Por Valéria Cristina Wilke, no blog Viomundo:
Columbine é certamente um dos paradigmáticos eventos violentos que marcaram a recente cultura norte-americana, uma vez que o massacre teve um planejamento cuidadoso durante meses, do qual fizeram parte a aquisição de armas e a de material para a produção de bombas caseiras e de propano; e os atiradores tornaram-se uma marca a ser copiada.
Em 1999, dois estudantes transformaram a Columbine High Scholl, no Colorado, num palco de horrores e mataram doze colegas e um professor, além de ferirem outras pessoas, antes de se suicidarem. Filmes eternizaram a tragédia, dentre eles os premiados Tiros em Columbine, o documentário de Michael Moore/Michael Donovan, e Elephant, de Gus Van Sant.
Corta para o Brasil. Na Escola Raul Brasil, em março de 2019, dois ex-alunos entraram armados na escola e a primeira pessoa a ser assassinada foi a professora de Filosofia e coordenadora pedagógica Marilena Umezu, que os recebeu.
A cada episódio semelhante ocorrido em Terra Brasilis, Columbine emerge mais um pouco a nossa vista: o chão da escola, os tiros, a correria, as mortes, o suicídio e mais uma história trágica em que armas letais nas mãos de adolescentes protagonizaram o terror.
Já não são poucos os ocorridos, uns mais “famosos” como o da escola de Realengo (Rio de Janeiro), em 2011; ou o do colégio goiano, em 2017, em que um adolescente de 14 anos matou dois colegas e feriu outros quatros, inspirado em Columbine e em Realengo, com a pistola de familiar policial civil.
Todos com rastros de destruição de pessoas, famílias e de comunidades.
Columbine já é aqui. Fujamos de Columbine enquanto há tempo.
Destaco, a seguir, sucintamente conclusões de três pesquisas interessantes realizadas e publicadas nos EUA que apresentam informações que considero importantes para minha argumentação: os assassinatos nas escolas como resultado de uma cultura da violência que, por admitir o fácil acesso às armas de fogo, faz com que a maioria dos autores já tenha contato prévio com estes instrumentos letais, a relação entre este acesso e os assassinatos, especialmente os de pessoas conhecidas.
É certo que massacres por armas de fogo perpetrados por cidadãos norte-americanos armados não se restringem às escolas, uma vez que, com espantosa recorrência, outros aconteceram nas ruas, em cinema, igrejas, shows, por exemplo.
Este fato recorrente não suprime a perplexidade, uma vez que nos EUA a sociedade tem lidado histórica e cotidianamente com o porte de armas, desde a Segunda Emenda da Constituição, que, em 1791, reconheceu o direito do povo de se armar para se defender (na conjuntura da luta contra os colonizadores e pela independência do país) até a cultura dos cowboys e da caça esportiva como profilaxia contra o crescimento populacional de animais não-humanos (especialmente nos estados do meio-oeste e do sul) e a presença dos poderosos lobbies da indústria de armas e de associações como a Associação Nacional de Rifles (NRA).
Neste contexto, os que estão habilitados a portar armas de fogo podem comprá-las em algum estabelecimento comercial licenciado, em média a menos de 15 km de suas casas, em lojas pequenas ou em grandes redes nacionais, como a Walmart.
As agências do governo norte-americano United States Secret Service e United States Department of Education publicaram, em 2004, o relatório The Final Report and Findings of the Safe School Iniciative: Implications for the Prevention of School Attacks in the United States (em tradução livre: Relatório Final e conclusões da Iniciativa Escola Segura: implicações para a prevenção de ataques escolares nos Estados Unidos), elaborado a partir das análises de 37 casos de tiroteios em escolas.
A Iniciativa Escola Segura visou identificar informações que pudessem previamente orientar políticas e estratégias que prevenissem ataques às unidades escolares.
Um dos principais elementos desta iniciativa foi focar a violência escolar direcionada, tal como a ocorrida nestes ataques, uma vez que o espaço escolar foi o local escolhido.
Duas das dez conclusões indicaram que a maioria dos autores dos atentados violentos às escolas teve acesso e já havia usado armas antes do ataque e que muitos agressores se sentiram intimidados ou perseguidos ou feridos por outros colegas antes do ataque (os casos de bullying se notabilizam).
