terça-feira, 20 de agosto de 2019

Escândalo de Itaipu ronda os Bolsonaro

Por Thais Reis Oliveira, na revista CartaCapital:

Em 12 de março, quando Mario Abdo Benítez veio ao Brasil a convite de Jair Bolsonaro, ninguém poderia imaginar que aquela reunião seria a centelha de uma crise que hoje incendeia o Paraguai e pode custar o cargo do presidente direitista antes mesmo de ele completar um ano no poder. Os dois encontraram-se em Brasília. Primeiro a sós e, em seguida, cercados por representantes diplomáticos dos respectivos países. Um dos temas na mesa era justamente a revisão de termos do tratado da Usina Hidrelétrica de Itaipu. À época, segundo a declaração conjunta divulgada pelo Itamaraty no dia seguinte à reunião, os presidente concordaram em manter o “espírito de entendimento construtivo” que marcara até ali a relação entre os dois países. O tempo mostrou, porém, não ter sido bem assim.

Como parte das tratativas iniciadas em março, Abdo Benítez assinou às escuras um acordo que praticamente cede a soberania energética do Paraguai ao Brasil. A utilização da energia do lado de lá da margem segue o roteiro de um acordo firmado nos anos 70 do século passado e atualizado ao longo das décadas. O Tratado de Itaipu estabelece que cada país tem direito a 50% da energia produzida na hidrelétrica. Como os paraguaios utilizam muito menos do que têm por direito, vendem os megawatts livres ao Brasil a preço de custo, acrescido de uma tarifa de compensação. Sob esse roteiro, o País é o comprador prioritário da energia que sobra do lado de lá. Uma forma de compensar as perdas que o Paraguai enfrentou pela inundação de seu território.
O novo acordo secreto estabelecia, porém, que o Brasil pagaria menos pela energia excedente paraguaia, impondo ao país vizinho um prejuízo calculado em 200 milhões de dólares. Quando o acerto por baixo dos panos veio à tona, cinco integrantes do governo vizinho foram obrigados a renunciar, entre eles o ministro das Relações Exteriores e o presidente paraguaio de Itaipu.

O trato foi firmado em 24 de maio, e permaneceu em segredo até a queda de Pedro Ferreira, presidente da Administración Nacional de Electricidad (Ande), a agência estatal paraguaia que administra a energia de Itaipu. O executivo admitiu ter deixado o cargo por não aceitar a pressão de Brasília para assinar um acordo contrário aos interesses do país. Documentos obtidos pela jornalista Mabel Rehnfeldt, do jornal ABC Color, mostram que o Brasil trabalhou ativamente pela aprovação do tratado. Duas semanas depois do encontro entre Abdo e Bolsonaro, houve um convite para iniciar as tratativas. Em abril, o Brasil enviou ao país uma delegação com vários especialistas em energia. Do lado paraguaio, o grupo era composto basicamente de funcionários das embaixadas. O Brasil escolheu as datas, os itens a serem negociados, redigiu a proposta da ata e teria até conseguido a assinatura do contrato regulatório, caso os paraguaios não tivessem “esquecido” a necessidade do aval da Ande para a continuidade da negociação. A mídia do Paraguai relata os fatos com uma franqueza pouco comum em terras brasileiras. O trato é chamado, com todas as letras, de acordo entreguista. Sob o risco crescente de um impeachment, o Paraguai sustou o acerto na quinta-feira 1º de agosto e o Brasil aceitou o recuo prontamente, no dia seguinte, sob o mais profundo silêncio das autoridades. O rompimento das cláusulas, aliado a um acordo com a base oposicionista do Partido Colorado, garantiu a Abdo Benítez uma sobrevida. Não se sabe até quando, pois os protestos populares continuam.

Do lado de cá do Rio Paraná, o refluxo no acordo serve para ofuscar o envolvimento dos Bolsonaro e do PSL, partido do ex-capitão, no episódio. O sobrenome presidencial entrou no escândalo pela voz de um assessor do vice-presidente paraguaio, Hugo Velázquez, um jovem advogado chamado José Rodríguez. Em meio às tratativas, Rodríguez entrou em contato com dirigentes da Ande para pressionar pela retirada de um item específico do acordo. Apresentava seu pleito como um reflexo do desejo da “‘família presidencial’ do país vizinho”. Seu interlocutor era o empresário Alexandre Giordano, lobista apontado como representante de uma empresa brasileira chamada Léros Energia. Ele é o primeiro suplente de Major Olímpio, líder do PSL no Senado e parlamentar mais votado do estado de São Paulo.

