Vou me arriscar no campo pantanoso da política outra vez. Começo com a pergunta que está na cabeça de todos: Bolsonaro tem futuro? Questão crucial, pois quase equivale a perguntar: o Brasil tem futuro?
É inegável que a crise do coronavírus e, em especial, a incapacidade do governo de lidar com ela provocaram imenso desgaste. Bolsonaro está cada vez mais isolado. Há quem o considere um cadáver político ambulante, prestes a ser ejetado da Presidência.
Wishful thinking? Provavelmente, sim. As notícias de sua morte são prematuras. Impressiona a resiliência do apoio ao governo nas pesquisas recentes de opinião (cerca de 30% de bom ou ótimo). Isso depois da demissão de dois ministros populares e bem avaliados: Mandetta e, sobretudo, Moro.
Um quadrúpede de cinco patas
Mesmo assim, parece claro que a demissão de Moro foi um lance de alto risco, pois derrubou um dos pilares do esquema que levou Bolsonaro à Presidência: a aliança com o Lava Jatismo. A ameaça se vê reforçada pelo fato de Moro ter saído atirando, com pesadas denúncias ao presidente. As denúncias vão ser apuradas, como se sabe, e a apuração poderá enfraquecer Bolsonaro, Moro ou os dois.
Bolsonaro mostra-se, frequentemente, o pior inimigo de si mesmo. Empenha-se não raro em cavar a própria sepultura, atingindo inclusive pontos nevrálgicos do seu esquema de sustentação política. Além do Lava Jatismo, os pilares desse esquema são o bolsonarismo (inclusive milícias), o mercado, as forças armadas e a relação supostamente especial com Trump.
O governo começou como um quadrúpede de cinco patas, diria Nelson Rodrigues. Com a saída do marreco de Maringá, ficou reduzido às quatro patas regulamentares. Excetuado o bolsonarismo, que ainda apresenta certa solidez, as outras três parecem um pouco bambas.
Trump tem mais o que fazer; dá repetidas indicações de que está se lixando para o seu lacaio brasileiro. Com a crise internacional, o “America First” vem sendo levado ao paroxismo, reduzindo a pó qualquer expectativa de apoio mais sólido do lado americano.
Os militares, por sua vez, guardam um silêncio enigmático, mas devem estar preocupados com o desgaste que o envolvimento com este governo acarreta para as forças armadas. A saída constitucional, recorde-se, colocaria um general na presidência. Aqui Bolsonaro cometeu um erro que pode se revelar fatal: escolheu um vice-presidente que não assusta e tampouco se destaca pela lealdade. A julgar pela experiência, nada mais perigoso do que ter um vice tipo Temer, e não tipo José de Alencar.
A relação com o mercado também não prima pela solidez. Bolsonaro não é um quadro orgânico da turma da bufunfa, como foi por exemplo Fernando Henrique Cardoso. O acerto com o mercado passou pela nomeação de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto para os cargos-chave na área econômica. Mas o primeiro não tem mais o mesmo prestígio com o presidente. As recentes declarações de apoio a ele por parte do presidente são, como se diz no futebol, do tipo “o técnico está prestigiado”.
Ainda que todas essas fragilidades e incertezas, fato é que Bolsonaro continua na presidência, com os instrumentos de que o presidente dispõe no regime presidencialista. E preserva quase todos os seus pilares iniciais de sustentação política, ainda que avariados. Não se deve perder de vista, em particular, a já mencionada confiança de cerca de 1/3 do eleitorado, número que permanece suprendentemente elevado.
Lembranças da Segunda Guerra Mundial
Um paralelo com a Segunda Guerra me veio à mente. Comparações entre política e guerra ou entre política e futebol podem ser interessantes. Não passam evidentemente de analogias, não se prestam a explicações e muito menos previsões. Mas podem ajudar, pelo menos, a ilustrar alguns pontos.
Em 1942, quando os ingleses conseguiram expulsar as tropas do Marechal Rommel e retomar o Egito, Churchill colocou água na fervura das comemorações: “Este não é o fim, nem sequer o começo do fim, mas talvez seja o fim do começo”, disse ele. E, de fato, a queda de Hitler só viria em 1945.
Não poderíamos dizer o mesmo sobre Bolsonaro, ainda que o horizonte tenha que ser contado no seu caso em meses e não anos? Apesar do desgaste que vem sofrendo com a crise em março e abril, Bolsonaro não chegou a seu fim, nem sequer ao começo do fim, mas pode estar no fim do começo. Desnecessário frisar que daqui para frente muito dependerá da determinação com que seus adversários políticos, não só da esquerda e centro-esquerda, mas principalmente da direita tradicional, atacarão os seus pontos fracos ao longo dos próximos meses.
