Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Qual a principal agenda brasileira? A reforma da Previdência? O combate à corrupção? A retomada da economia e o combate ao desemprego? A melhoria da educação pública? A garantia de saúde de qualidade à população? Nada disso. São as armas. Não há nada mais importante no Brasil que revólveres, pistolas, fuzis e submetralhadoras.
Os fatos falam por si. O principal gesto da campanha do atual presidente foi a imitação da posse de uma arma, feita com os dedos, dirigida contra os opositores, ou mesmo a simulação de uma rajada de metralhadora contra a multidão, em nome do extermínio da “petralhada”. Tratada como uma brincadeira ou deboche, a atitude não precisa de metáfora: identifica o diferente como inimigo; o debate como guerra; o extermínio físico no lugar do argumento.
Podem dizer que se tratava de campanha. Mas, depois da eleição, piorou. O primeiro decreto presidencial, de 15 de janeiro, flexibilizava a posse legal de armas, no limite absurdo de quatro artefatos por cidadão (cifra a ser aumentada no caso do campo). Tratava-se de promessa eleitoral vociferada incansavelmente. Não era a única nem a mais importante, mas foi a primeira, e até agora, a única a ser cumprida.
O superministro Moro ficou com o constrangimento de defender a medida em público, como se o decreto fosse um pedágio para dar caução ao seu pacote anticrime. Fez comentários desonestos sobre estatísticas que relacionam armas e aumento de criminalidade e tentou jogar a fatura nas promessas que não eram dele. Foi, no mínimo, fraco e, no limite, cínico. Tudo para manter seu projeto paralelo de comando do Estado a partir do domínio das instâncias judiciárias. Ele sabe aonde quer chegar, mas não percebe que depositou sua ambição em uma pessoa inconfiável.
O ex-juiz voltaria e ser frágil ou leniente pouco adiante, ao retirar um convite feito a uma especialista em segurança pública para integrar um conselho ligado à pasta. Ilona Szabó é conhecida exatamente por sua crítica ao armamentismo, o que irritou a ala balística do bolsonarismo midiático. Moro tomou uma invertida e negou suas convicções pela segunda vez. Não demoraria a voltar atrás ao ouvir o canto do galo das conveniências pela terceira vez, aceitando incorporar em seu projeto a autorização para matar para policiais em ação, ancorado em puro subjetivismo.
As armas seguiram dominando a pauta. Nem bem a flexibilização foi anunciada, a bancada da bala já se anima na próxima etapa de seu propósito de armar o país não apenas em casa ou no trabalho. Depois da posse, vem aí a discussão sobre o porte no faroeste das ruas, numa estratégia hipócrita de dividir o projeto para evitar o debate público. Dissolvendo a questão da segurança pública em autodefesa armada, o governo toca fogo na violência, jogando gasolina e tirando sua responsabilidade da mira.
As armas voltariam a brilhar no noticiário na figura truculenta do policial que conduziu Lula ao enterro do neto, num despropósito absurdo entre a dor e a exibição de força bruta de um arsenal não condizente com a situação. Sem falar da inspiração, sempre buscada de forma subserviente, em emular as forças militares dos EUA, presente no fardamento do soldado.
O anúncio da prisão dos assassinos de Marielle Franco, sem que os mandantes fossem identificados, mostrou a outra face do protagonismo das armas no atual governo. Um dos criminosos, ligado às milícias de forma orgânica, mantinha estoque de nada menos que 117 fuzis desmontados, esperando oportunidade de negócio. Uma mistura explosiva de armas, ex-policiais afastados por corrupção, vínculo indiretos de milicianos com o gabinete parlamentar do filho do presidente, movimentações financeiras atípicas e impunidade negociada por quase um ano.
Mais armas, desta vez no criado-mudo. Na quarta-feira, dia 13, em conversa com jornalistas escolhidos para dividir o café da manhã, Bolsonaro confessou que dorme com armas ao lado da cama. Não se sente seguro nem mesmo no Palácio da Alvorada, cercado de agentes por todos os lados. O que dirá de sua casa paisana no condomínio da Barra da Tijuca, com a vizinhança pouco recomendável de um assassino de aluguel (o mesmo dos 117 fuzis). Haja revólver.
No dia seguinte à confissão do conteúdo de sua mesa de cabeceira, as armas tomariam de novo a atenção do país, com o massacre numa escola em Suzano, São Paulo. Os dois jovens, que mataram oito pessoas e se suicidaram eram fascinados por armas e tomados pelo discurso de ódio. Foram duplamente armados. O fato de a brutalidade ocorrer numa escola pública chama ainda mais atenção. Há, novamente, um comportamento imitativo em relação aos Estados Unidos, e um sinal da importância devida à educação na construção da cidadania.
