A insurreição popular em curso no Equador nada fica a dever as grandes epopeias populares da luta anti-imperialista dos povos da América do Sul. Em 1969, o Cordobazzo apontou para o fim da ditadura Ongania, na Argentina, apressando um inevitável processo de democratização. Em 1989, o Caracazzo abriu caminho a um novo período histórico na Venezuela, que projetou a liderança de Hugo Chávez, até hoje referência no país - como confirmaram Donald Trump e Jair Bolsonaro, forçados a recuar do projeto de instalar o fantoche Juan Guaidó no lugar de Nicolás Maduro.
Resposta imediata da população a um ataque direto a seu bem-estar, a ser corroído barbaramente por um reajuste-monstro no preço dos combustíveis, o levante do Equador é o novo capitulo numa história que parece se movimentar numa sequencia concatenada.
Há cinco anos o pêndulo moveu-se numa direção a favor do império. Hoje, o movimento é outro.
Em dezembro de 2015, Maurício Macri venceu as eleições presidenciais na Argentina, interrompendo - por via eleitoral - um período de 14 anos consecutivos de governos peronistas.
Em 2016, o golpe parlamentar contra Dilma deu fim a uma sequencia inédita de quatro governos comprometidos com as necessidades dos trabalhadores, iniciada em 2002 com Lula.
Empossado em Brasília em agosto de 2016, dois anos depois o governo Temer-Meirelles enfrentou uma greve de dez dias de caminhoneiros, motivada pela mesma razão que levantou o Equador: a decisão de alinhar o preço dos combustíveis, em particular do diesel, com os lucros devidos aos tubarões brancos do mercado internacional. (Há um século, porque admitia uma linguagem mais franca, esses personagens eram chamados, em Washington e Nova York, de "Barões Ladrões").
O sentido do reajuste anunciado em Quito era o mesmo que paralisou as estradas brasileiras em 2018: beneficiar investidores internacionais, senhores da nova ordem, transferindo a conta para o conjunto da população, em especial os mais pobres. Na medida em que assume o controle das riquezas, o império quer que sua remuneração seja definida em Wall Street, não mais em Quito ou Brasília.
No Brasil, a mobilização dos caminhoneiros inquietou o país mas produziu maiores resultados. Animados por uma reivindicação justa, que dizia respeito a necessidades criadas pela uberização invisível da categoria, repentinamente forçada a sobreviver com renda de lumpesinato, os caminhoneiros brasileiros foram Iludidos por uma liderança que chegou a levantar faixas que pediam "Intervenção militar".
Acabaram servindo de massa de manobra da candidatura de Jair Bolsonaro. Após a vitória eleitoral, a batuta de Paulo Guedes conduziu a mesma melodia básica de Temer-Meirelles, fortalecendo os laços que ligam os interesses da Petrobras ao caixa dos investidores externos.
Como observa Emir Sader em "A direita latino-americana apodrece", disponível no 247, "basta olhar qual é a situação de países como Argentina, Brasil, Equador, entregues à recessão, ao desemprego, à perda de apoio e de legitimidade dos seus governos, a poucos anos de que presidentes de direita voltaram, para nos darmos conta de que a direita fez todos os esforços, legais e ilegais, para brecar os governos de esquerda e voltar à presidência desses países".
Há diferenças políticas consideráveis entre um país e outro, mas o descontentamento popular expressa um mesmo impulso vital: o esforço para defender seu padrão de vida e preservar as riquezas naturais, impedindo que sejam colocadas sob controle externo.
Habitante de um país que integra o grupo de 20 nações com voz ativa no mercado de petróleo, a fúria da população do Equador contra o reajuste dos combustíveis, que levou o governo a fugir da Capital, compõe-se de elementos econômicos, políticos e também morais.
Infiltrado no governo do ex-presidente Rafael Correa, um dos mais competentes e populares quadros políticos surgidos na América do Sul tem tempos recentes, o presidente Lenine Moreno traiu o protetor com desfaçatez típica dos romances de ficção barata e das grandes tragédias de Shakespeare. Jamais teve legitimidade para governar e, agora, tem menos ainda para se defender da ira popular.
