Por César Locatelli, no site Carta Maior:
O título do texto assinado por Thomas L. Friedman, no NYT de 22 de março, estampa: “Um plano para levar a América de volta ao trabalho”. A linha fina diz: “Alguns especialistas dizem que isso pode ser feito em semanas, não meses - e a economia e a saúde pública estão em risco”.
O plano
O plano é basicamente deixar quase todo mundo voltar a levar vida normal, tratar os infectados como se trata para influenza e isolar aqueles mais vulneráveis. Diz o articulista “Uma abordagem cirúrgica vertical se concentraria em proteger e sequestrar aqueles entre nós com maior probabilidade de serem mortos ou sofrerem danos a longo prazo pela exposição à infecção por coronavírus - ou seja, idosos, pessoas com doenças crônicas e imunologicamente comprometidas - enquanto se trataria basicamente o resto da sociedade da maneira como sempre lidamos com ameaças conhecidas como a influenza”.
O título, o subtítulo e esse parágrafo nos levam a concluir que já existe um plano, que o plano é viável, que conhecemos bem o vírus e sua letalidade, que temos os meios necessários. A única dúvida é quanto ao número de semanas para se voltar ao business as usual.
O que falta responder
Pois bem, ao ler o artigo identificamos incertezas e desejos: “precisamos fornecer mais leitos hospitalares, equipamentos de tratamento para quem vai precisar e equipamentos de proteção, como máscaras N95, para médicos e enfermeiras que cuidam de pacientes infectados por vírus. Isso é urgente!”
Como o jornalista afirmou “precisamos de mais…”, fica evidente que não estão disponíveis leitos e equipamentos suficientes. Com quase todos voltando à vida normal, que é o plano proposto, é de se esperar que essas carências se agudizem. A reaproximação social fará com que os casos cresçam exponencialmente. Das poucos coisas que se sabe, uma é o altíssimo poder de contaminação do vírus. Só isso já balança a lógica do plano, mas tem mais.
A letalidade tampouco é conhecida: “Dr. John P.A. Ioannidis… apontou em um ensaio de 17 de março no statnews.com, que ainda não temos uma compreensão firme da taxa de mortalidade de coronavírus em toda a população. Uma análise de algumas das melhores evidências disponíveis atualmente indica que pode ser de 1% e até menor”.
O parágrafo seguinte começa com: "Se essa é a verdadeira taxa…" Ora, a leitura deveria ser interrompida aqui. Se a letalidade não é conhecida de que adianta conjecturar? Corrigindo. Claro que a conjectura tem sua utilidade: passar uma imagem impactante - para ajudar a convencer os leitores de que o plano é ótimo - de um elefante pulando de um penhasco: “trancar o mundo com consequências sociais e financeiras potencialmente tremendas pode ser totalmente irracional. É como um elefante sendo atacado por um gato doméstico. Frustrado e tentando evitar o gato, o elefante acidentalmente pula de um penhasco e morre'', complementa o Dr. Ioannidis.
Como é possível estimar a letalidade se até testes estão em falta? Outro entrevistado, Dr. David L. Katz, confirma que faltam testes, em outra conjectura: "Quando demitimos trabalhadores e faculdades fecham seus dormitórios e mandam todos os estudantes para casa", observou Katz, "jovens de status infeccioso indeterminado estão sendo enviados para casa para se reunir com suas famílias em todo o país. E como nos faltam testes generalizados, eles podem estar portando o vírus e transmitindo-o aos pais de 50 e poucos anos e aos avós de 70 ou 80 anos.''
Claro que ele quer concluir que seria melhor deixar os trabalhadores e os estudantes em plena convivência. Mas o importante aqui é perceber que ele sabe que faltam testes. O que temos até aqui? Um plano para que o convívio social volte à normalidade, mesmo sabendo que faltam leitos e equipamentos para cuidar daqueles com quadros mais graves, mesmo desconhecendo-se a taxa de de letalidade e mesmo sabendo que a falta de testes implica desconhecimento até do número de casos. Mas tem mais.