Facilitar a posse de armas e desprestigiar a educação em favor de valores ideológicos conservadores ou de mercado é pavimentar o cenário para novas tragédias. A defesa que partiu de alguns bolsonaristas - de que professores e funcionários com armas evitariam as mortes - é um caso de desconhecimento da dinâmica dos atos de violência ou absoluta má fé. Se houvesse reação, em meio à surpresa da situação, se instalaria uma praça de guerra.
O Brasil é o país que mais mata por armas de fogo em todo o mundo. As cerca de 17 milhões de armas (mais da metade delas ilegais) exterminam a vida de mais de 43 mil pessoas a cada ano. Não precisamos ter modéstia em matéria de brutalidade: os EUA, que ficam em segundo lugar, cravam 37 mil mortes por armas de fogo. Os números brasileiros registram aumento desde os anos 1980. Só houve um pequeno decréscimo a partir de 2003, com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, tragicamente retomado alguns anos depois.
Mas Moro garante que estatísticas são polêmicas, que devem ser consideradas com cuidado, sobretudo quando confrontam com as convicções da chefia. Como são polêmicos os estudos nacionais e internacionais que mostram, com clareza, que menos armas significam menos mortes. Moro não precisa abandonar seu ceticismo com relação às estatísticas, mas poderia se informar melhor. Trabalho do pesquisador Thomas Conti se dedicou a revisar as principais análises sobre a relação entre aumento de armas e criminalidade em todo o mundo, entre 2013 e 2017. Ele mostrou que é uma falácia dizer que armar a população garante mais proteção contra crimes. De 10 revisões criteriosas de estudos internacionais, nove concluíram empiricamente que há uma relação entre a quantidade de armas e os homicídios.
No caso brasileiro, estudos mostram que, além de aumentar o número de assassinatos, o incremento do número de armas não interferiu nas estatísticas relativas aos crimes contra o patrimônio. As mortes aumentaram e os demais crimes não diminuíram. Sem falar dos acidentes com armas em casa, sobretudo com crianças, levando a mortes e ferimentos graves, e os suicídios, que também expressam a mesma relação com o aumento da circulação de armas.
Os imbecis que fazem “arminha” com um sorriso sádico no rosto, os ministros que trocam a razão pela ambição, os agentes de segurança que imitam Rambo, os defensores da flexibilização da posse e a bancada que se prepara para defender a ampliação do porte de armas vão passar muitos anos tentando, como Macbeth, tirar as marcas de sangue das mãos. Nem todo oceano de Netuno bastaria para apagar as manchas do personagem de Shakespeare. Mais fácil será o mar se tingir de púrpura.
Os fatos falam por si. O principal gesto da campanha do atual presidente foi a imitação da posse de uma arma, feita com os dedos, dirigida contra os opositores, ou mesmo a simulação de uma rajada de metralhadora contra a multidão, em nome do extermínio da “petralhada”. Tratada como uma brincadeira ou deboche, a atitude não precisa de metáfora: identifica o diferente como inimigo; o debate como guerra; o extermínio físico no lugar do argumento.
Podem dizer que se tratava de campanha. Mas, depois da eleição, piorou. O primeiro decreto presidencial, de 15 de janeiro, flexibilizava a posse legal de armas, no limite absurdo de quatro artefatos por cidadão (cifra a ser aumentada no caso do campo). Tratava-se de promessa eleitoral vociferada incansavelmente. Não era a única nem a mais importante, mas foi a primeira, e até agora, a única a ser cumprida.
O superministro Moro ficou com o constrangimento de defender a medida em público, como se o decreto fosse um pedágio para dar caução ao seu pacote anticrime. Fez comentários desonestos sobre estatísticas que relacionam armas e aumento de criminalidade e tentou jogar a fatura nas promessas que não eram dele. Foi, no mínimo, fraco e, no limite, cínico. Tudo para manter seu projeto paralelo de comando do Estado a partir do domínio das instâncias judiciárias. Ele sabe aonde quer chegar, mas não percebe que depositou sua ambição em uma pessoa inconfiável.
O ex-juiz voltaria e ser frágil ou leniente pouco adiante, ao retirar um convite feito a uma especialista em segurança pública para integrar um conselho ligado à pasta. Ilona Szabó é conhecida exatamente por sua crítica ao armamentismo, o que irritou a ala balística do bolsonarismo midiático. Moro tomou uma invertida e negou suas convicções pela segunda vez. Não demoraria a voltar atrás ao ouvir o canto do galo das conveniências pela terceira vez, aceitando incorporar em seu projeto a autorização para matar para policiais em ação, ancorado em puro subjetivismo.
