Por Liszt Vieira, no site Carta Maior:
Alguns analistas de política internacional viram na vitória conservadora que ratificou o Brexit uma rejeição de trabalhadores à ameaça, real ou imaginária, de imigrantes e uma rejeição de industriais ao polo financeiro de Londres, uma das praças internacionais do capital financeiro mundial. Como se sabe, 80% da economia britânica vem do setor serviços.
A derrota trabalhista com a vitória dos conservadores levará provavelmente o Reino Unido a se aproximar mais dos EUA, o que agrada a Trump que sempre detestou a União Europeia (UE), como símbolo do multilateralismo que tanto lhe desagrada. Mas negociar com Trump é uma faca de dois gumes. O America First de Trump, se aplicado, vai dificultar muito a possibilidade de um acordo de livre comércio que é, em última instância, o que deseja Boris Johnson.
Antiga potência imperial, o Reino Unido tem dificuldades de aceitar seu atual papel subalterno. Ainda está impregnado do orgulho imperial do passado e sente nostalgia dos tempos coloniais do Rule Britannia! Além disso, os britânicos nunca se sentiram muito europeus. Churchill e Margareth Thatcher não apoiavam a causa europeia. O presidente francês François Mitterrand chegou a dizer que a primeira ministra Thatcher “se comportava como menina de 8 anos quando falava com o presidente dos EUA” (Dorrit Harazim, O Globo, 15/12/2019). Era arrogante para baixo, humilde para cima.
Especula-se que a vitória conservadora do Brexit possa levar a duas consequências importantes e inesperadas. A primeira é a possível saída da Escócia da Grã Bretanha para se filiar à UE. A Grã Bretanha, como se sabe, é a união da Inglaterra, Escócia e País de Gales. E o Reino Unido é a união da Grã Bretanha com a Irlanda do Norte.
Já existe um movimento político na Escócia propondo sua permanência na UE. O Partido Nacionalista Escocês (SNP), que se posiciona contra o Brexit, alcançou um expressivo avanço: conquistou 48 das 59 cadeiras que cabem à Escócia no Parlamento britânico. Esse partido propõe um novo Plebiscito sobre a independência da Escócia, rejeitada em 2014 por uma maioria apertada de 55% dos eleitores.
Menos provável, mas também possível, é a saída da Irlanda do Norte, protestante e membro do Reino Unido, em função de acordos com a República da Irlanda, país católico, hoje independente e vinculado à UE.
A fronteira da República da Irlanda com a Irlanda do Norte será a única fronteira terrestre da UE com o Reino Unido, depois do Brexit. Isso vai colocar uma série de questões comerciais e aduaneiras que antes não existiam, já que todos estavam na UE. Pelo acordo negociado nas tratativas do Brexit, a Irlanda do Norte participará da união aduaneira britânica, mas manterá regras do mercado comum europeu para impedir eventuais controles na fronteira com a República da Irlanda que violariam os acordos de paz anteriores, principalmente o Acordo da Sexta Feira Santa de 1998 que determinava “nenhuma fronteira na Ilha da Irlanda”.
Ainda é cedo para previsões, não se sabe qual acordo de comércio será negociado entre Boris Johnson e a UE. Segundo a proposta do primeiro ministro Johnson será uma saída sem ruptura, com acordos comerciais especiais, sem tarifas nem cotas, por exemplo. Mas tudo indica que a UE, igualmente desejosa de acordos comerciais, será muito mais exigente do que demonstrou até agora.
Alguns jornalistas decretaram o fim da globalização com a confirmação do Brexit e o avanço de posições nacionalistas em vários países, principalmente os EUA. Mas o prazo para a negociação do novo acordo comercial do Reino Unido com a UE se esgota no final de 2020, se não for renovado. A novela vai continuar. E antes disso teremos a eleição presidencial nos EUA, onde há fortes indicações de que Trump pode perder a eleição. E antes ainda a crise da votação do impeachment de Trump que será aprovada na Câmara de maioria democrata e rejeitada no Senado de maioria republicana.
Assim, falar agora em fim da globalização é, no mínimo, uma imprudência. Mais provável é a desagregação do Reino Unido com a crise econômica que advirá do Brexit. Diversas empresas já saíram e os bancos já retiraram de Londres 1 trilhão de dólares, enviados a países europeus (Estadão, 15/12/2019). Por outro lado, o ressurgimento dos nacionalismos enfrenta problemas no âmbito interno e internacional.
