Por Marcelo Zero
O recente escândalo da tentativa de corrupção embutida na Ata negociada entre Brasil e Paraguai sobre a energia contratada em Itaipu está sendo solenemente ignorado em nosso país.
No Paraguai, o escândalo provocou a queda do ministro das Relações Exteriores, entre outras autoridades, e até a ameaça de juicio político (impeachment) do presidente Mario Abdo.
Já foi instalada CPI para investigar o caso. Não se fala de outra coisa.
Aqui, órgãos de controle e a grande imprensa fazem cara de paisagem, mesmo constatando-se que as denúncias tiveram como base mensagens trocadas por altas autoridades paraguaias, inclusive o vice-presidente Velásquez.
Tivesse o escândalo ocorrido nos tempos do PT, já teríamos inúmeras conduções coercitivas, manchetes garrafais, horas de reportagens televisas e centenas de pedidos de impeachment.
Claro está que a negociação da Ata foi motivada por um problema real: a subcontratação de energia por parte do Paraguai, um problema antigo que se agravou nos últimos anos.
Nos últimos quatro anos, a potência que a ANDE paraguaia contratou de Itaipu aumentou somente 6,7%. Porém, nesses mesmos quatro anos, a energia que a ANDE efetivamente usou de Itaipu aumentou 41,4%.
Em 2018, o Paraguai contratou apenas 10,6% da potência, mesmo tendo levado 15,6 da energia suprida.
Compensou essa diferença levando 34,7% de “energia adicional”, bem mais barata, pois essa energia excedente é produzida já com todos os custos cobertos pela contratação da potência média.
Como o Tratado de Itaipu obriga as Partes a contratarem toda a potência, a Eletrobrás acaba absorvendo o prejuízo. O resultado concreto é que a energia de Itaipu para o Paraguai fica cerca de 30% mais barata que a mesma energia suprida ao Brasil. Isso sem contar o pagamento que o Brasil paga ao Paraguai pela energia não utilizada por aquele país.
Contudo, os resultados das negociações foram um desastre. Não apenas não se corrigiu parcialmente a questão da subcontratação, como os prejuízos causados às relações bilaterais Brasil/Paraguai foram enormes, muito maiores que os prejuízos causados pela subcontratação.
Justiça seja feita, a Itaipu Binacional, quando foi pressionada pelas autoridades brasileiras para demandar da ANDE uma antecipação realista da previsão da potência a ser contratada a cada ano, já havia advertido que:
... a ITAIPU Binacional reitera sua posição em sentido contrário à antecipação de prazo, com a fixação de data limite para a apresentação das informações pela ITAIPU quanto a potência a ser contratada para o ano seguinte, na forma proposta pela Audiência Pública em questão, diante de sua inexequibilidade e, principalmente, levando em conta seus possíveis reflexos negativos não só na gestão da Binacional, mas também porque poderá vir a constituir fato de tensão inoportuna entre os dois Países.
Explico a “tensão inoportuna”. Em 2023, caduca o Anexo C do Tratado de Itaipu, o qual estipulou as bases financeiras do funcionamento de Itaipu. Assim, Brasil e Paraguai terão de sentar-se à mesa para debater a espinhosa questão do pagamento que o Brasil faz ao Paraguai pela energia que aquele país não usa de sua quota em Itaipu (50% do total) e vende ao nosso país.
O Paraguai ameaça aumentar muito o preço da energia cedida ao Brasil ou, ainda, vender a sua quota de energia para outros países que pagariam mais, como o Chile e a Argentina, por exemplo. Nesse caso extremo, ficaríamos sem 15% da energia consumida no país. Apagão, na certa. Desse modo, por causa de cerca de US$ 200 milhões que seriam recuperados em 4 anos pela Ata negociada na surdina, colocamos em risco toda nossa segurança energética.
Isso, sem dúvida, é “tensão inoportuna”.
Mas há outra questão maior, também vinculada às negociações para 2023.
Naquele ano, a enorme dívida de Itaipu estará totalmente paga.
Acontece que cerca de 60% (55%, em 2018) dos custos de Itaipu são custos financeiros advindos da dívida contraída para construir a represa.