Em 2014, o American Journal of Public Health publicou o estudo The Relationship Between Gun Ownership and Stranger and Nonstranger Firearm Homicide Rates in the United States, 1981–2010 (em tradução livre, A relação entre posse de armas e taxas de homicídio por armas de fogo estranhas e não-estranhas nos Estados Unidos, 1981-2010).
Conforme a conclusão, se não é possível estabelecer relação estatística significativa entre a posse de armas e as taxas de homicídios por armas de fogo, ao contrário, é possível associar a posse de armas e as taxas de homicídios por armas de fogo não estranhas.
Ou seja, a pesquisa que analisou longa série histórica de dados (1981-2010) demonstrou empiricamente o aumento nos casos de homicídios de conhecidos do proprietário da arma, como parentes, amigos, colegas.
Outro estudo realizado nos EUA, The Accessibility of Firearms and Risk for Suicide and Homicide Victimization Among Household Members: A Systematic Review and Meta-analysis Free (em tradução livre, O acesso às armas de fogo e o risco de vitimização por suicídio e homicídio entre os membros das famílias: uma revisão sistemática e uma meta-análise), publicado em 2014, apresentou a conclusão de que o acesso a armas de fogo está associado ao risco de suicídio e também ao de ser vítima de homicídio.
O fato é que estas pesquisas mostram o que aparece nas discussões nacionais nos EUA a cada evento traumático como o da escola Columbine: as consequências nefastas do porte legal de arma de fogo a que os cidadãos habilitados têm direito e o acesso fácil a armamentos, seja a pequenas armas ou a verdadeiros arsenais facultado pela cultura das armas.
De sobremaneira este segundo aspecto arma adolescentes e crianças que passam a ter condições de matar conhecidos, sejam eles colegas de escolas, professores, secretários, jardineiros.
Em geral, são indivíduos que, magoados por algum motivo, se voltam contra antigos companheiros, docentes, funcionários administrativos.
Do mesmo modo, estas discussões, paradoxalmente, levantam a questão de como coadunar os massacres decorrentes da facilidade de possuir e portar armas com a Segunda Emenda, situação que cabe aos norte-americanos resolverem.
No Brasil não temos algo similar à Segunda Emenda e muito menos uma cultura que cultua armas de fogo como um de seus elementos cruciais e que é festejado em figuras ícones, filmes, feiras e defendido como direito à auto-defesa.
Afinal, a história brasileira transcorreu de modo diferente, mas isto não significa que ela seja menos violenta do que a norte-americana.
Mesmo sem a cultura das armas aqui se mata e morre em escala assustadora, comparável à de guerras.
A estatística dos assassinatos por arma de fogo nas mãos daqueles que podem portar a arma, como policiais em serviço, e que por isto são, a princípio, preparados para tal, revela a faceta cruel da sociedade, sobretudo quando se refere à população pobre e negra: mata-se e morre-se aos quilos.
Basta ver o Atlas da Violência 2018, que informa, por exemplo, que em 2016, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0 por 100.000 habitantes contra 40,2).
Por outro lado, o fácil acesso às armas de fogo nas mãos de segmentos bandidos alcança os policiais, em sua grande maioria mortos fora do serviço.
Conforme o Mapa da Violência de 2016, 2.400 mulheres foram assassinadas por arma de fogo no país em 2014, ou seja, naquele período seis mulheres foram mortas a cada dia por disparos de armamentos, e de lá para cá o número só fez crescer.
Sim, esses assassinatos doem nos ossos dos que ficam. Sem comparar as dores que são incomparáveis em suas particularidades, as mortes decorrentes de tragédias ocorridas nas escolas como as de Salvador (2002), Realengo (2011), de João Pessoa (2012), de Goiás (2017) e de Suzano (2019) doem nos ossos e na alma.
Talvez por terem sido realizadas no espaço escolar por crianças ou adolescentes e até jovens adultos, que tiveram acesso a armas, na maioria das vezes de familiares, e que com elas mataram conhecidos, desafetos ou não.
Como em Columbine, também nestes casos valem as duas conclusões do relatório das agências norte-americanas, anteriormente citadas: o contato e o fácil acesso a armas de fogo e sua relação direta com assassinatos de conhecidos.
O mais assustador é ouvir vozes proeminentes do cenário da política nacional, como o atual presidente da República, Bolsonaro, e parlamentares como o senador major Olímpio (PSL/SP), dentre outros, manifestarem-se por mais armas, por flexibilização da posse e do porte de armas, por facilitar o acesso da sociedade civil às armas de fogo em zonas urbanas, ou seja, por individualizar a segurança pública que cabe ao Estado.