As armas seguiram dominando a pauta. Nem bem a flexibilização foi anunciada, a bancada da bala já se anima na próxima etapa de seu propósito de armar o país não apenas em casa ou no trabalho. Depois da posse, vem aí a discussão sobre o porte no faroeste das ruas, numa estratégia hipócrita de dividir o projeto para evitar o debate público. Dissolvendo a questão da segurança pública em autodefesa armada, o governo toca fogo na violência, jogando gasolina e tirando sua responsabilidade da mira.
As armas voltariam a brilhar no noticiário na figura truculenta do policial que conduziu Lula ao enterro do neto, num despropósito absurdo entre a dor e a exibição de força bruta de um arsenal não condizente com a situação. Sem falar da inspiração, sempre buscada de forma subserviente, em emular as forças militares dos EUA, presente no fardamento do soldado.
O anúncio da prisão dos assassinos de Marielle Franco, sem que os mandantes fossem identificados, mostrou a outra face do protagonismo das armas no atual governo. Um dos criminosos, ligado às milícias de forma orgânica, mantinha estoque de nada menos que 117 fuzis desmontados, esperando oportunidade de negócio. Uma mistura explosiva de armas, ex-policiais afastados por corrupção, vínculo indiretos de milicianos com o gabinete parlamentar do filho do presidente, movimentações financeiras atípicas e impunidade negociada por quase um ano.
Mais armas, desta vez no criado-mudo. Na quarta-feira, dia 13, em conversa com jornalistas escolhidos para dividir o café da manhã, Bolsonaro confessou que dorme com armas ao lado da cama. Não se sente seguro nem mesmo no Palácio da Alvorada, cercado de agentes por todos os lados. O que dirá de sua casa paisana no condomínio da Barra da Tijuca, com a vizinhança pouco recomendável de um assassino de aluguel (o mesmo dos 117 fuzis). Haja revólver.
No dia seguinte à confissão do conteúdo de sua mesa de cabeceira, as armas tomariam de novo a atenção do país, com o massacre numa escola em Suzano, São Paulo. Os dois jovens, que mataram oito pessoas e se suicidaram eram fascinados por armas e tomados pelo discurso de ódio. Foram duplamente armados. O fato de a brutalidade ocorrer numa escola pública chama ainda mais atenção. Há, novamente, um comportamento imitativo em relação aos Estados Unidos, e um sinal da importância devida à educação na construção da cidadania.
Facilitar a posse de armas e desprestigiar a educação em favor de valores ideológicos conservadores ou de mercado é pavimentar o cenário para novas tragédias. A defesa que partiu de alguns bolsonaristas - de que professores e funcionários com armas evitariam as mortes - é um caso de desconhecimento da dinâmica dos atos de violência ou absoluta má fé. Se houvesse reação, em meio à surpresa da situação, se instalaria uma praça de guerra.
O Brasil é o país que mais mata por armas de fogo em todo o mundo. As cerca de 17 milhões de armas (mais da metade delas ilegais) exterminam a vida de mais de 43 mil pessoas a cada ano. Não precisamos ter modéstia em matéria de brutalidade: os EUA, que ficam em segundo lugar, cravam 37 mil mortes por armas de fogo. Os números brasileiros registram aumento desde os anos 1980. Só houve um pequeno decréscimo a partir de 2003, com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, tragicamente retomado alguns anos depois.
Mas Moro garante que estatísticas são polêmicas, que devem ser consideradas com cuidado, sobretudo quando confrontam com as convicções da chefia. Como são polêmicos os estudos nacionais e internacionais que mostram, com clareza, que menos armas significam menos mortes. Moro não precisa abandonar seu ceticismo com relação às estatísticas, mas poderia se informar melhor. Trabalho do pesquisador Thomas Conti se dedicou a revisar as principais análises sobre a relação entre aumento de armas e criminalidade em todo o mundo, entre 2013 e 2017. Ele mostrou que é uma falácia dizer que armar a população garante mais proteção contra crimes. De 10 revisões criteriosas de estudos internacionais, nove concluíram empiricamente que há uma relação entre a quantidade de armas e os homicídios.
No caso brasileiro, estudos mostram que, além de aumentar o número de assassinatos, o incremento do número de armas não interferiu nas estatísticas relativas aos crimes contra o patrimônio. As mortes aumentaram e os demais crimes não diminuíram. Sem falar dos acidentes com armas em casa, sobretudo com crianças, levando a mortes e ferimentos graves, e os suicídios, que também expressam a mesma relação com o aumento da circulação de armas.
Os imbecis que fazem “arminha” com um sorriso sádico no rosto, os ministros que trocam a razão pela ambição, os agentes de segurança que imitam Rambo, os defensores da flexibilização da posse e a bancada que se prepara para defender a ampliação do porte de armas vão passar muitos anos tentando, como Macbeth, tirar as marcas de sangue das mãos. Nem todo oceano de Netuno bastaria para apagar as manchas do personagem de Shakespeare. Mais fácil será o mar se tingir de púrpura.
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