A Itaipu Binacional tem de desembolsar cerca de US$ 2 bilhões ao ano para pagar a dívida.
Esse é o principal fator de encarecimento da energia fornecida por Itaipu e a fonte primária dos conflitos entre Brasil e Paraguai, no que tange a essa usina, pois, como a dívida financeira foi contraída totalmente pela Parte brasileira, nosso país se vê obrigado a limitar o pagamento que fazemos ao Paraguai pela energia comprada.
Na prática, o Paraguai paga sua parte da dívida vendendo energia para o Brasil a um preço baixo. Muito embora o governo Lula tenha triplicado a remuneração da energia comprada ao Paraguai, as queixas amargas naquele país persistem.
Entretanto, com a dívida paga, a usina hidrelétrica Itaipu Binacional disporá, a partir de 2023, de uma receita anual livre de US$ 2 bilhões ao ano.
Acontece que o modelo financeiro consagrado no Anexo C prevê que Itaipu pratica a tarifa pelo custo e gasta apenas o que arrecada. Assim, o empreendimento foi construído para não dar lucros e beneficiar as sociedades do Paraguai e do Brasil.
Por conseguinte, caso esse modelo seja mantido, esses US$ 2 bilhões/ano teriam de ser revertidos na redução das tarifas de energia elétrica, tanto para brasileiros quanto para paraguaios.
Seria algo justo, pois a dívida de Itaipu foi e está sendo paga pelos consumidores, principalmente pelos consumidores brasileiros, uma vez que os custos financeiros dessa dívida sempre foram repassados para as contas de energia elétrica.
Contudo, o “mercado”, estimulado pela iminente privatização da Eletrobrás que Guedes quer apressar, e que hoje compra toda energia excedente do Paraguai, está de olho nesses US$ 2 bilhões anuais.
Empresas de energia, como a fantasmagórica Leros, querem se apropriar desses US$ 2 bilhões, contratando essa energia a preço de custo e vendendo-a no mercado livre de energia, com um lucro fantástico.
Na realidade, essa tentativa de favorecer a Leros na Ata bilateral negociada visava posicioná-la para aceder a esses bilhões anuais.
A grande questão nesse imbróglio todo é, portanto, a da pretendida privatização da energia de Itaipu, a partir de 2023. Empresas e autoridades brasileiras e paraguaias estão empenhadas em rever o modelo do Anexo C, que prevê o subministro da energia a preço de custo, de forma a se apropriar do grande excedente que será gerado a partir da quitação da dívida de Itaipu.
Caso esses interesses prevaleçam, tratar-se-á de um gigantesco caso de socialização de prejuízos e privatização de lucros. Esse seria um escândalo muito maior que o da empresa Leros, vinculada, segundo o jornal ABC Color, à família Bolsonaro.
Os consumidores pagaram, por décadas, pelos prejuízos da dívida de Itaipu, mas agora, com a aproximação da quitação dessa dívida, os imensos lucros que serão gerados pela represa seriam privatizados, em vez de serem aplicados em prol da bem-estar da população. Perderíamos, assim, uma espécie de pequeno Pré-Sal.
Por conseguinte, as forças progressistas de Brasil e Paraguai, em vez de disputar em questões menores, como a da energia contratada por cada Parte, deveriam se unir em prol do essencial: a defesa do interesse público do Brasil e do Paraguai.
Esses US$ 2 bilhões (RS$ 8 bilhões) anuais, que a empresa gerará de lucro, têm de ser investidos na população de ambos os países, quer pela redução das tarifas energia, quer pela aplicação desse dinheiro em projetos públicos de investimentos binacionais em infraestrutura, ciência e tecnologias etc.
Estamos perdendo o Pré-Sal e, pelo andar da selvagem carruagem ultraneoliberal, perderemos também o pequeno, mas seguro e renovável, pré-sal de Itaipu.
Ainda há tempo para reagir. A investigação do caso Leros poderia ajudar a impedir o mal maior da perda de Itaipu. Talvez seja por isso que ninguém no Brasil quer investigar.