Mais assustador ainda é saber que estas vozes expressam a vontade de alguma parcela da população brasileira.
O próprio presidente esquece que em 1995 sofreu um assalto no bairro de Vila Isabel/RJ, noticiado pelos jornais da época. Os bandidos levaram a moto e a arma Glock.
Na delegacia afirmou: “Mesmo armado me senti indefeso” na abordagem inesperada dos assaltantes. Ele, um militar. Imaginemos quem não tem algo equivalente à preparação militar.
Ponderações cabíveis: ao se defender a proposta de que a sociedade civil se arme como forma de autoproteção, é possível exigir que profissionais da educação que não lidam cotidianamente com a segurança pública, como docentes ou secretárias administrativas ou merendeiras, tenham de se armar inclusive psicologicamente para, na inesperada hora H, agirem como Rambos e snipers?
Se docentes armados podem evitar ou minimizar massacres, tal como é ouvido no horizonte da mentalidade que aposta na flexibilização da posse e do porte de armas de fogo, hipoteticamente é possível pressupor que cabe prepará-los.
Então neste caso, os cursos de formação de docentes deveriam incluir em seus currículos disciplinas como Armas de Fogo: uma introdução, Armas brancas, Formação básica de sniper para contemplar a sandice?
Ou então, as escolas teriam que ter policiais militares aposentados em seus quadros, como uma faceta da famigerada militarização escolar?
Funcionaria colocar em confronto jovens adolescentes que preparam um massacre e policiais militares, que deveriam estar gozando a tranquilidade da vida sem armas, numa escola cheia de crianças e jovens assustados com tiros e correria?
No ambiente escolar mesmo um policial da ativa e preparado conseguiria responder a eventos inesperados, tal como Columbine ou da escola Raul Brasil? Lembremos do ocorrido com o capitão Bolsonaro, armado com sua Glock, no assalto de 1995.
O massacre da escola de Suzano/SP traz à tona, no debate nacional, as encruzilhadas que cabem aos brasileiros enfrentar.
Restringir a circulação do uso de armas por pessoas não ligadas aos serviços públicos de segurança ou aumentar sua circulação?
Preparar, estruturar e fornecer condições melhores para as forças de segurança pública para lidarem com seu trabalho ou alimentar as milícias paramilitares e também grupelhos de vizinhos armados para a proteção da vizinhança?
Trabalhar para justiça social no desenvolvimento do país ou aprofundar o fosso das desigualdades sociais estruturais?
Fazer ecoar a cultura da não-violência e da paz na violenta sociedade brasileira ou alimentar a cultura da violência com o porte legal de armas acessíveis a amplos setores da população civil?
Em memória das palavras de Marilena Ferreira Umezu, professora e coordenadora pedagógica da Escola Raul Brasil: “Somos a favor do porte de livros, pois a melhor arma para salvar o cidadão é a educação”. Evitemos Columbine enquanto ainda é tempo.
Referências bibliográficas
Atlas da Violência 2018.
ANGLEMYER, Andrew, HORVATH, Tara, RUTHERFORD, George. The Accessibility of Firearms and Risk for Suicide and Homicide Victimization Among Household Members: A Systematic Review and Meta-analysis Free. Annals of Internal Medicine, 2014. Disponível em: https://annals.org/aim/fullarticle/1814426/accessibility-firearms-risk-suicide-homicide-victimization-among-household-members-systematic.
GLADWELL, Malcolm. Thresholds of Violence. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2015/10/19/thresholds-of-violence
Mapa da Violência de 2016,
SIEGEL, M., NEGUSSIE, Y., VANTURE, S. et all. The Relationship Between Gun Ownership and Stranger and Nonstranger Firearm Homicide Rates in the United States, 1981–2010 . Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4167105/.
TRIBUNA da Imprensa. Marginais rendem Bolsonaro e levam motocicleta e arma. Edição de 05 de julho de 1995. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_05&PagFis=31739&Pesq=marginais%20rendem%20bolsonaro
U.S. SECRET SERVICE, U.S. DEPARTMENT OF EDUCATION. The Final Report and Findings of the Safe School Initiative: Implications for the Prevention of School Attacks in the United States. Disponível em: https://www2.ed.gov/admins/lead/safety/preventingattacksreport.pdf
WIKI. List of school shootings in the United States. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_school_shootings_in_the_United_States#2015_to_present
* Valéria Cristina Wilke é professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
Columbine é certamente um dos paradigmáticos eventos violentos que marcaram a recente cultura norte-americana, uma vez que o massacre teve um planejamento cuidadoso durante meses, do qual fizeram parte a aquisição de armas e a de material para a produção de bombas caseiras e de propano; e os atiradores tornaram-se uma marca a ser copiada.
