Por Vitor Nuzzi, na Rede Brasil Atual:
O golpe completava seis anos, em 1º de abril de 1970, e a ditadura estava no período mais agudo, desde a implementação do AI-5, em 1968. Com base nesse ato institucional, 10 cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Rio de Janeiro, foram cassados, tiveram os direitos políticos suspensos e não puderam mais trabalhar nem em outras instituições federais. O caso, conhecido como “Massacre de Manguinhos” – referência ao bairro da zona norte carioca onde fica a sede da agora Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – é relatado em livro publicado em 1978, que acaba de ganhar nova edição. Foi escrito por um dos cientistas atingidos, Herman Lent, uma referência mundial em estudo de besouros. A capa da edição original traz desenho de Oscar Niemeyer: uma das torres do Castelo Mourisco, onde fica a Fiocruz, desmoronando. O relançamento do livro faz parte das comemorações pelos 119 anos da Fiocruz, que vão até a próxima sexta-feira (31).
A nova edição de O Massacre de Manguinhos foi lançada ontem (28), na Fiocruz. Traz textos de pesquisadores e reproduções de jornais da época. Primeiro item do projeto Memória Viva, a reedição foi organizada pelo Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict) da fundação. E conta, por exemplo, que mesmo antes do AI-5, o cientista Walter Oswaldo Cruz, “hematologista consagrado e líder de um dos mais modernos e conceituados laboratórios do IOC e do país, sofreu dura perseguição”. Era filho do próprio sanitarista que deu nome ao instituto. “Não obstante o reconhecimento internacional do valor de seu trabalho, o pesquisador, que morreu prematuramente em 1967, teve seu laboratório lacrado e o financiamento externo suspenso.”
No ainda Instituto Oswaldo Cruz, a ditadura provocou “a interrupção de inúmeras pesquisas, o aniquilamento de laboratórios, prejuízos irrecuperáveis em coleções biológicas, a suspensão de colaborações com outros centros de pesquisa”, além de perseguição a cientistas. “Com a imposição de um diretor designado pelo próprio regime e a presença constante de militares no campus, os pesquisadores passaram a ter suas atividades controladas e suas verbas de pesquisa cortadas. Muitos deles foram arrolados em inquéritos, sob o pretexto de se apurar atos de subversão e corrupção”, informa a fundação.
“Lançar luz a esse episódio é importante porque, infelizmente, o Brasil não é um país que tem como prioridade rever a sua história e lamber as feridas de um período tão sombrio, ao contrário do que ocorre em outros países latino-americanos. Resgatar esse tipo de memória abre a possibilidade de não viver, de novo, o horror que representa”, afirma o diretor do Icict, Rodrigo Murtinho, que idealizou o projeto Memória Viva.
Um vídeo de Lauro Escorel Filho sobre o tema, que acaba de ser restaurado, mostra imagens da cerimônia de reintegração dos cientistas cassados, 16 anos depois, em agosto de 1986. Estavam presentes o deputado Ulysses Guimarães, o antropólogo Darcy Ribeiro (“A ciência é o último artesanato do mundo, é a última profissão que não se aprende nos livros”) e o ator Grande Otelo.
“Por que esse ódio do pensamento autoritário ao pensamento livre?”, afirmou no ato o sanitarista Sergio Arouca, presidente da fundação à época, ex-deputado, em questionamento que parece atual. “Mas talvez esse simples ato de criar conhecimento, de pesquisar, se torne, mesmo na sua dimensão mais simples, um pensamento subversivo. A subversão da ordem autoritária começa a se dar no instante em que os ‘subversivos’ exibem sua competência. No gesto de solidariedade das universidades. No gesto da solidariedade internacional. Na ética e na dignidade mantida por esses pesquisadores. Nos encontros solidários dos perseguidos. E no permanente e contínuo perguntar-se sobre o universo. No ensinar, apesar de tudo. Na manutenção, a qualquer preço, da dignidade. O maior inimigo do pensamento autoritário é o pensamento livre.”
Muitos dos perseguidos haviam se engajado pela criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948. E também se mobilizaram pelo surgimento de um Ministério da Ciência e Tecnologia, que surgiria apenas em meados dos anos 1980.
“Os pontos fundamentais da proposta eram garantir à comunidade científica um espaço de participação nas decisões a respeito de um projeto científico definido nacionalmente e implementar uma política visando à autonomia e à liberdade científica para fazer face aos critérios utilitários adotados por órgãos governamentais. Só assim seria resgatado o papel que a ciência cumprira no processo de desenvolvimento brasileiro”, diz, em um dos posfácios da atual edição, a pesquisadora Wanda Hamilton.
“Pode-se afirmar que este fato lamentável e com profundas consequências resultou do autoritarismo inscrito, simultaneamente, nos macroprocessos da ditadura militar e em um cotidiano no qual delações e perseguições por desavenças no ambiente de trabalho moldavam também o regime político. Fato, aliás, inerente a todos os governos
autoritários”, afirma no prefácio a atual presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, a primeira mulher eleita para o cargo.