O Dr. Katz assume, igualmente, que não se sabe a razão de jovens morrerem: “É por isso que também devemos usar esse período de transição de duas semanas (ou mais, se for o que o CDC decidir) para estabelecer por meio da análise de dados os melhores critérios possíveis para diferenciar os especialmente vulneráveis dos demais. Por exemplo, algumas pessoas mais jovens foram mortas por coronavírus. Precisamos entender melhor o porquê. Katz diz que há pesquisas que sugerem que muitos deles também tiveram outras condições médicas crônicas graves, mas isso precisa de mais dados e análises. A determinação de quem exatamente tem em alto risco deve se basear nos dados mais atuais e devem ser rotineiramente atualizados pelas autoridades de saúde pública relevantes.”
Faltam dados e faltam análises, na opinião dele. Não se sabe a razão de jovens terem morrido. Não se sabe exatamente quem são os mais vulneráveis. Poderíamos encerrar o caso, mas tem mais.
Ainda não se tem certeza de que quem se recupera do vírus fica imune. Diz Katz: “também gostaríamos de confirmar cuidadosamente que, depois de se recuperar da Covid-19, você fica imune a obtê-la ou espalhá-la novamente por um período de tempo. A maioria dos especialistas acredita que isso seja verdade, disse Katz, mas houve alguns relatos de reinfecção, e o assunto não está resolvido.”
Correndo o risco de ser repetitivo, o que extraímos deste texto até aqui? Ele revela um plano para abolir o confinamento geral e restringir a distância social àqueles mais vulneráveis. Sabe-se que não há testes suficientes, assim, não se tem conhecimento com razoável precisão do número de casos, tampouco se tem segurança da taxa de letalidade. Sabe-se que não há leitos nem equipamentos suficientes para dar conta de um plano que certamente multiplicará os casos de infecção. Sabe-se que há casos fatais em jovens, mas desconhece-se a razão, o que implica impossibilidade de estabelecer com alguma segurança o grupo vulnerável. Não se sabe se aqueles que tiveram a infecção e se recuperaram tornaram-se imunes e deixam de transmitir o vírus.
A atitude do repórter frente ao que apurou
O jornalista não teme criticar a solução de distanciamento social, adotada até agora em inúmeros países. Não teme revelar sua própria avaliação e dizer que uma ideia é boa ou ruim. Não teme usar argumentos demagógicos para sensibilizar o leitor e se colocar como um mero mensageiro: “Eu não sou um médico especialista. Sou apenas um repórter - que teme por seus entes queridos, por seus vizinhos e por de pessoas de todos os lugares, tanto quanto por qualquer pessoa”.
Ele rasga elogios ao plano cirúrgico horizontal do Dr. Katz: “Uma das melhores ideias com que me deparei foi oferecida pelo Dr. David L. Katz, diretor fundador do Centro de Pesquisa em Prevenção de Yale-Griffin. E prossegue: “A abordagem de Katz é sóbria e esperançosa”.
Interessante dizer que não é médico, mas um reles repórter, e ter capacidade de avaliar o plano como “uma da melhores ideias com que me deparei” e, ainda, que a abordagem é “sóbria e esperançosa”
Embora deixe clara sua posição contrária ao isolamento completo em curso e seu apoio ao plano de volta rápida ao trabalho, ele ressalta a nobreza de sua atitude: “Eu as [as ideias] compartilho porque tenho certeza de que precisamos ampliar o debate - tenho certeza de que precisamos de menos mentalidade de rebanho e mais imunidade de rebanho - ao aceitarmos nossa escolha infernal.”
Opa, imunidade de rebanho era a solução do primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, que foi demovido rapidamente da ideia e testou positivo para coronavírus. Mas nosso jornalista sabe que precisamos de mais imunidade de rebanho, sem saber se quem é infectado e se recupera cria imunidade. Que primor!
O auge da demagogia
O pior está no final do texto: “Ou deixamos muitos de nós pegar o coronavírus, recuperar e voltar ao trabalho - enquanto fazemos todo o possível para proteger os mais vulneráveis de serem mortos por ele. Ou então, paramos por meses para tentar salvar todo mundo desse vírus - independentemente do seu perfil de risco - e matamos muitas pessoas por outros meios, matamos nossa economia e talvez matemos nosso futuro”.
“Matamos muitas pessoas por outros meios, matamos nossa economia e talvez matemos nosso futuro.” Um final canalha, de um texto canalha…
Puxa, quase que me esqueço que o título do artigo, em inglês, é “A Plan to Get America Back to Work”, de autoria jornalista é o Sr. Thomas L. Friedman e o jornal é The New York Tmes de 22 de março de 2020.