As idiossincrasias do presidente e a sua inclinação para lances ousados funcionaram até agora – mas ao preço de aumentar o número de seus opositores e inimigos, até mesmo na extrema direita. Guardadas as proporções e as diferenças de contexto, Bolsonaro não lembra Hitler em alguns aspectos? O líder da Alemanha nazista teve, no começo, carreira de grande sucesso, baseada em apostas arriscadíssimas, mas também em astúcias e manobras diversionistas. Sem dar um tiro, ele reincorporou a Renânia desmilitarizada desde a Primeira Guerra, depois anexou a Áustria, depois anexou os Sudetos, em seguida ocupou Praga e o que restava da Tchecoslováquia. A cada passo, ele fazia recuos retóricos, assegurava suas intenções pacíficas e prometia parar ali. Quando invadiu a Polônia, em 1939, desencadeou a guerra com a França e o Reino Unido, mas continuou sua trajetória ascendente, derrotando a os franceses com surpreendente facilidade e ocupando vários outros países europeus.
A trajetória do capitão brasileiro não mostra, em miniatura, alguma semelhança com a do cabo austríaco? Desde a campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro lançou-se em sucessivas manobras temerárias que deram certo, como as de Hitler inicialmente, mas que o deixaram cada vez mais isolado, com poucos aliados e inimigos poderosos, como ocorreu também com o líder nazista.
Até quando? A respeito de Hitler, Stalin fez a observação certeira: “É um gênio, mas não sabe quando parar”. Hitler deu o seu passo fatídico quando invadiu a União Soviética em 1941. Ao saber da notícia, Churchill fez o seguinte comentário (curioso pelo tempo do verbo): “So we won the war after all!” (Então, ganhamos a guerra, afinal!)
Bem. Bolsonaro não é nenhum gênio, longe disso, mas pode-se perguntar: quando fará a sua invasão da União Soviética? Quando solapará definitivamente, por excesso de auto confiança ou erros de cálculo, os pilares remanescentes da sua sustentação política? Lances ousados, que levem à perda de apoio dos militares ou do sistema financeiro, podem ser para ele o equivalente à invasão da União Soviética, especialmente se acompanhados de erosão do apoio na opinião pública.
Paulo Guedes parecia estar pela bola sete, mas Bolsonaro mostrou noção de timing e recuou. Não podia tirar Guedes logo depois de defenestrar Moro. Talvez seja questão de tempo. Uma alternativa seria substituí-lo por outro nome da confiança do mercado. Campos Neto, que já está no governo e parece mais flexível, talvez seja uma alternativa.
O radicalismo doutrinário do ministro da Economia é uma fonte de instabilidade. Outra, um possível conflito latente entre a ala militar e a equipe econômica. Difícil avaliar até que ponto os militares insistirão em planos de investimento em infraestrutura incompatíveis com a orientação da equipe econômica. Se o fizerem, poderão levar o chefe a mais uma manobra perigosa: a demissão do ministro da Economia, o que arriscaria abalar suas relações com a turma da bufunfa.
Uma questão de timing
Cabe então uma dupla paráfrase de Churchill: estamos no fim do começo, mas ainda não podemos dizer que ganhamos a guerra.
Não quero espalhar desalento, mas tudo é possível, inclusive a sobrevivência de Bolsonaro e até mesmo a sua reeleição em 2022. Que os seus adversários não cometam o mesmo erro que os de Lula cometeram na época do mensalão, em 2005 e 2006. Lula parecia liquidado e decidiu-se deixá-lo sangrar até o fim do primeiro mandato, na expectativa de que seria possível derrotá-lo nas eleições de 2006. Lula, como se sabe, deu a volta por cima e conquistou um segundo mandato.
Imagine, leitor, o seguinte cenário. Passada a pandemia, a economia começa a se recuperar, ainda que lentamente e com dificuldades, possivelmente no final deste ano ou no início do próximo (excluída a hipótese tenebrosa de uma segunda onda de contágio). As expectativas do brasileiro são sabidamente muito baixas. O alívio de ter superado a emergência de saúde pública abrirá espaço para que Bolsonaro, se ainda estiver no cargo, assuma ares de vencedor, reivindicando os louros do fim da pandemia e do início de recuperação econômica. Estaremos então a menos de dois anos da eleição presidencial – tempo de sobra para que ele possa se preparar para disputar a reeleição.
Eis o que eu queria dizer: o afastamento desse presidente danoso depende crucialmente de timing. Não se pode dar o bote cedo demais. Como disse Emerson, “when you strike at the king be sure that you kill him” (quando atacar o rei, tenha certeza de que irá matá-lo). Mas também não se pode demorar além da conta e perder a oportunidade para sempre.
Da escolha do momento certo depende o destino de Bolsonaro e, mais importante, do próprio Brasil.
* Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Acaba de lançar pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.
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* Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista Carta Capital, em 1 de maio de 2020.
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