Por Tarso Genro, no site Sul-21:
“A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto-impostas. Este é o conceito possível de liberdade; ele designa a liberdade como `autonomia´, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios”(…). Para Kant, o mais coerente teórico do liberalismo político, há justiça na sociedade “quando nela cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não interfira na liberdade dos demais”. (R.Castro de Almeida, Os Clássicos da Política, Ed. Ática).
A máxima de Kant é a base teórica do funcionamento do Estado de Direito: obediência à lei “autoimposta” pela consciência de quem vive na comunidade, com a premissa de que a liberdade de uns não pode ofender ou interferir na liberdade dos outros. Estes conceitos, que a partir do iluminismo passam a ser filtrados -reorganizados e recompostos- nos sistema legais modernos, vão se apresentando na história com linhagens mais (ou menos) conservadoras, mais ou “menos sociais”. Eles não foram fundados pelo marxismo nem pelo socialismo, mas iluminaram o desenvolvimento democrático-parlamentar do capitalismo e, mais tarde, conflituaram com uma certa visão mais dogmática do marxismo, que depreciava da democracia política como elemento constitutivo para uma nova e boa sociedade.
O Presidente da República diz as suas insanidades de costume, liberado pelos seus filósofos de araque, que divulgaram a ideologia manipulatória da submissão do país ao “marxismo cultural”. Ao invés de arremeter contra Marx -se estes guias tivessem um mínimo de honestidade intelectual- deveriam dizer que estavam contra Kant, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Para ignorar, porém, os padrões democráticos autoimpostos pelo Constituinte de 88 e sordidamente fazer proliferar o ódio e sua mentiras, sem o temor de ser submetido a uma interdição, Bolsonaro precisou reavivar a guerra fria e o antimarxismo mais desqualificado, originário destes imbecis.
Bolsonaro diz que sua esposa Michele está agastada pelas revelações feitas pela imprensa, a respeito de antecedentes criminais de seus familiares próximos, o que realmente não deveria ser pauta na disputa política sobre o futuro do país. Sua esposa -embora seja hoje uma personalidade pública- que se saiba, ainda não proporcionou a ninguém nenhum constrangimento público como este, que feriu a sua intimidade moral e atingiu pessoas da sua família sem vínculos com as discórdias que estão semeadas no país, especialmente pelos donos do poder.
O Presidente, seu marido - todavia - violou as leis e a Constituição ao ofender, humilhar e torturar, milhões de brasileiros com frases que profanaram vivos e mortos, descendentes e ascendentes, de quem não aceita o seu fascismo, a sua grossura e a burrice cavalar que assaltou o país depois que ele assumiu a Presidência. Ele, Presidente Bolsonaro, rompeu com todos protocolos políticos e morais da República e deu vazão aos mais baixos instintos que estavam reprimidos numa sociedade cada vez mais desigual e insensível às desgraças dos pobres e miseráveis.
O Presidente, portanto, é o responsável direto pelo desatamento da loucura como método político, da morte como palavra-de-ordem e da violência como princípio de unidade, na decadência da República.
Fatos como este, que ofenderam a família da esposa do Presidente, só adquirem importância, porém, quando já desandaram os protocolos democráticos e a insanidade ideológica chegou ao poder: são os momentos -como no fascismo e no nazismo- em que os seres humanos discordantes ou derrotados são acusados de perder sua condição humana, na voz de quem controla o poder. A política, nestes períodos históricos, se degrada numa sociopatia vazia de qualquer racionalidade.
Quando um Presidente diz que os adversários deveriam ser mortos e que os heróis do país são torturadores sádicos, ele nos faz lembrar -aliás- que o próprio regime militar teve o cuidado de negar a tortura, para não se expor perante o mundo, nos países centrais onde o Estado de Direito
era cultuado como um valor civilizatório.
Fatos como esse, que atingiram a esposa do Presidente, ocorrem quando a autoridade máxima de uma suposta República, intervém nos órgãos de Polícia para proteger parentes e amigos; quando as execuções sumárias das milícias foram indicadas como padrão de segurança pública; quando as Universidades públicas são estupradas na sua autonomia; quando um país concede em ter como Ministro de Ciência e Tecnologia um militar que vê a necessidade de vir a público defender que a terra não é plana!