“A possibilidade de leis de exceção gerarem cotidianamente arbítrio ainda maior do que as razões alegadas para sua elaboração foi bem sintetizada por Pedro Aleixo, vice-presidente durante a presidência do marechal Costa e Silva, em seu argumento contrário ao AI-5: ‘Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina’.” Ela observa que desde abril de 1964 o IOC passou por intervenções e inquéritos militares, para apurar “supostos atos de subversão e corrupção”, nunca provados.
Recentemente, o governo engavetou uma extensa pesquisa feita pela fundação, um levantamento nacional realizado durante três anos sobre o uso de drogas no país. E a Fiocruz ainda foi atacada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra.
A íntegra do livro pode ser vista aqui.
A nova edição de O Massacre de Manguinhos foi lançada ontem (28), na Fiocruz. Traz textos de pesquisadores e reproduções de jornais da época. Primeiro item do projeto Memória Viva, a reedição foi organizada pelo Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict) da fundação. E conta, por exemplo, que mesmo antes do AI-5, o cientista Walter Oswaldo Cruz, “hematologista consagrado e líder de um dos mais modernos e conceituados laboratórios do IOC e do país, sofreu dura perseguição”. Era filho do próprio sanitarista que deu nome ao instituto. “Não obstante o reconhecimento internacional do valor de seu trabalho, o pesquisador, que morreu prematuramente em 1967, teve seu laboratório lacrado e o financiamento externo suspenso.”
No ainda Instituto Oswaldo Cruz, a ditadura provocou “a interrupção de inúmeras pesquisas, o aniquilamento de laboratórios, prejuízos irrecuperáveis em coleções biológicas, a suspensão de colaborações com outros centros de pesquisa”, além de perseguição a cientistas. “Com a imposição de um diretor designado pelo próprio regime e a presença constante de militares no campus, os pesquisadores passaram a ter suas atividades controladas e suas verbas de pesquisa cortadas. Muitos deles foram arrolados em inquéritos, sob o pretexto de se apurar atos de subversão e corrupção”, informa a fundação.
“Lançar luz a esse episódio é importante porque, infelizmente, o Brasil não é um país que tem como prioridade rever a sua história e lamber as feridas de um período tão sombrio, ao contrário do que ocorre em outros países latino-americanos. Resgatar esse tipo de memória abre a possibilidade de não viver, de novo, o horror que representa”, afirma o diretor do Icict, Rodrigo Murtinho, que idealizou o projeto Memória Viva.
Um vídeo de Lauro Escorel Filho sobre o tema, que acaba de ser restaurado, mostra imagens da cerimônia de reintegração dos cientistas cassados, 16 anos depois, em agosto de 1986. Estavam presentes o deputado Ulysses Guimarães, o antropólogo Darcy Ribeiro (“A ciência é o último artesanato do mundo, é a última profissão que não se aprende nos livros”) e o ator Grande Otelo.
“Por que esse ódio do pensamento autoritário ao pensamento livre?”, afirmou no ato o sanitarista Sergio Arouca, presidente da fundação à época, ex-deputado, em questionamento que parece atual. “Mas talvez esse simples ato de criar conhecimento, de pesquisar, se torne, mesmo na sua dimensão mais simples, um pensamento subversivo. A subversão da ordem autoritária começa a se dar no instante em que os ‘subversivos’ exibem sua competência. No gesto de solidariedade das universidades. No gesto da solidariedade internacional. Na ética e na dignidade mantida por esses pesquisadores. Nos encontros solidários dos perseguidos. E no permanente e contínuo perguntar-se sobre o universo. No ensinar, apesar de tudo. Na manutenção, a qualquer preço, da dignidade. O maior inimigo do pensamento autoritário é o pensamento livre.”
Muitos dos perseguidos haviam se engajado pela criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948. E também se mobilizaram pelo surgimento de um Ministério da Ciência e Tecnologia, que surgiria apenas em meados dos anos 1980.
“Os pontos fundamentais da proposta eram garantir à comunidade científica um espaço de participação nas decisões a respeito de um projeto científico definido nacionalmente e implementar uma política visando à autonomia e à liberdade científica para fazer face aos critérios utilitários adotados por órgãos governamentais. Só assim seria resgatado o papel que a ciência cumprira no processo de desenvolvimento brasileiro”, diz, em um dos posfácios da atual edição, a pesquisadora Wanda Hamilton.
“Pode-se afirmar que este fato lamentável e com profundas consequências resultou do autoritarismo inscrito, simultaneamente, nos macroprocessos da ditadura militar e em um cotidiano no qual delações e perseguições por desavenças no ambiente de trabalho moldavam também o regime político. Fato, aliás, inerente a todos os governos
autoritários”, afirma no prefácio a atual presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, a primeira mulher eleita para o cargo.
“A possibilidade de leis de exceção gerarem cotidianamente arbítrio ainda maior do que as razões alegadas para sua elaboração foi bem sintetizada por Pedro Aleixo, vice-presidente durante a presidência do marechal Costa e Silva, em seu argumento contrário ao AI-5: ‘Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina’.” Ela observa que desde abril de 1964 o IOC passou por intervenções e inquéritos militares, para apurar “supostos atos de subversão e corrupção”, nunca provados.
Recentemente, o governo engavetou uma extensa pesquisa feita pela fundação, um levantamento nacional realizado durante três anos sobre o uso de drogas no país. E a Fiocruz ainda foi atacada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra.
A íntegra do livro pode ser vista aqui.
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