A divisão do mundo em Estados nacionais, consagrada no Tratado de Westfalia em 1648, levou à repressão de identidades culturais. Em nome da construção histórica do Estado Nacional, identidades étnicas, sexuais, de gênero, religiosas etc. foram sufocadas. A partir da segunda metade do século passado, começam a ressurgir as identidades antes reprimidas, que passaram a se organizar em movimentos reivindicatórios como o feminismo, LGBT, movimento negro, indígena, entidades religiosas etc.
Essas identidades se tornaram, para muitas pessoas, mais importantes do que a identidade nacional que se enfraqueceu com a globalização de dominância liberal. As grandes corporações transnacionais possuem orçamentos maiores do que a maioria dos países que se tornaram verdadeiras províncias. Muitos fenômenos atuais passam por cima do controle territorial do Estado nacional como, por exemplo, comunicações eletrônicas, mudanças climáticas, tráfico de drogas e armas, transferência de capital que entra e sai do país livremente, influências culturais - de modas a músicas - influências civilizatórias como direitos humanos, deslocamento de refugiados e de mão de obra imigrante etc.
A resistência dos nacionalismos atuais tem caráter conservador e se limita à defesa de alguns interesses econômicos, sem questionar a essência dos processos de globalização econômica e financeira. Nada garante que esse nacionalismo tardio tenha vida longa. É prematuro fazer previsões e afirmar que a globalização desmoronou. O capitalismo improdutivo, sob controle do capital financeiro, continua dominando o mercado mundial. O modelo neoliberal é predominante e está sempre gestando a reprodução ampliada da desigualdade que levará, segundo muitos analistas já vislumbraram no horizonte, à próxima crise econômica mundial que vai contaminar fortemente, embora em graus diferenciados, todas as economias nacionais.
A hoje improvável mas não impossível saída da Irlanda do Norte acarretaria a extinção do Reino Unido. E a talvez provável saída da Escócia reduziria a Grã Bretanha à Inglaterra e País de Gales. Assim, a ironia da história é que essa recente decisão de ratificar o Brexit e rejeitar a UE pode levar não ao fim da globalização, mas à dissolução do Reino Unido ou ao enfraquecimento da Grã Bretanha. Afinal, estamos longe do século XIX e do Rule Britannia. No momento, trata-se de apostas. O governo britânico fará provavelmente muitas concessões para evitar esse desenlace que ocorrerá ou não em função dos interesses das partes.
Alguns analistas de política internacional viram na vitória conservadora que ratificou o Brexit uma rejeição de trabalhadores à ameaça, real ou imaginária, de imigrantes e uma rejeição de industriais ao polo financeiro de Londres, uma das praças internacionais do capital financeiro mundial. Como se sabe, 80% da economia britânica vem do setor serviços.
A derrota trabalhista com a vitória dos conservadores levará provavelmente o Reino Unido a se aproximar mais dos EUA, o que agrada a Trump que sempre detestou a União Europeia (UE), como símbolo do multilateralismo que tanto lhe desagrada. Mas negociar com Trump é uma faca de dois gumes. O America First de Trump, se aplicado, vai dificultar muito a possibilidade de um acordo de livre comércio que é, em última instância, o que deseja Boris Johnson.
Antiga potência imperial, o Reino Unido tem dificuldades de aceitar seu atual papel subalterno. Ainda está impregnado do orgulho imperial do passado e sente nostalgia dos tempos coloniais do Rule Britannia! Além disso, os britânicos nunca se sentiram muito europeus. Churchill e Margareth Thatcher não apoiavam a causa europeia. O presidente francês François Mitterrand chegou a dizer que a primeira ministra Thatcher “se comportava como menina de 8 anos quando falava com o presidente dos EUA” (Dorrit Harazim, O Globo, 15/12/2019). Era arrogante para baixo, humilde para cima.
Especula-se que a vitória conservadora do Brexit possa levar a duas consequências importantes e inesperadas. A primeira é a possível saída da Escócia da Grã Bretanha para se filiar à UE. A Grã Bretanha, como se sabe, é a união da Inglaterra, Escócia e País de Gales. E o Reino Unido é a união da Grã Bretanha com a Irlanda do Norte.
Já existe um movimento político na Escócia propondo sua permanência na UE. O Partido Nacionalista Escocês (SNP), que se posiciona contra o Brexit, alcançou um expressivo avanço: conquistou 48 das 59 cadeiras que cabem à Escócia no Parlamento britânico. Esse partido propõe um novo Plebiscito sobre a independência da Escócia, rejeitada em 2014 por uma maioria apertada de 55% dos eleitores.