Um dos equívocos políticos graves que o campo político democrático de esquerda, socialista ou genericamente democrático-social (este sem deixar de ser pró-capitalista) cometeu -nos últimos trinta anos- foi aceitar que o fim da URSS e a “quebra do Muro de Berlim” iriam proporcionar uma certa flexibilização no sistema de dominação econômica do capital. Isso levaria o sistema -segundo certas análises- a aceitar determinados níveis de convivência com o paradigma da nova ideia socialdemocrata.
Esta convivência seria possível porque, afinal, com o fim do bloco soviético, as despesas militares iriam diminuir, estaríamos mais longe de conflitos militares e o comércio internacional, as revoluções
tecnológicas e a produção de alimentos sadios, (controladas as questões ambientais) assegurariam uma nova estabilidade política global: os explorados seriam menos explorados e os segregados do mudo do mercado também seriam menos segregados.
Pensemos nas raízes culturais e filosóficas deste erro, para compreendermos o significado das campanhas baseadas na luta contra o “marxismo cultural”, que tem impregnado o atual Governo – campanha tóxica e sociopática idealizada – que tem feito a cabeça de uma parte minoritária da sociedade, mas que é significativa em termos de ativismo político.
O porta-voz desta mistificação é o próprio Presidente, com as suas alusões imbecis e despidas de qualquer racionalidade que, ditas por ele -com a cabeça desregulada por escolha política- deixam de ser uma mera banalidade do mal, mas se transformam em política de Estado.
Suas falas estão inscritas num processo de dominação ideológica que flui pelas redes e é manipulada com maestria pelos oligopólios midiáticos, que as naturalizam, visando atender duas necessidades. Primeira necessidade: em face do esvaziamento da “guerra fria” e no fim do comunismo soviético, abrir um espaço cultural supostamente coerente, para que cada extrema-direita (em cada lugar do mundo), reinvente o seu inimigo de acordo com as suas necessidades. Segunda: na ausência de líderes de direita moderados e com credibilidade, a necessidade engendrar uma estratégia para tratar líderes como Bolsonaro como meros “excêntricos”, que não oferecem perigo à sociedade, desde que colocados “sob controle”.
A pergunta que se coloca, hoje, nesta encruzilhada do inferno – construída pelas nossas classes dominantes – é até onde irão as forças do mal para manter esta tragédia, esquecendo que ela poderá se tornar um pesadelo permanente, quando ele começar a ser recebido como um sonho comum.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
“A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto-impostas. Este é o conceito possível de liberdade; ele designa a liberdade como `autonomia´, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios”(…). Para Kant, o mais coerente teórico do liberalismo político, há justiça na sociedade “quando nela cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não interfira na liberdade dos demais”. (R.Castro de Almeida, Os Clássicos da Política, Ed. Ática).
A máxima de Kant é a base teórica do funcionamento do Estado de Direito: obediência à lei “autoimposta” pela consciência de quem vive na comunidade, com a premissa de que a liberdade de uns não pode ofender ou interferir na liberdade dos outros. Estes conceitos, que a partir do iluminismo passam a ser filtrados -reorganizados e recompostos- nos sistema legais modernos, vão se apresentando na história com linhagens mais (ou menos) conservadoras, mais ou “menos sociais”. Eles não foram fundados pelo marxismo nem pelo socialismo, mas iluminaram o desenvolvimento democrático-parlamentar do capitalismo e, mais tarde, conflituaram com uma certa visão mais dogmática do marxismo, que depreciava da democracia política como elemento constitutivo para uma nova e boa sociedade.
O Presidente da República diz as suas insanidades de costume, liberado pelos seus filósofos de araque, que divulgaram a ideologia manipulatória da submissão do país ao “marxismo cultural”. Ao invés de arremeter contra Marx -se estes guias tivessem um mínimo de honestidade intelectual- deveriam dizer que estavam contra Kant, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Para ignorar, porém, os padrões democráticos autoimpostos pelo Constituinte de 88 e sordidamente fazer proliferar o ódio e sua mentiras, sem o temor de ser submetido a uma interdição, Bolsonaro precisou reavivar a guerra fria e o antimarxismo mais desqualificado, originário destes imbecis.
Bolsonaro diz que sua esposa Michele está agastada pelas revelações feitas pela imprensa, a respeito de antecedentes criminais de seus familiares próximos, o que realmente não deveria ser pauta na disputa política sobre o futuro do país. Sua esposa -embora seja hoje uma personalidade pública- que se saiba, ainda não proporcionou a ninguém nenhum constrangimento público como este, que feriu a sua intimidade moral e atingiu pessoas da sua família sem vínculos com as discórdias que estão semeadas no país, especialmente pelos donos do poder.