Em 1999, dois estudantes transformaram a Columbine High Scholl, no Colorado, num palco de horrores e mataram doze colegas e um professor, além de ferirem outras pessoas, antes de se suicidarem. Filmes eternizaram a tragédia, dentre eles os premiados Tiros em Columbine, o documentário de Michael Moore/Michael Donovan, e Elephant, de Gus Van Sant.
Corta para o Brasil. Na Escola Raul Brasil, em março de 2019, dois ex-alunos entraram armados na escola e a primeira pessoa a ser assassinada foi a professora de Filosofia e coordenadora pedagógica Marilena Umezu, que os recebeu.
A cada episódio semelhante ocorrido em Terra Brasilis, Columbine emerge mais um pouco a nossa vista: o chão da escola, os tiros, a correria, as mortes, o suicídio e mais uma história trágica em que armas letais nas mãos de adolescentes protagonizaram o terror.
Já não são poucos os ocorridos, uns mais “famosos” como o da escola de Realengo (Rio de Janeiro), em 2011; ou o do colégio goiano, em 2017, em que um adolescente de 14 anos matou dois colegas e feriu outros quatros, inspirado em Columbine e em Realengo, com a pistola de familiar policial civil.
Todos com rastros de destruição de pessoas, famílias e de comunidades.
Columbine já é aqui. Fujamos de Columbine enquanto há tempo.
Destaco, a seguir, sucintamente conclusões de três pesquisas interessantes realizadas e publicadas nos EUA que apresentam informações que considero importantes para minha argumentação: os assassinatos nas escolas como resultado de uma cultura da violência que, por admitir o fácil acesso às armas de fogo, faz com que a maioria dos autores já tenha contato prévio com estes instrumentos letais, a relação entre este acesso e os assassinatos, especialmente os de pessoas conhecidas.
É certo que massacres por armas de fogo perpetrados por cidadãos norte-americanos armados não se restringem às escolas, uma vez que, com espantosa recorrência, outros aconteceram nas ruas, em cinema, igrejas, shows, por exemplo.
Este fato recorrente não suprime a perplexidade, uma vez que nos EUA a sociedade tem lidado histórica e cotidianamente com o porte de armas, desde a Segunda Emenda da Constituição, que, em 1791, reconheceu o direito do povo de se armar para se defender (na conjuntura da luta contra os colonizadores e pela independência do país) até a cultura dos cowboys e da caça esportiva como profilaxia contra o crescimento populacional de animais não-humanos (especialmente nos estados do meio-oeste e do sul) e a presença dos poderosos lobbies da indústria de armas e de associações como a Associação Nacional de Rifles (NRA).
Neste contexto, os que estão habilitados a portar armas de fogo podem comprá-las em algum estabelecimento comercial licenciado, em média a menos de 15 km de suas casas, em lojas pequenas ou em grandes redes nacionais, como a Walmart.
As agências do governo norte-americano United States Secret Service e United States Department of Education publicaram, em 2004, o relatório The Final Report and Findings of the Safe School Iniciative: Implications for the Prevention of School Attacks in the United States (em tradução livre: Relatório Final e conclusões da Iniciativa Escola Segura: implicações para a prevenção de ataques escolares nos Estados Unidos), elaborado a partir das análises de 37 casos de tiroteios em escolas.
A Iniciativa Escola Segura visou identificar informações que pudessem previamente orientar políticas e estratégias que prevenissem ataques às unidades escolares.
Um dos principais elementos desta iniciativa foi focar a violência escolar direcionada, tal como a ocorrida nestes ataques, uma vez que o espaço escolar foi o local escolhido.
Duas das dez conclusões indicaram que a maioria dos autores dos atentados violentos às escolas teve acesso e já havia usado armas antes do ataque e que muitos agressores se sentiram intimidados ou perseguidos ou feridos por outros colegas antes do ataque (os casos de bullying se notabilizam).
Em 2014, o American Journal of Public Health publicou o estudo The Relationship Between Gun Ownership and Stranger and Nonstranger Firearm Homicide Rates in the United States, 1981–2010 (em tradução livre, A relação entre posse de armas e taxas de homicídio por armas de fogo estranhas e não-estranhas nos Estados Unidos, 1981-2010).
