Por Tarso Genro, no site Sul-21:
Penso que estão equivocados os que de boa fé combatem Bernie Sanders como perigoso inimigo do sistema capitalista. Pode-se dizer que ele é, na verdade, inimigo do sistema do capital -tal qual ele está constituído na época da sua financeirização absoluta - quando o controle dos seus fluxos globais e a distribuição dos seus recursos para financiar guerras de conquista, empoderamento sobre fontes de energia e controle político de territórios, estão sob a tutela das redes financeiras de especulação sem produção e sem trabalho vivo. Bernie quer é a salvação do capitalismo com democracia política e menos desigualdade e os seus críticos, em geral, defendem o ressecamento do regime liberal-democrático, mesmo que ele se encaminhe para o fascismo, com todas as mazelas, violências e hierarquias sociais que ele representa. O enigma Bernie simboliza, na política americana, a dúvida recorrente da política moderna -na sua maturidade ou decadência- sobre se a democracia liberal ainda é compatível com o sistema do capital, ou não. Quero que seja, mas acho que não é.
Aqueles que sustentam que Bernie Sanders representa um “perigo” para a estabilidade econômica mundial e para a democracia liberal no ocidente, são os mesmos -jornalistas, políticos, lideranças corporativas, especuladores, agências de risco, grandes negociantes locais e globais- que concordam que Donald Trump é sim um sujeito sensato, Bolsonaro é um democrata ainda que meio folclórico, Piñera é uma promessa incompreendida pelos aposentados famintos e Macri foi um honesto liberal, azarado pela crise. Bernie Sanders, porém, é considerado perigoso, radical, “comunista”, o que não só é decorrência de um fanatismo ideológico da direita truculenta, mas também da ignorância supina -voluntária ou adquirida- sobre os principais embates ideológicos do presente.
Quais são estes embates? Eles tratam, atualmente, de como o Estado vai se organizar dentro do sistema do capital, no próximo ciclo de acumulação rentista, se mais direcionado para a guerra e o fascismo, ou mais voltado para uma paz negociada, interna e externamente, aos países centrais. O Brasil representa um fragmento destes embates, aparentemente irracionais da democracia moderna, onde um Presidente alucinado chama movimentações para fechar um Congresso no qual ele é maioria e no qual ele não dispõe de um partido-base, para coordenar suas ações políticas e de governo: sua força de reserva são as milícias, seu instrumento de difusão são as redes organizadas fora do território, seu instrumento de coesão política máxima é a cumplicidade com o reformismo ultra-liberal, apoiado pela grande mídia.
Bernie Sanders, na verdade, propõe a recuperação da América através de um capitalismo idealizado pela Justiça Social. E esta é uma proposta reformista “forte” no contexto histórico em que vivemos, no qual toda a máquina estatal, todas as relações de mercado, toda a distribuição de recursos, está orientada, mantida e financiada, pelo capital financeiro global. Este, mesmo tendo as suas contradições internas, joga toda a sua energia política e cultural – todos os seus fluxos comunicacionais- para moldar uma vida comum subordinada ao seu processo de acumulação. Nela o mercado financeiro impõe regras supra-estatais para o funcionamento da economia dos estados endividados, busca controlar a vida política, os fluxos de recursos para fora dos centros de poder mundial, bem como a difusão da opinião.
O que mais impressiona nestes indivíduos é a sua insensibilidade em relação à fome, que se avoluma e a sua omissão “programática” -no terreno da política- em relação aos desesperados. Sua surdez moral anula -da sua escuta- o clamor dos idosos, dos jovens humilhados nas sinaleiras da vida suplicando uma ajuda, dos pobres moradores das zonas turvas da cidade formal. O medo, a súplica e o horror, não lhes sensibilizam. Sensibiliza-os apenas os pregões das bolsas, o cheiro do dinheiro, a multiplicação milagrosa das fortunas sem trabalho e a capacidade empreendedora manipulada na informalidade sem futuro. Bernie Sanders é a recuperação do sentimento de repulsa moral orientadora das grandes jornadas americanas contra o racismo, contra o nazismo e contra a guerra do Viet-Nam, que não pretende instaurar nenhum socialismo, mas afirmar a imagem que os “Pais Fundadores” da nação americana -correta ou incorretamente- fizeram de si mesmos.