O estopim da crise reside no item 6 da ata, que dava à Ande permissão para negociar a eletricidade excedente de Itaipu por conta própria, extinguindo a necessidade de intermediários. Sem essa cláusula, abria-se caminho para um contrato de exclusividade. E o item acabou mesmo revogado. A comercialização da energia paraguaia da Itaipu Binacional no mercado brasileiro de eletricidade é um negócio multimilionário. Chama atenção, portanto, que uma única empresa tenha protagonizado as negociações. Suspeita-se que a Léros quisesse monopolizar a revenda de 300 megawatts de energia excedente do Paraguai. Em proposta formal feita pela empresa à Ande no dia 27 de julho, a Léros ofereceu 31,50 dólares por kilowatts/hora de energia excedente de Itaipu. A comercializadora sugeriu dividir com a estatal paraguaia o lucro obtido em caso de revenda acima de 35 dólares por kilowatt.

A relação entre Giordano e Olímpio é antiga. Os dois conheceram-se na Zona Norte de São Paulo, reduto eleitoral do policial militar convertido em político graças à retórica “bandido bom é bandido morto”. Em maio de 2017, foram clicados lado a lado para uma reportagem do jornal Guarulhos Hoje a respeito da liberação de emendas para a área de saúde na cidade. O empresário filiou-se ao PSL em 6 abril de 2018, quatro dias depois da adesão do Major Olímpio à legenda. Antes, militava nas hostes do PSDB. Até o mês passado, às vésperas de eclodir o escândalo do Paraguai, a sede do diretório paulista do partido funcionava no mesmo prédio em que ficavam sediadas as empresas de Giordano. O empresário cedeu a sala ao partido na época em que o ex-PM assumiu a direção do PSL. Olímpio comandou a seção paulista da legenda até abril deste ano, quando renunciou ao cargo e foi sucedido por Eduardo Bolsonaro.

A relação de Giordano com o poder também não é nova. Em 2008, a empresa Lobel, da qual é sócio, ganhou da prefeitura de Juazeiro do Norte, no Ceará, um terreno de 9.465 metros quadrados para instalar uma indústria de artefatos de joalheria e ourivesaria. O prefeito à época era Raimundo Macedo, filiado ao MDB.

Fontes do PSL descrevem Giordano como “grande financiador” da eleição de Olímpio. “Ele era assíduo na campanha”, descreve um funcionário do partido ouvido sob anonimato. No Tribunal Superior Eleitoral não consta, porém, nenhuma doação oficial do suplente ao titular. O principal doador individual de Olímpio é o empresário João de Favari, dono de uma fábrica de produtos de limpeza localizada na Zona Norte de São Paulo. A CartaCapital, Favari confirmou a proximidade com o senador e seu suplente. Conhece o major há quase duas décadas. A amizade com Giordano é mais recente. “Há uns quatro, cinco anos”, diz. Essa foi a primeira vez que o empresário colaborou com a campanha de Olímpio. Desembolsou 55 mil reais. Apesar de se declarar filiado ao PSDB, o apoio ao ex-major foi sua única doação nas eleições de 2018.

Giordano não atendeu aos pedidos de entrevista. A secretária do empresário informou que ele estava em viagem, mas desconversou diante da pergunta sobre seu paradeiro e se ele estava no país vizinho. Em nota, o suplente confirmou, no entanto, que esteve duas vezes no Paraguai, na condição de empresário, para tratar da comercialização da energia de Itaipu. Mas negou ter se apresentado como suplente de senador ou como político. O Major Olímpio corrobora essa versão. “Ele me disse, e eu acredito, que jamais se intitulou senador em reunião, muito menos disse falar em nome da família Bolsonaro. Até porque isso seria um completo absurdo, muito fácil de ser checado“, afirmou o parlamentar a CartaCapital.
Os depoimentos de executivos envolvidos contrariam essa afirmação. Em entrevista ao canal Telefuturo, Pedro Ferreira, ex-presidente da Ande, disse que o nome da família Bolsonaro foi citado várias vezes durante reuniões com representantes da Léros. O chanceler Luiz Castiglioni afirmou ter certeza de que houve uma “negociação paralela” sobre a venda de energia para a empresa brasileira. Também procurados, a Léros Energia e o executivo Kleber Ferreira, diretor da empresa, não responderam aos pedidos de entrevista.