Menos provável, mas também possível, é a saída da Irlanda do Norte, protestante e membro do Reino Unido, em função de acordos com a República da Irlanda, país católico, hoje independente e vinculado à UE.
A fronteira da República da Irlanda com a Irlanda do Norte será a única fronteira terrestre da UE com o Reino Unido, depois do Brexit. Isso vai colocar uma série de questões comerciais e aduaneiras que antes não existiam, já que todos estavam na UE. Pelo acordo negociado nas tratativas do Brexit, a Irlanda do Norte participará da união aduaneira britânica, mas manterá regras do mercado comum europeu para impedir eventuais controles na fronteira com a República da Irlanda que violariam os acordos de paz anteriores, principalmente o Acordo da Sexta Feira Santa de 1998 que determinava “nenhuma fronteira na Ilha da Irlanda”.
Ainda é cedo para previsões, não se sabe qual acordo de comércio será negociado entre Boris Johnson e a UE. Segundo a proposta do primeiro ministro Johnson será uma saída sem ruptura, com acordos comerciais especiais, sem tarifas nem cotas, por exemplo. Mas tudo indica que a UE, igualmente desejosa de acordos comerciais, será muito mais exigente do que demonstrou até agora.
Alguns jornalistas decretaram o fim da globalização com a confirmação do Brexit e o avanço de posições nacionalistas em vários países, principalmente os EUA. Mas o prazo para a negociação do novo acordo comercial do Reino Unido com a UE se esgota no final de 2020, se não for renovado. A novela vai continuar. E antes disso teremos a eleição presidencial nos EUA, onde há fortes indicações de que Trump pode perder a eleição. E antes ainda a crise da votação do impeachment de Trump que será aprovada na Câmara de maioria democrata e rejeitada no Senado de maioria republicana.
Assim, falar agora em fim da globalização é, no mínimo, uma imprudência. Mais provável é a desagregação do Reino Unido com a crise econômica que advirá do Brexit. Diversas empresas já saíram e os bancos já retiraram de Londres 1 trilhão de dólares, enviados a países europeus (Estadão, 15/12/2019). Por outro lado, o ressurgimento dos nacionalismos enfrenta problemas no âmbito interno e internacional.
A divisão do mundo em Estados nacionais, consagrada no Tratado de Westfalia em 1648, levou à repressão de identidades culturais. Em nome da construção histórica do Estado Nacional, identidades étnicas, sexuais, de gênero, religiosas etc. foram sufocadas. A partir da segunda metade do século passado, começam a ressurgir as identidades antes reprimidas, que passaram a se organizar em movimentos reivindicatórios como o feminismo, LGBT, movimento negro, indígena, entidades religiosas etc.
Essas identidades se tornaram, para muitas pessoas, mais importantes do que a identidade nacional que se enfraqueceu com a globalização de dominância liberal. As grandes corporações transnacionais possuem orçamentos maiores do que a maioria dos países que se tornaram verdadeiras províncias. Muitos fenômenos atuais passam por cima do controle territorial do Estado nacional como, por exemplo, comunicações eletrônicas, mudanças climáticas, tráfico de drogas e armas, transferência de capital que entra e sai do país livremente, influências culturais - de modas a músicas - influências civilizatórias como direitos humanos, deslocamento de refugiados e de mão de obra imigrante etc.
A resistência dos nacionalismos atuais tem caráter conservador e se limita à defesa de alguns interesses econômicos, sem questionar a essência dos processos de globalização econômica e financeira. Nada garante que esse nacionalismo tardio tenha vida longa. É prematuro fazer previsões e afirmar que a globalização desmoronou. O capitalismo improdutivo, sob controle do capital financeiro, continua dominando o mercado mundial. O modelo neoliberal é predominante e está sempre gestando a reprodução ampliada da desigualdade que levará, segundo muitos analistas já vislumbraram no horizonte, à próxima crise econômica mundial que vai contaminar fortemente, embora em graus diferenciados, todas as economias nacionais.
A hoje improvável mas não impossível saída da Irlanda do Norte acarretaria a extinção do Reino Unido. E a talvez provável saída da Escócia reduziria a Grã Bretanha à Inglaterra e País de Gales. Assim, a ironia da história é que essa recente decisão de ratificar o Brexit e rejeitar a UE pode levar não ao fim da globalização, mas à dissolução do Reino Unido ou ao enfraquecimento da Grã Bretanha. Afinal, estamos longe do século XIX e do Rule Britannia. No momento, trata-se de apostas. O governo britânico fará provavelmente muitas concessões para evitar esse desenlace que ocorrerá ou não em função dos interesses das partes.
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