Não só desfez a política econômica do antecessor, recompondo-se com todos e cada um dos antigos adversários de Correa -- a começar pela Casa Branca -- mas mobilizou o aparato policial do Estado para perseguir o ex-presidente, através de denúncias inverossímeis e truculência sem fim.
A rebelião dos últimos dias retirou Correa de seu refúgio externo na Bélgica, atualizando o debate sobre novas eleições, saída inevitável para livrar o Equador de uma presidência eternamente condenada a ser vista como suspeita pela população.
Um aspecto essencial para explicar as dificuldades de Moreno -- e demais governos que comungam com a postura de subordinação sem ressalvas a Washington -- é a fraqueza de Donald Trump.
Enquanto for obrigado a se defender da ameaça de perder o mandato em função das tratativas secretas com o governo da Ucrania, Trump terá de reservar cada grama da energia política que ainda possui para salvar a própria pele.
Nesse capítulo, já entregou os curdos, que mantinha como moeda de troca na Eurásia. Obrigado a fazer de sua salvação a prioridade absoluta, nada impedirá Trump de repetir o gesto com outros aliados que se mostrarem incapazes de se manter de pé por conta própria.
Como os bons observadores já tinham percebido no dia em que a Casa Branca dispensou os serviços de John Bolton, burocrata sempre a espreita de uma nova guerra, os tempos estão mudando -- como cantava a velha música de Bob Dylan, que sempre ganha atualidade quando o povo ganha força na luta política.
Alguma dúvida?
Como observa Emir Sader em "A direita latino-americana apodrece", disponível no 247, "basta olhar qual é a situação de países como Argentina, Brasil, Equador, entregues à recessão, ao desemprego, à perda de apoio e de legitimidade dos seus governos, a poucos anos de que presidentes de direita voltaram, para nos darmos conta de que a direita fez todos os esforços, legais e ilegais, para brecar os governos de esquerda e voltar à presidência desses países".
Há diferenças políticas consideráveis entre um país e outro, mas o descontentamento popular expressa um mesmo impulso vital: o esforço para defender seu padrão de vida e preservar as riquezas naturais, impedindo que sejam colocadas sob controle externo.
Habitante de um país que integra o grupo de 20 nações com voz ativa no mercado de petróleo, a fúria da população do Equador contra o reajuste dos combustíveis, que levou o governo a fugir da Capital, compõe-se de elementos econômicos, políticos e também morais.
Infiltrado no governo do ex-presidente Rafael Correa, um dos mais competentes e populares quadros políticos surgidos na América do Sul tem tempos recentes, o presidente Lenine Moreno traiu o protetor com desfaçatez típica dos romances de ficção barata e das grandes tragédias de Shakespeare. Jamais teve legitimidade para governar e, agora, tem menos ainda para se defender da ira popular.
Não só desfez a política econômica do antecessor, recompondo-se com todos e cada um dos antigos adversários de Correa -- a começar pela Casa Branca -- mas mobilizou o aparato policial do Estado para perseguir o ex-presidente, através de denúncias inverossímeis e truculência sem fim.
A rebelião dos últimos dias retirou Correa de seu refúgio externo na Bélgica, atualizando o debate sobre novas eleições, saída inevitável para livrar o Equador de uma presidência eternamente condenada a ser vista como suspeita pela população.
Um aspecto essencial para explicar as dificuldades de Moreno -- e demais governos que comungam com a postura de subordinação sem ressalvas a Washington -- é a fraqueza de Donald Trump.
Enquanto for obrigado a se defender da ameaça de perder o mandato em função das tratativas secretas com o governo da Ucrania, Trump terá de reservar cada grama da energia política que ainda possui para salvar a própria pele.
Nesse capítulo, já entregou os curdos, que mantinha como moeda de troca na Eurásia. Obrigado a fazer de sua salvação a prioridade absoluta, nada impedirá Trump de repetir o gesto com outros aliados que se mostrarem incapazes de se manter de pé por conta própria.
Como os bons observadores já tinham percebido no dia em que a Casa Branca dispensou os serviços de John Bolton, burocrata sempre a espreita de uma nova guerra, os tempos estão mudando -- como cantava a velha música de Bob Dylan, que sempre ganha atualidade quando o povo ganha força na luta política.
Alguma dúvida?
0 comentários:
Postar um comentário