Não é de hoje que o Paraguai vive subjugado pelos interesses dos vizinhos grandalhões. Quando caiu Fernando Lugo, em 2012, o país passou um ano fora do Mercosul por ferir a “cláusula democrática” do mercado comum. A dependência agrava-se no caso do Brasil, principal parceiro comercial. O Brasil mantém ainda o segundo maior estoque de investimentos diretos naquele país, estimado em cerca de 1 bilhão de dólares. Em 2018, o intercâmbio comercial foi de 4,1 bilhões de dólares, aumento de 8,6% em relação a 2017. Desde que Jair Bolsonaro foi eleito, a relação entre os dois países ganhou contornos mais voluntaristas. Dias antes do resultado das eleições, Bolsonaro procurou Abdo, a quem chama de “Marito”, para manifestar o desejo de afinar as relações entre ambos. Os filhos dos dois se frequentam, como mostram postagens de Eduardo Bolsonaro nas redes sociais. No dia 23 de julho, o ministro Sérgio Moro revogou o status de refugiado de três paraguaios acusados de integrar um movimento armado de esquerda.

Filho de um dos homens mais poderosos do regime militar, Abdo Benítez venceu as eleições pela margem mais estreita em eleições locais desde 1993. Pesquisas apontam uma rejeição atual de quase 80%, e ele só se mantém no cargo porque a ala oposicionista do Partido Colorado, liderado pelo ex-presidente Horacio Cartes, mudou de ideia em relação ao impeachment. “A união forçada de seu partido ao Colorado e o apoio de Horacio Cartes estão salvando seu governo”, explica a jornalista Estela Ruiz Díaz, do jornal Ultima Hora.

Acuado pelas revelações do caso Itaipu, Benítez agora diz que se deixou levar pelos argumentos da chancelaria paraguaia. Mas mensagens vazadas mostram que ele sabia do acordo e pressionava a Ande a agilizar as tratativas. Em conversa com o presidente da agência estatal na semana anterior à reunião com Bolsonaro, Benítez cobrou pressa.

“Temos que mover a economia. Itaipu é uma ferramenta. Não se pode ganhar tudo em uma negociação.” A sensação, segundo a jornalista, é de que o presidente perdeu a moral para negociar a revisão do acordo binacional, que vence em 2023, com um presidente que o livrou de perder o cargo. Ela aposta, porém, que a história vai acabar em pizza. “No Paraguai, a maioria dos casos de corrupção é diluída. Tudo vai depender da decisão política. Com o Partido Colorado unido, não há possibilidade de chegar ao fundo da questão”, completa.

Pouco antes de morrer, o economista paraguaio Gustavo Codas publicou um extenso artigo sobre o caso de Itaipu. Codas, que presidiu o lado paraguaio da empresa e teve papel central na negociação entre Lugo e Lula, explica que aquele acordo era acompanhado de uma cláusula que permitia à Ande vender energia diretamente ao mercado brasileiro. Reivindicação antiga do país, que esperava lucrar com os preços de mercado. As novas regras abriram caminho para as chamadas “piranhas” no mercado energético privado brasileiro, pequenas empresas que batalham para entrar no mercado de revenda e lucrar com a oscilação dos preços. Foi a primeira vez, porém, que as piranhas atuaram diretamente na negociação.


A oposição convocou o chanceler Ernesto Araújo e o ministro de Minas e Energia, almirante Bento Costa Lima, para prestarem esclarecimentos na Câmara dos Deputados

Bolsonaro esperava abafar o caso rapidamente, mas não será tão fácil. Na terça-feira 13, a Câmara dos Deputados aprovou as convocações do chanceler Ernesto Araújo e do ministro de Minas e Energia, o almirante Bento Costa Lima Leite, para prestarem esclarecimentos. Também foi convidado o general Silva e Luna, presidente da porção brasileira de Itaipu. A oposição tenta conseguir documentos para justificar a abertura de uma CPI. Os deputados querem saber, entre outros temas, se existe alguma relação entre a Léros, o governo paraguaio e a “família presidencial” brasileira. “Mexer com essa história atrapalha a votação do Eduardo Bolsonaro para a embaixada”, avalia o deputado Carlos Zarattini, autor dos pedidos. No Paraguai, os procuradores analisam todas as mensagens virtuais trocadas entre Abdo Benítez e Pedro Ferreira. E já foram ouvidos os principais envolvidos no caso.

Do lado de cá, ainda é cedo para saber se a entrada do nome dos Bolsonaro no favorecimento à Léros é fruto de interesses subterrâneos ou de mera bravata de negociadores espertalhões. Só uma investigação séria conseguirá esclarecer os pontos obscuros dessa história.

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