O título do texto assinado por Thomas L. Friedman, no NYT de 22 de março, estampa: “Um plano para levar a América de volta ao trabalho”. A linha fina diz: “Alguns especialistas dizem que isso pode ser feito em semanas, não meses - e a economia e a saúde pública estão em risco”.
O plano
O plano é basicamente deixar quase todo mundo voltar a levar vida normal, tratar os infectados como se trata para influenza e isolar aqueles mais vulneráveis. Diz o articulista “Uma abordagem cirúrgica vertical se concentraria em proteger e sequestrar aqueles entre nós com maior probabilidade de serem mortos ou sofrerem danos a longo prazo pela exposição à infecção por coronavírus - ou seja, idosos, pessoas com doenças crônicas e imunologicamente comprometidas - enquanto se trataria basicamente o resto da sociedade da maneira como sempre lidamos com ameaças conhecidas como a influenza”.
O título, o subtítulo e esse parágrafo nos levam a concluir que já existe um plano, que o plano é viável, que conhecemos bem o vírus e sua letalidade, que temos os meios necessários. A única dúvida é quanto ao número de semanas para se voltar ao business as usual.
O que falta responder
Pois bem, ao ler o artigo identificamos incertezas e desejos: “precisamos fornecer mais leitos hospitalares, equipamentos de tratamento para quem vai precisar e equipamentos de proteção, como máscaras N95, para médicos e enfermeiras que cuidam de pacientes infectados por vírus. Isso é urgente!”
Como o jornalista afirmou “precisamos de mais…”, fica evidente que não estão disponíveis leitos e equipamentos suficientes. Com quase todos voltando à vida normal, que é o plano proposto, é de se esperar que essas carências se agudizem. A reaproximação social fará com que os casos cresçam exponencialmente. Das poucos coisas que se sabe, uma é o altíssimo poder de contaminação do vírus. Só isso já balança a lógica do plano, mas tem mais.
A letalidade tampouco é conhecida: “Dr. John P.A. Ioannidis… apontou em um ensaio de 17 de março no statnews.com, que ainda não temos uma compreensão firme da taxa de mortalidade de coronavírus em toda a população. Uma análise de algumas das melhores evidências disponíveis atualmente indica que pode ser de 1% e até menor”.
O parágrafo seguinte começa com: "Se essa é a verdadeira taxa…" Ora, a leitura deveria ser interrompida aqui. Se a letalidade não é conhecida de que adianta conjecturar? Corrigindo. Claro que a conjectura tem sua utilidade: passar uma imagem impactante - para ajudar a convencer os leitores de que o plano é ótimo - de um elefante pulando de um penhasco: “trancar o mundo com consequências sociais e financeiras potencialmente tremendas pode ser totalmente irracional. É como um elefante sendo atacado por um gato doméstico. Frustrado e tentando evitar o gato, o elefante acidentalmente pula de um penhasco e morre'', complementa o Dr. Ioannidis.
Como é possível estimar a letalidade se até testes estão em falta? Outro entrevistado, Dr. David L. Katz, confirma que faltam testes, em outra conjectura: "Quando demitimos trabalhadores e faculdades fecham seus dormitórios e mandam todos os estudantes para casa", observou Katz, "jovens de status infeccioso indeterminado estão sendo enviados para casa para se reunir com suas famílias em todo o país. E como nos faltam testes generalizados, eles podem estar portando o vírus e transmitindo-o aos pais de 50 e poucos anos e aos avós de 70 ou 80 anos.''
Claro que ele quer concluir que seria melhor deixar os trabalhadores e os estudantes em plena convivência. Mas o importante aqui é perceber que ele sabe que faltam testes. O que temos até aqui? Um plano para que o convívio social volte à normalidade, mesmo sabendo que faltam leitos e equipamentos para cuidar daqueles com quadros mais graves, mesmo desconhecendo-se a taxa de de letalidade e mesmo sabendo que a falta de testes implica desconhecimento até do número de casos. Mas tem mais.