O recente escândalo da tentativa de corrupção embutida na Ata negociada entre Brasil e Paraguai sobre a energia contratada em Itaipu está sendo solenemente ignorado em nosso país.
No Paraguai, o escândalo provocou a queda do ministro das Relações Exteriores, entre outras autoridades, e até a ameaça de juicio político (impeachment) do presidente Mario Abdo.
Já foi instalada CPI para investigar o caso. Não se fala de outra coisa.
Aqui, órgãos de controle e a grande imprensa fazem cara de paisagem, mesmo constatando-se que as denúncias tiveram como base mensagens trocadas por altas autoridades paraguaias, inclusive o vice-presidente Velásquez.
Tivesse o escândalo ocorrido nos tempos do PT, já teríamos inúmeras conduções coercitivas, manchetes garrafais, horas de reportagens televisas e centenas de pedidos de impeachment.
Claro está que a negociação da Ata foi motivada por um problema real: a subcontratação de energia por parte do Paraguai, um problema antigo que se agravou nos últimos anos.
Nos últimos quatro anos, a potência que a ANDE paraguaia contratou de Itaipu aumentou somente 6,7%. Porém, nesses mesmos quatro anos, a energia que a ANDE efetivamente usou de Itaipu aumentou 41,4%.
Em 2018, o Paraguai contratou apenas 10,6% da potência, mesmo tendo levado 15,6 da energia suprida.
Compensou essa diferença levando 34,7% de “energia adicional”, bem mais barata, pois essa energia excedente é produzida já com todos os custos cobertos pela contratação da potência média.
Como o Tratado de Itaipu obriga as Partes a contratarem toda a potência, a Eletrobrás acaba absorvendo o prejuízo. O resultado concreto é que a energia de Itaipu para o Paraguai fica cerca de 30% mais barata que a mesma energia suprida ao Brasil. Isso sem contar o pagamento que o Brasil paga ao Paraguai pela energia não utilizada por aquele país.
Contudo, os resultados das negociações foram um desastre. Não apenas não se corrigiu parcialmente a questão da subcontratação, como os prejuízos causados às relações bilaterais Brasil/Paraguai foram enormes, muito maiores que os prejuízos causados pela subcontratação.
Justiça seja feita, a Itaipu Binacional, quando foi pressionada pelas autoridades brasileiras para demandar da ANDE uma antecipação realista da previsão da potência a ser contratada a cada ano, já havia advertido que:
... a ITAIPU Binacional reitera sua posição em sentido contrário à antecipação de prazo, com a fixação de data limite para a apresentação das informações pela ITAIPU quanto a potência a ser contratada para o ano seguinte, na forma proposta pela Audiência Pública em questão, diante de sua inexequibilidade e, principalmente, levando em conta seus possíveis reflexos negativos não só na gestão da Binacional, mas também porque poderá vir a constituir fato de tensão inoportuna entre os dois Países.
Explico a “tensão inoportuna”. Em 2023, caduca o Anexo C do Tratado de Itaipu, o qual estipulou as bases financeiras do funcionamento de Itaipu. Assim, Brasil e Paraguai terão de sentar-se à mesa para debater a espinhosa questão do pagamento que o Brasil faz ao Paraguai pela energia que aquele país não usa de sua quota em Itaipu (50% do total) e vende ao nosso país.
O Paraguai ameaça aumentar muito o preço da energia cedida ao Brasil ou, ainda, vender a sua quota de energia para outros países que pagariam mais, como o Chile e a Argentina, por exemplo. Nesse caso extremo, ficaríamos sem 15% da energia consumida no país. Apagão, na certa. Desse modo, por causa de cerca de US$ 200 milhões que seriam recuperados em 4 anos pela Ata negociada na surdina, colocamos em risco toda nossa segurança energética.
Isso, sem dúvida, é “tensão inoportuna”.
Mas há outra questão maior, também vinculada às negociações para 2023.
Naquele ano, a enorme dívida de Itaipu estará totalmente paga.
Acontece que cerca de 60% (55%, em 2018) dos custos de Itaipu são custos financeiros advindos da dívida contraída para construir a represa.