Conforme a conclusão, se não é possível estabelecer relação estatística significativa entre a posse de armas e as taxas de homicídios por armas de fogo, ao contrário, é possível associar a posse de armas e as taxas de homicídios por armas de fogo não estranhas.
Ou seja, a pesquisa que analisou longa série histórica de dados (1981-2010) demonstrou empiricamente o aumento nos casos de homicídios de conhecidos do proprietário da arma, como parentes, amigos, colegas.
Outro estudo realizado nos EUA, The Accessibility of Firearms and Risk for Suicide and Homicide Victimization Among Household Members: A Systematic Review and Meta-analysis Free (em tradução livre, O acesso às armas de fogo e o risco de vitimização por suicídio e homicídio entre os membros das famílias: uma revisão sistemática e uma meta-análise), publicado em 2014, apresentou a conclusão de que o acesso a armas de fogo está associado ao risco de suicídio e também ao de ser vítima de homicídio.
O fato é que estas pesquisas mostram o que aparece nas discussões nacionais nos EUA a cada evento traumático como o da escola Columbine: as consequências nefastas do porte legal de arma de fogo a que os cidadãos habilitados têm direito e o acesso fácil a armamentos, seja a pequenas armas ou a verdadeiros arsenais facultado pela cultura das armas.
De sobremaneira este segundo aspecto arma adolescentes e crianças que passam a ter condições de matar conhecidos, sejam eles colegas de escolas, professores, secretários, jardineiros.
Em geral, são indivíduos que, magoados por algum motivo, se voltam contra antigos companheiros, docentes, funcionários administrativos.
Do mesmo modo, estas discussões, paradoxalmente, levantam a questão de como coadunar os massacres decorrentes da facilidade de possuir e portar armas com a Segunda Emenda, situação que cabe aos norte-americanos resolverem.
No Brasil não temos algo similar à Segunda Emenda e muito menos uma cultura que cultua armas de fogo como um de seus elementos cruciais e que é festejado em figuras ícones, filmes, feiras e defendido como direito à auto-defesa.
Afinal, a história brasileira transcorreu de modo diferente, mas isto não significa que ela seja menos violenta do que a norte-americana.
Mesmo sem a cultura das armas aqui se mata e morre em escala assustadora, comparável à de guerras.
A estatística dos assassinatos por arma de fogo nas mãos daqueles que podem portar a arma, como policiais em serviço, e que por isto são, a princípio, preparados para tal, revela a faceta cruel da sociedade, sobretudo quando se refere à população pobre e negra: mata-se e morre-se aos quilos.
Basta ver o Atlas da Violência 2018, que informa, por exemplo, que em 2016, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0 por 100.000 habitantes contra 40,2).
Por outro lado, o fácil acesso às armas de fogo nas mãos de segmentos bandidos alcança os policiais, em sua grande maioria mortos fora do serviço.
Conforme o Mapa da Violência de 2016, 2.400 mulheres foram assassinadas por arma de fogo no país em 2014, ou seja, naquele período seis mulheres foram mortas a cada dia por disparos de armamentos, e de lá para cá o número só fez crescer.
Sim, esses assassinatos doem nos ossos dos que ficam. Sem comparar as dores que são incomparáveis em suas particularidades, as mortes decorrentes de tragédias ocorridas nas escolas como as de Salvador (2002), Realengo (2011), de João Pessoa (2012), de Goiás (2017) e de Suzano (2019) doem nos ossos e na alma.
Talvez por terem sido realizadas no espaço escolar por crianças ou adolescentes e até jovens adultos, que tiveram acesso a armas, na maioria das vezes de familiares, e que com elas mataram conhecidos, desafetos ou não.
Como em Columbine, também nestes casos valem as duas conclusões do relatório das agências norte-americanas, anteriormente citadas: o contato e o fácil acesso a armas de fogo e sua relação direta com assassinatos de conhecidos.
O mais assustador é ouvir vozes proeminentes do cenário da política nacional, como o atual presidente da República, Bolsonaro, e parlamentares como o senador major Olímpio (PSL/SP), dentre outros, manifestarem-se por mais armas, por flexibilização da posse e do porte de armas, por facilitar o acesso da sociedade civil às armas de fogo em zonas urbanas, ou seja, por individualizar a segurança pública que cabe ao Estado.