O Presidente, seu marido - todavia - violou as leis e a Constituição ao ofender, humilhar e torturar, milhões de brasileiros com frases que profanaram vivos e mortos, descendentes e ascendentes, de quem não aceita o seu fascismo, a sua grossura e a burrice cavalar que assaltou o país depois que ele assumiu a Presidência. Ele, Presidente Bolsonaro, rompeu com todos protocolos políticos e morais da República e deu vazão aos mais baixos instintos que estavam reprimidos numa sociedade cada vez mais desigual e insensível às desgraças dos pobres e miseráveis.
O Presidente, portanto, é o responsável direto pelo desatamento da loucura como método político, da morte como palavra-de-ordem e da violência como princípio de unidade, na decadência da República.
Fatos como este, que ofenderam a família da esposa do Presidente, só adquirem importância, porém, quando já desandaram os protocolos democráticos e a insanidade ideológica chegou ao poder: são os momentos -como no fascismo e no nazismo- em que os seres humanos discordantes ou derrotados são acusados de perder sua condição humana, na voz de quem controla o poder. A política, nestes períodos históricos, se degrada numa sociopatia vazia de qualquer racionalidade.
Quando um Presidente diz que os adversários deveriam ser mortos e que os heróis do país são torturadores sádicos, ele nos faz lembrar -aliás- que o próprio regime militar teve o cuidado de negar a tortura, para não se expor perante o mundo, nos países centrais onde o Estado de Direito
era cultuado como um valor civilizatório.
Fatos como esse, que atingiram a esposa do Presidente, ocorrem quando a autoridade máxima de uma suposta República, intervém nos órgãos de Polícia para proteger parentes e amigos; quando as execuções sumárias das milícias foram indicadas como padrão de segurança pública; quando as Universidades públicas são estupradas na sua autonomia; quando um país concede em ter como Ministro de Ciência e Tecnologia um militar que vê a necessidade de vir a público defender que a terra não é plana!
Um dos equívocos políticos graves que o campo político democrático de esquerda, socialista ou genericamente democrático-social (este sem deixar de ser pró-capitalista) cometeu -nos últimos trinta anos- foi aceitar que o fim da URSS e a “quebra do Muro de Berlim” iriam proporcionar uma certa flexibilização no sistema de dominação econômica do capital. Isso levaria o sistema -segundo certas análises- a aceitar determinados níveis de convivência com o paradigma da nova ideia socialdemocrata.
Esta convivência seria possível porque, afinal, com o fim do bloco soviético, as despesas militares iriam diminuir, estaríamos mais longe de conflitos militares e o comércio internacional, as revoluções
tecnológicas e a produção de alimentos sadios, (controladas as questões ambientais) assegurariam uma nova estabilidade política global: os explorados seriam menos explorados e os segregados do mudo do mercado também seriam menos segregados.
Pensemos nas raízes culturais e filosóficas deste erro, para compreendermos o significado das campanhas baseadas na luta contra o “marxismo cultural”, que tem impregnado o atual Governo – campanha tóxica e sociopática idealizada – que tem feito a cabeça de uma parte minoritária da sociedade, mas que é significativa em termos de ativismo político.
O porta-voz desta mistificação é o próprio Presidente, com as suas alusões imbecis e despidas de qualquer racionalidade que, ditas por ele -com a cabeça desregulada por escolha política- deixam de ser uma mera banalidade do mal, mas se transformam em política de Estado.
Suas falas estão inscritas num processo de dominação ideológica que flui pelas redes e é manipulada com maestria pelos oligopólios midiáticos, que as naturalizam, visando atender duas necessidades. Primeira necessidade: em face do esvaziamento da “guerra fria” e no fim do comunismo soviético, abrir um espaço cultural supostamente coerente, para que cada extrema-direita (em cada lugar do mundo), reinvente o seu inimigo de acordo com as suas necessidades. Segunda: na ausência de líderes de direita moderados e com credibilidade, a necessidade engendrar uma estratégia para tratar líderes como Bolsonaro como meros “excêntricos”, que não oferecem perigo à sociedade, desde que colocados “sob controle”.
A pergunta que se coloca, hoje, nesta encruzilhada do inferno – construída pelas nossas classes dominantes – é até onde irão as forças do mal para manter esta tragédia, esquecendo que ela poderá se tornar um pesadelo permanente, quando ele começar a ser recebido como um sonho comum.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
1 comentários:
Pra que guerra civil né midia?
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