Jefrey Sachs, em recente artigo no “Valor” (27.02.20) mostra que num país como os EEUU, em “que uma em cada cinco famílias americanas tem patrimônio líquido zero e quase 40 por cento da população tem dificuldades de suprir suas necessidades básicas”, onde “44 milhões de americanos (…) têm dívidas estudantis que somam 1,6 trilhão” -mostra Sacchs- que, neste país, a intimidade entre os Reagan, Trump, Clinton e até mesmo Obama, com Wall Strett, compõe o que ele chama de “uma grande família feliz”. Bernie Sanders seria nela um “ponto fora da curva” no domínio de Wall Strett sobre o mundo político, mesmo que na Europa ele fosse considerado pelas pessoas sérias, apenas um socialdemocrata típico, daqueles que as salvaram das guerras civis em torno da ideia dos socialismo revolucionário.
Creio que a esquerda chegará, por outras razões, à mesma conclusão do sistema do capital sobre o fato que a socialdemocracia clássica não poderá mais ser pactuada, por dois motivos fundamentais: ela exigiria (1) uma nova mesa de negociação democrática, que proporia uma regulação humanista da exploração do trabalho; e (2) o processo de acumulação mais “seguro” e rentável, não passa mais por investimentos na produção, mas passa pela sucção financeira dos países endividados, através da rolagem extorsiva da dívida pública. Aquela socialdemocracia, que envolvia negociações transparentes entre o proletariado fabril e a burocracia do serviço público -de um lado- e a burguesia industrial com os plutocratas do Estado Social, de outro, não tem mais condições de vingar. Seus “sujeitos” ativos se dissolveram na nuvem do capital financeiro volatilizado e o seu ideal democrático distributivo -dentro do sistema capitalista- mudou de forma ou desapareceu. É que nos diz Bernie Sanders!
Qual o radicalismo de Bernie? Um sistema público de saúde -acessível a todas as famílias- um sistema de ensino que não endivide os jovens para o resto das suas vidas, um sistema eleitoral que não seja comprável pelos bilionários, políticas públicas formuladas com participação cidadã, taxação dos ultra-bilionários (que continuariam muito ricos) para financiar um novo Estado Social americano, não muito distante -aliás- da proposta da “Great Society”, adotada pelo Presidente Johnson em 64\65. Nenhuma expropriação revolucionária, nenhuma redução da vida política democrática, nenhuma norma de exceção, nenhuma proximidade com o “modelo venezuelano”, sim proximidades com os modelos do Canadá, da Dinamarca e -pasmem- com a efetividade dos direitos fundamentais que estão na nossa Constituição de 88. Seu modelo sócio-econômico historicamente mais próximo seria, aliás, aquele protagonizado pelas políticas do trabalhismo inglês de Harold Wilson nos anos 60, com transferências de renda, saúde pública qualificada e um sistema de proteção social às famílias mais pobres e aos trabalhadores de rendimentos mais baixo.
Ladislau Dowbor no seu “Era do Capital Improdutivo” apresentou dados estarrecedores não desmentidos, que demonstram que os milionários do Brasil “têm cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais e mais 2 trilhões de reais que não produzem nem pagam impostos”, a maior parte nas mãos de 206 bilionários que ombreiam, nas suas fortunas, com os maiores bilionários do mundo, que vegetam “entupidos” de dinheiro. É contra esta forma de capitalismo que Bernie Sanders se insurge e sobre ela que nos fala, junto com Piketty, David Harvey, Stiglitz, Jeffrey Sachs e já tantos outros, tentando erguer uma democracia social renovada como a utopia possível do Século XXI. Será tarde demais?
