de que a Rússia continuaria a se fragilizar e se tornaria dependente de outras potências regionais, sem conseguir projetar interesses próprios.
Obviamente, os dois pressupostos não se verificaram.
A China se transformou no grande polo econômico dinâmico não apenas da Ásia, mas de todo o mundo.
E a Rússia de Putin se reergueu como potência militar e política com voo próprio.
Hoje, quem está ganhando a disputa pela Eurásia, e pelo mundo, são China, Rússia e aliados.
A China vai integrar e expandir a infraestrutura da Eurásia com sua "nova rota da seda", consolidando-se definitivamente como o grande motor econômico do supercontinente.
Já a Rússia criou a União Econômica Eurasiática (Rússia, Cazaquistão e Belarus, com perspectiva de entrada da Armênia e do Quirguistão) e realizou movimento amplo de reorientação do desenvolvimento do país em direção à Ásia, o chamado "pivot para o leste", o qual inclui, é óbvio, forte aliança com Beijing.
Saliente-se que China e Rússia estão empenhados no fortalecimento da Organização para a Cooperação de Xangai (SCO, na sigla em inglês), composta por China, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão, Uzbequistão, Índia e Paquistão.
Embora a finalidade principal dessa cooperação seja a segurança, com a possível formação de uma organização antagônica à OTAN, ela também se dedica a discutir temas como a substituição do dólar como moeda cambial e a formação de um cartel de gás natural.
Assim, no "grande tabuleiro de xadrez" de Brzezinski, os EUA estão jogando com as pretas, em posição nitidamente defensiva.
Mas há uma região na qual os EUA estão em plena ofensiva, jogando com as brancas, e prestes a dar um xeque-mate. É a América Latina.
De fato, os EUA, que consideram a América Latina como seu quintal desde o tempo de Theodore Roosevelt, estão empenhadíssimos em reconquistar a hegemonia inconteste nesta região.
A pressão para que os países da região abandonem alianças com países emergentes, "desinvestam" na integração regional e passem a inserir-se na órbita geoestratégica dos EUA é avassaladora.
As mudanças de regime ocorridas na região nos últimos anos, embora tenham sido desencadeadas fundamentalmente por fatores internos, têm o dedo de interesses norte-americanos, até mesmo por força do hábito.
Em estudo publicado na Harvard Review of Latin America, em 2005, menciona-se que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA conseguiram êxito em mudar governos da região 41 vezes, o que dá uma média de uma mudança de governo a cada 28 meses. Ressalte-se que, nesse estudo publicado na Universidade de Harvard, não se analisa as possíveis intervenções recentes, como as ocorridas em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016).
No caso específico do Brasil, há evidências cada vez maiores de que os EUA participaram ativamente da operação Lava Jato, que foi instrumental para o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma e para a prisão do ex-presidente Lula, bem como para destruir a cadeia nacional de petróleo e gás, ensejar a venda, a preços aviltados, das reservas do pré-sal, solapar a nossa competitiva construção civil pesada e comprometer projetos estratégicos na área da defesa, como o relativo à construção de submarinos.
Será que foi apenas por acaso que o Brasil de Dilma Rousseff e a Petrobras tenham sido dois dos maiores alvos da espionagem da NSA?
Entretanto, esse foi apenas o início da tarefa de desmonte político, econômico e geopolítico que se pretende fazer no Brasil.
Ao governo Bolsonaro lhe será encarregada a segunda etapa desse processo.
Essa segunda etapa inclui pontos cruciais, como fazer uma reforma da Previdência ampla e radical, propiciando capitalização de bancos privados, desmontar o arremedo de Estado do Bem-Estar instituído pela CF de 1988, privatizar o que restou dos mecanismos estatais de intervenção na economia (bancos públicos, Petrobras, Eletrobrás), vender ativos estratégicos a preços convidativos, abrir a economia a produtos e serviços estrangeiros e, sobretudo, consolidar uma política externa de alinhamento canino aos interesses dos EUA e aliados.
Este último ponto é fundamental.
Por sua dimensão, Lula não é apenas um preso político do Brasil.
Ele é um preso político internacional.
Ele foi encarcerado também pelos interesses geoestratégicos de EUA e aliados.
Aliás, quando a África do Sul prendeu Mandela e outros líderes do ANC, seu partido, os EUA, o Reino Unido, a França, Israel etc. apoiaram sem vacilar o governo do apartheid.
Em 1986, o governo Reagan até incluiu o ANC como um dos grupos terroristas a serem combatidos internacionalmente.
Havia o medo de que Mandela e seu partido influenciassem toda a África e "países do Terceiro Mundo".
Coisa semelhante ocorre com Lula. Embora moderado, Lula foi fundamental para a integração regional, para a criação dos BRICS, para articulação entre países sul-americanos e árabes, para a articulação de países emergentes em diversos foros, etc.
Lula foi, enfim, um líder assertivo e poderoso na transformação de uma ordem mundial unilateralista, centrada apenas nos interesses dos EUA e aliados, para uma ordem internacional mais multipolar e democrática.
Lula, por exemplo, jamais teria dado aval à aventura belicosa que se ensaia contra a Venezuela.
Lula nunca hostilizou os EUA, mas também nunca se curvou a seus interesses.
Ao contrário de alguns, Lula realmente colocava o Brasil "acima de tudo". Esse foi o grande crime de Lula.
Sejamos francos: face à sabida cooperação estreita entre a Lava Jato e as autoridades norte-americanas, será que Lula teria sido preso sem o aval e o estímulo dos EUA?
Para quem deseja o retorno de uma hegemonia inconteste de EUA e aliados e o combate sem tréguas contra o "marxismo cultural", Lula é símbolo e ameaça, como Mandela foi um dia, antes de ser retirado das masmorras da Ilha Robben e ter conduzido seu país à reconciliação.
Para interesses nacionais e internacionais poderosos é fundamental que Lula permaneça preso.
Preso e incomunicável, na sua solitária em Curitiba. Virão tantas condenações quanto forem necessárias.
Em algum lugar obscuro do Departamento de Estado, alguém deve ter dito: Delenda est Lula!
Por aqui, em alguma cloaca palaciana, alguém deve ter respondido: Brasil abaixo de tudo!
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