Mais assustador ainda é saber que estas vozes expressam a vontade de alguma parcela da população brasileira.
O próprio presidente esquece que em 1995 sofreu um assalto no bairro de Vila Isabel/RJ, noticiado pelos jornais da época. Os bandidos levaram a moto e a arma Glock.
Na delegacia afirmou: “Mesmo armado me senti indefeso” na abordagem inesperada dos assaltantes. Ele, um militar. Imaginemos quem não tem algo equivalente à preparação militar.
Ponderações cabíveis: ao se defender a proposta de que a sociedade civil se arme como forma de autoproteção, é possível exigir que profissionais da educação que não lidam cotidianamente com a segurança pública, como docentes ou secretárias administrativas ou merendeiras, tenham de se armar inclusive psicologicamente para, na inesperada hora H, agirem como Rambos e snipers?
Se docentes armados podem evitar ou minimizar massacres, tal como é ouvido no horizonte da mentalidade que aposta na flexibilização da posse e do porte de armas de fogo, hipoteticamente é possível pressupor que cabe prepará-los.
Então neste caso, os cursos de formação de docentes deveriam incluir em seus currículos disciplinas como Armas de Fogo: uma introdução, Armas brancas, Formação básica de sniper para contemplar a sandice?
Ou então, as escolas teriam que ter policiais militares aposentados em seus quadros, como uma faceta da famigerada militarização escolar?
Funcionaria colocar em confronto jovens adolescentes que preparam um massacre e policiais militares, que deveriam estar gozando a tranquilidade da vida sem armas, numa escola cheia de crianças e jovens assustados com tiros e correria?
No ambiente escolar mesmo um policial da ativa e preparado conseguiria responder a eventos inesperados, tal como Columbine ou da escola Raul Brasil? Lembremos do ocorrido com o capitão Bolsonaro, armado com sua Glock, no assalto de 1995.
O massacre da escola de Suzano/SP traz à tona, no debate nacional, as encruzilhadas que cabem aos brasileiros enfrentar.
Restringir a circulação do uso de armas por pessoas não ligadas aos serviços públicos de segurança ou aumentar sua circulação?
Preparar, estruturar e fornecer condições melhores para as forças de segurança pública para lidarem com seu trabalho ou alimentar as milícias paramilitares e também grupelhos de vizinhos armados para a proteção da vizinhança?
Trabalhar para justiça social no desenvolvimento do país ou aprofundar o fosso das desigualdades sociais estruturais?
Fazer ecoar a cultura da não-violência e da paz na violenta sociedade brasileira ou alimentar a cultura da violência com o porte legal de armas acessíveis a amplos setores da população civil?
Em memória das palavras de Marilena Ferreira Umezu, professora e coordenadora pedagógica da Escola Raul Brasil: “Somos a favor do porte de livros, pois a melhor arma para salvar o cidadão é a educação”. Evitemos Columbine enquanto ainda é tempo.
Referências bibliográficas
Atlas da Violência 2018.
ANGLEMYER, Andrew, HORVATH, Tara, RUTHERFORD, George. The Accessibility of Firearms and Risk for Suicide and Homicide Victimization Among Household Members: A Systematic Review and Meta-analysis Free. Annals of Internal Medicine, 2014. Disponível em: https://annals.org/aim/fullarticle/1814426/accessibility-firearms-risk-suicide-homicide-victimization-among-household-members-systematic.
GLADWELL, Malcolm. Thresholds of Violence. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2015/10/19/thresholds-of-violence
Mapa da Violência de 2016,
SIEGEL, M., NEGUSSIE, Y., VANTURE, S. et all. The Relationship Between Gun Ownership and Stranger and Nonstranger Firearm Homicide Rates in the United States, 1981–2010 . Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4167105/.
TRIBUNA da Imprensa. Marginais rendem Bolsonaro e levam motocicleta e arma. Edição de 05 de julho de 1995. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_05&PagFis=31739&Pesq=marginais%20rendem%20bolsonaro
U.S. SECRET SERVICE, U.S. DEPARTMENT OF EDUCATION. The Final Report and Findings of the Safe School Initiative: Implications for the Prevention of School Attacks in the United States. Disponível em: https://www2.ed.gov/admins/lead/safety/preventingattacksreport.pdf
WIKI. List of school shootings in the United States. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_school_shootings_in_the_United_States#2015_to_present
* Valéria Cristina Wilke é professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
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