Por ocasião de um ato em defesa da democracia, realizado no auditório da Faculdade de Direito da USP, que coincidiu com os cinquenta anos do AI-5, fiz uma breve intervenção, na qual chamei a atenção para a necessidade de recuperar-se o “discurso racional” na política. Estava - e continuo a estar - assustado com a crescente dominação da política pela manipulação de medos, ódios e ressentimentos e com a propagação, por meios eletrônicos, de mensagens curtas, geralmente falsas e com grande capacidade de penetração em mentes menos acostumadas ao pensamento crítico. Tais mensagens contam com o apoio de novas formas de associação, que exploram afinidades afetivas, familiares ou de outra natureza, em uma versão moderna do “argumento da autoridade”.
Vivemos um mundo pré-cartesiano, no qual muitas pessoas aceitam determinada posição não porque pesaram argumentos contra e a favor de uma tese e chegaram a conclusões próprias, mas porque essa posição foi transmitida por alguém com quem se identificam emotivamente, seja ele um indivíduo que detém algum tipo de ascendência moral, seja por tratar-se de um amigo ou um parente, com quem tais pessoas têm laços afetivos fortes.
Naquele momento, logo após a eleição presidencial de 2018, a substituição do “discorso”, de que falam os italianos, por impulsos emocionais manipuladores me pareceu estar por trás da onda obscurantista, que já se anunciava, mas que se agravou enormemente com a posse de Jair Bolsonaro. Nem é preciso citar aqui as inúmeras manifestações desse desapego à lógica e à razão, ilustrado pelo menosprezo à ciência, pelas aparições milagrosas, pelo incentivo à violência e ao ódio, pelas citações nazistas, pelo culto ostensivo da ignorância ou, mesmo, pela mera confusão mental, a serviço de objetivos oportunistas e de acréscimos de poder. Deixo ao leitor ou leitora identificar cada uma dessas atitudes com personagens específicos, entre os que comandam hoje os destinos do país.
É, assim, com prazer intelectual e com algum alívio, que tenho lido textos de pessoas de quem discordo em vários aspectos importantes, mas que procuram expor suas ideias com base em argumentos que respeitam a lógica e a racionalidade. Não me incluo entre aqueles que temem que o Centro ou a Centro-Direita sequestrem, por exemplo, o tema da desigualdade, que sempre ocupou, na teoria e na prática, um lugar estratégico no ideário dos partidos de esquerda ou progressistas (no fundo a mesma coisa). Isso não quer dizer que não tenha minhas críticas sobre pontos fundamentais.
Tenho dificuldade de entender como seria possível um combate à brutal desigualdade em nosso país sem uma distribuição mais efetiva da riqueza (e não apenas da renda) - o que, em muitos casos, passa pela propriedade coletiva - e sem uma participação mais forte do Estado na economia, para além da agenda social stricto sensu.
Por outro lado, não vejo nos que defendem essas opiniões de algum modo refrescantes sobre a “questão social” preocupação equivalente em relação à “questão nacional”. Para mim, as duas são estreitamente ligadas, até porque, sem autonomia decisória, um país não pode escolher suas políticas sociais. Um exemplo disso é o tema de remédios genéricos vis-à-vis propriedade intelectual. Poderia citar muitos outros ligados à educação, saúde e meio-ambiente. Ninguém pode ser considerado “de esquerda”, a meu ver, se não for capaz de conjugar as duas questões.
Acho que o público e a sociedade ganhariam muito com um debate aprofundado sobre esses temas entre economistas da esquerda (a tradicional) e do chamado “centro”, que querem ser uma espécie de “nova esquerda”. Haveria aqui uma verdadeira e saudável polarização, pois se as preocupações são, até certo ponto, semelhantes, os remédios seriam, no conjunto, bem diferentes. Além de esclarecer pontos específicos das respectivas propostas, um debate polarizado desse tipo teria o mérito de retirar um pouco a atenção dos factoides que inundam o noticiário político atual.
* Celso Amorim é ex-ministro das Relações Exteriores (2003-2010, governo Lula) e da Defesa (2011-2015, governo Dilma).
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