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Penso que estão equivocados os que de boa fé combatem Bernie Sanders como perigoso inimigo do sistema capitalista. Pode-se dizer que ele é, na verdade, inimigo do sistema do capital -tal qual ele está constituído na época da sua financeirização absoluta - quando o controle dos seus fluxos globais e a distribuição dos seus recursos para financiar guerras de conquista, empoderamento sobre fontes de energia e controle político de territórios, estão sob a tutela das redes financeiras de especulação sem produção e sem trabalho vivo. Bernie quer é a salvação do capitalismo com democracia política e menos desigualdade e os seus críticos, em geral, defendem o ressecamento do regime liberal-democrático, mesmo que ele se encaminhe para o fascismo, com todas as mazelas, violências e hierarquias sociais que ele representa. O enigma Bernie simboliza, na política americana, a dúvida recorrente da política moderna -na sua maturidade ou decadência- sobre se a democracia liberal ainda é compatível com o sistema do capital, ou não. Quero que seja, mas acho que não é.
Aqueles que sustentam que Bernie Sanders representa um “perigo” para a estabilidade econômica mundial e para a democracia liberal no ocidente, são os mesmos -jornalistas, políticos, lideranças corporativas, especuladores, agências de risco, grandes negociantes locais e globais- que concordam que Donald Trump é sim um sujeito sensato, Bolsonaro é um democrata ainda que meio folclórico, Piñera é uma promessa incompreendida pelos aposentados famintos e Macri foi um honesto liberal, azarado pela crise. Bernie Sanders, porém, é considerado perigoso, radical, “comunista”, o que não só é decorrência de um fanatismo ideológico da direita truculenta, mas também da ignorância supina -voluntária ou adquirida- sobre os principais embates ideológicos do presente.
Quais são estes embates? Eles tratam, atualmente, de como o Estado vai se organizar dentro do sistema do capital, no próximo ciclo de acumulação rentista, se mais direcionado para a guerra e o fascismo, ou mais voltado para uma paz negociada, interna e externamente, aos países centrais. O Brasil representa um fragmento destes embates, aparentemente irracionais da democracia moderna, onde um Presidente alucinado chama movimentações para fechar um Congresso no qual ele é maioria e no qual ele não dispõe de um partido-base, para coordenar suas ações políticas e de governo: sua força de reserva são as milícias, seu instrumento de difusão são as redes organizadas fora do território, seu instrumento de coesão política máxima é a cumplicidade com o reformismo ultra-liberal, apoiado pela grande mídia.
Bernie Sanders, na verdade, propõe a recuperação da América através de um capitalismo idealizado pela Justiça Social. E esta é uma proposta reformista “forte” no contexto histórico em que vivemos, no qual toda a máquina estatal, todas as relações de mercado, toda a distribuição de recursos, está orientada, mantida e financiada, pelo capital financeiro global. Este, mesmo tendo as suas contradições internas, joga toda a sua energia política e cultural – todos os seus fluxos comunicacionais- para moldar uma vida comum subordinada ao seu processo de acumulação. Nela o mercado financeiro impõe regras supra-estatais para o funcionamento da economia dos estados endividados, busca controlar a vida política, os fluxos de recursos para fora dos centros de poder mundial, bem como a difusão da opinião.
O que mais impressiona nestes indivíduos é a sua insensibilidade em relação à fome, que se avoluma e a sua omissão “programática” -no terreno da política- em relação aos desesperados. Sua surdez moral anula -da sua escuta- o clamor dos idosos, dos jovens humilhados nas sinaleiras da vida suplicando uma ajuda, dos pobres moradores das zonas turvas da cidade formal. O medo, a súplica e o horror, não lhes sensibilizam. Sensibiliza-os apenas os pregões das bolsas, o cheiro do dinheiro, a multiplicação milagrosa das fortunas sem trabalho e a capacidade empreendedora manipulada na informalidade sem futuro. Bernie Sanders é a recuperação do sentimento de repulsa moral orientadora das grandes jornadas americanas contra o racismo, contra o nazismo e contra a guerra do Viet-Nam, que não pretende instaurar nenhum socialismo, mas afirmar a imagem que os “Pais Fundadores” da nação americana -correta ou incorretamente- fizeram de si mesmos.