A Itaipu Binacional tem de desembolsar cerca de US$ 2 bilhões ao ano para pagar a dívida.
Esse é o principal fator de encarecimento da energia fornecida por Itaipu e a fonte primária dos conflitos entre Brasil e Paraguai, no que tange a essa usina, pois, como a dívida financeira foi contraída totalmente pela Parte brasileira, nosso país se vê obrigado a limitar o pagamento que fazemos ao Paraguai pela energia comprada.
Na prática, o Paraguai paga sua parte da dívida vendendo energia para o Brasil a um preço baixo. Muito embora o governo Lula tenha triplicado a remuneração da energia comprada ao Paraguai, as queixas amargas naquele país persistem.
Entretanto, com a dívida paga, a usina hidrelétrica Itaipu Binacional disporá, a partir de 2023, de uma receita anual livre de US$ 2 bilhões ao ano.
Acontece que o modelo financeiro consagrado no Anexo C prevê que Itaipu pratica a tarifa pelo custo e gasta apenas o que arrecada. Assim, o empreendimento foi construído para não dar lucros e beneficiar as sociedades do Paraguai e do Brasil.
Por conseguinte, caso esse modelo seja mantido, esses US$ 2 bilhões/ano teriam de ser revertidos na redução das tarifas de energia elétrica, tanto para brasileiros quanto para paraguaios.
Seria algo justo, pois a dívida de Itaipu foi e está sendo paga pelos consumidores, principalmente pelos consumidores brasileiros, uma vez que os custos financeiros dessa dívida sempre foram repassados para as contas de energia elétrica.
Contudo, o “mercado”, estimulado pela iminente privatização da Eletrobrás que Guedes quer apressar, e que hoje compra toda energia excedente do Paraguai, está de olho nesses US$ 2 bilhões anuais.
Empresas de energia, como a fantasmagórica Leros, querem se apropriar desses US$ 2 bilhões, contratando essa energia a preço de custo e vendendo-a no mercado livre de energia, com um lucro fantástico.
Na realidade, essa tentativa de favorecer a Leros na Ata bilateral negociada visava posicioná-la para aceder a esses bilhões anuais.
A grande questão nesse imbróglio todo é, portanto, a da pretendida privatização da energia de Itaipu, a partir de 2023. Empresas e autoridades brasileiras e paraguaias estão empenhadas em rever o modelo do Anexo C, que prevê o subministro da energia a preço de custo, de forma a se apropriar do grande excedente que será gerado a partir da quitação da dívida de Itaipu.
Caso esses interesses prevaleçam, tratar-se-á de um gigantesco caso de socialização de prejuízos e privatização de lucros. Esse seria um escândalo muito maior que o da empresa Leros, vinculada, segundo o jornal ABC Color, à família Bolsonaro.
Os consumidores pagaram, por décadas, pelos prejuízos da dívida de Itaipu, mas agora, com a aproximação da quitação dessa dívida, os imensos lucros que serão gerados pela represa seriam privatizados, em vez de serem aplicados em prol da bem-estar da população. Perderíamos, assim, uma espécie de pequeno Pré-Sal.
Por conseguinte, as forças progressistas de Brasil e Paraguai, em vez de disputar em questões menores, como a da energia contratada por cada Parte, deveriam se unir em prol do essencial: a defesa do interesse público do Brasil e do Paraguai.
Esses US$ 2 bilhões (RS$ 8 bilhões) anuais, que a empresa gerará de lucro, têm de ser investidos na população de ambos os países, quer pela redução das tarifas energia, quer pela aplicação desse dinheiro em projetos públicos de investimentos binacionais em infraestrutura, ciência e tecnologias etc.
Estamos perdendo o Pré-Sal e, pelo andar da selvagem carruagem ultraneoliberal, perderemos também o pequeno, mas seguro e renovável, pré-sal de Itaipu.
Ainda há tempo para reagir. A investigação do caso Leros poderia ajudar a impedir o mal maior da perda de Itaipu. Talvez seja por isso que ninguém no Brasil quer investigar.
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