O Dr. Katz assume, igualmente, que não se sabe a razão de jovens morrerem: “É por isso que também devemos usar esse período de transição de duas semanas (ou mais, se for o que o CDC decidir) para estabelecer por meio da análise de dados os melhores critérios possíveis para diferenciar os especialmente vulneráveis dos demais. Por exemplo, algumas pessoas mais jovens foram mortas por coronavírus. Precisamos entender melhor o porquê. Katz diz que há pesquisas que sugerem que muitos deles também tiveram outras condições médicas crônicas graves, mas isso precisa de mais dados e análises. A determinação de quem exatamente tem em alto risco deve se basear nos dados mais atuais e devem ser rotineiramente atualizados pelas autoridades de saúde pública relevantes.”
Faltam dados e faltam análises, na opinião dele. Não se sabe a razão de jovens terem morrido. Não se sabe exatamente quem são os mais vulneráveis. Poderíamos encerrar o caso, mas tem mais.
Ainda não se tem certeza de que quem se recupera do vírus fica imune. Diz Katz: “também gostaríamos de confirmar cuidadosamente que, depois de se recuperar da Covid-19, você fica imune a obtê-la ou espalhá-la novamente por um período de tempo. A maioria dos especialistas acredita que isso seja verdade, disse Katz, mas houve alguns relatos de reinfecção, e o assunto não está resolvido.”
Correndo o risco de ser repetitivo, o que extraímos deste texto até aqui? Ele revela um plano para abolir o confinamento geral e restringir a distância social àqueles mais vulneráveis. Sabe-se que não há testes suficientes, assim, não se tem conhecimento com razoável precisão do número de casos, tampouco se tem segurança da taxa de letalidade. Sabe-se que não há leitos nem equipamentos suficientes para dar conta de um plano que certamente multiplicará os casos de infecção. Sabe-se que há casos fatais em jovens, mas desconhece-se a razão, o que implica impossibilidade de estabelecer com alguma segurança o grupo vulnerável. Não se sabe se aqueles que tiveram a infecção e se recuperaram tornaram-se imunes e deixam de transmitir o vírus.
A atitude do repórter frente ao que apurou
O jornalista não teme criticar a solução de distanciamento social, adotada até agora em inúmeros países. Não teme revelar sua própria avaliação e dizer que uma ideia é boa ou ruim. Não teme usar argumentos demagógicos para sensibilizar o leitor e se colocar como um mero mensageiro: “Eu não sou um médico especialista. Sou apenas um repórter - que teme por seus entes queridos, por seus vizinhos e por de pessoas de todos os lugares, tanto quanto por qualquer pessoa”.
Ele rasga elogios ao plano cirúrgico horizontal do Dr. Katz: “Uma das melhores ideias com que me deparei foi oferecida pelo Dr. David L. Katz, diretor fundador do Centro de Pesquisa em Prevenção de Yale-Griffin. E prossegue: “A abordagem de Katz é sóbria e esperançosa”.
Interessante dizer que não é médico, mas um reles repórter, e ter capacidade de avaliar o plano como “uma da melhores ideias com que me deparei” e, ainda, que a abordagem é “sóbria e esperançosa”
Embora deixe clara sua posição contrária ao isolamento completo em curso e seu apoio ao plano de volta rápida ao trabalho, ele ressalta a nobreza de sua atitude: “Eu as [as ideias] compartilho porque tenho certeza de que precisamos ampliar o debate - tenho certeza de que precisamos de menos mentalidade de rebanho e mais imunidade de rebanho - ao aceitarmos nossa escolha infernal.”
Opa, imunidade de rebanho era a solução do primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, que foi demovido rapidamente da ideia e testou positivo para coronavírus. Mas nosso jornalista sabe que precisamos de mais imunidade de rebanho, sem saber se quem é infectado e se recupera cria imunidade. Que primor!
O auge da demagogia
O pior está no final do texto: “Ou deixamos muitos de nós pegar o coronavírus, recuperar e voltar ao trabalho - enquanto fazemos todo o possível para proteger os mais vulneráveis de serem mortos por ele. Ou então, paramos por meses para tentar salvar todo mundo desse vírus - independentemente do seu perfil de risco - e matamos muitas pessoas por outros meios, matamos nossa economia e talvez matemos nosso futuro”.
“Matamos muitas pessoas por outros meios, matamos nossa economia e talvez matemos nosso futuro.” Um final canalha, de um texto canalha…
Puxa, quase que me esqueço que o título do artigo, em inglês, é “A Plan to Get America Back to Work”, de autoria jornalista é o Sr. Thomas L. Friedman e o jornal é The New York Tmes de 22 de março de 2020.
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