Jefrey Sachs, em recente artigo no “Valor” (27.02.20) mostra que num país como os EEUU, em “que uma em cada cinco famílias americanas tem patrimônio líquido zero e quase 40 por cento da população tem dificuldades de suprir suas necessidades básicas”, onde “44 milhões de americanos (…) têm dívidas estudantis que somam 1,6 trilhão” -mostra Sacchs- que, neste país, a intimidade entre os Reagan, Trump, Clinton e até mesmo Obama, com Wall Strett, compõe o que ele chama de “uma grande família feliz”. Bernie Sanders seria nela um “ponto fora da curva” no domínio de Wall Strett sobre o mundo político, mesmo que na Europa ele fosse considerado pelas pessoas sérias, apenas um socialdemocrata típico, daqueles que as salvaram das guerras civis em torno da ideia dos socialismo revolucionário.
Creio que a esquerda chegará, por outras razões, à mesma conclusão do sistema do capital sobre o fato que a socialdemocracia clássica não poderá mais ser pactuada, por dois motivos fundamentais: ela exigiria (1) uma nova mesa de negociação democrática, que proporia uma regulação humanista da exploração do trabalho; e (2) o processo de acumulação mais “seguro” e rentável, não passa mais por investimentos na produção, mas passa pela sucção financeira dos países endividados, através da rolagem extorsiva da dívida pública. Aquela socialdemocracia, que envolvia negociações transparentes entre o proletariado fabril e a burocracia do serviço público -de um lado- e a burguesia industrial com os plutocratas do Estado Social, de outro, não tem mais condições de vingar. Seus “sujeitos” ativos se dissolveram na nuvem do capital financeiro volatilizado e o seu ideal democrático distributivo -dentro do sistema capitalista- mudou de forma ou desapareceu. É que nos diz Bernie Sanders!
Qual o radicalismo de Bernie? Um sistema público de saúde -acessível a todas as famílias- um sistema de ensino que não endivide os jovens para o resto das suas vidas, um sistema eleitoral que não seja comprável pelos bilionários, políticas públicas formuladas com participação cidadã, taxação dos ultra-bilionários (que continuariam muito ricos) para financiar um novo Estado Social americano, não muito distante -aliás- da proposta da “Great Society”, adotada pelo Presidente Johnson em 64\65. Nenhuma expropriação revolucionária, nenhuma redução da vida política democrática, nenhuma norma de exceção, nenhuma proximidade com o “modelo venezuelano”, sim proximidades com os modelos do Canadá, da Dinamarca e -pasmem- com a efetividade dos direitos fundamentais que estão na nossa Constituição de 88. Seu modelo sócio-econômico historicamente mais próximo seria, aliás, aquele protagonizado pelas políticas do trabalhismo inglês de Harold Wilson nos anos 60, com transferências de renda, saúde pública qualificada e um sistema de proteção social às famílias mais pobres e aos trabalhadores de rendimentos mais baixo.
Ladislau Dowbor no seu “Era do Capital Improdutivo” apresentou dados estarrecedores não desmentidos, que demonstram que os milionários do Brasil “têm cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais e mais 2 trilhões de reais que não produzem nem pagam impostos”, a maior parte nas mãos de 206 bilionários que ombreiam, nas suas fortunas, com os maiores bilionários do mundo, que vegetam “entupidos” de dinheiro. É contra esta forma de capitalismo que Bernie Sanders se insurge e sobre ela que nos fala, junto com Piketty, David Harvey, Stiglitz, Jeffrey Sachs e já tantos outros, tentando erguer uma democracia social renovada como a utopia possível do Século XXI. Será tarde demais?
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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