terça-feira, 6 de abril de 2021

Bolsonaro e a questão militar

Por Jorge Gregory, no site Vermelho:


O mês de março encerrou com o Brasil assumindo definitivamente o papel de epicentro da pandemia. Com a disseminação do vírus absolutamente fora de controle, o país se transformou em celeiro de novas variantes e as restrições impostas aos brasileiros, em vários países, se tornam cada vez mais rígidas. Nações vizinhas começam a fechar fronteiras, colocando-nos em situação de total isolamento. O cientista Miguel Nicolelis avalia que estamos à beira de uma situação irreversível, onde a combinação de um colapso do sistema de saúde com um colapso funerário formará uma tempestade perfeita de cujos efeitos levaremos anos para nos recuperar.

A tragédia em que já se transformou a crise sanitária é de responsabilidade do governo Bolsonaro e, fundamentalmente, da caótica política de saúde conduzida por seu general capacho, Eduardo Pazuello, que militarizou o Ministério da Saúde. Isso necessariamente levou a uma associação entre desastre sanitário e Forças Armadas, cujo peso obviamente começou a incomodar parcela das três armas, o que, inegavelmente, tem sido um dos fatores que levaram os altos comandos a se distanciarem de Bolsonaro. A entrevista ao jornal Correio Brasiliense dada pelo general Paulo Sérgio Nogueira, às vésperas da mudança do ministro da Defesa, bem como a imposição do seu nome para o comando do Exército, soou como uma demarcação de campo com a política negacionista do governo.

Certamente a entrevista de Nogueira e o tratamento dispensado a Pazuello pesaram para que o genocida começasse a manifestar irritação com os comandantes e o ministro da Defesa. No entanto, o fator principal está no ensandecimento de Bolsonaro em decretar estado de sítio ou de emergência, obrigando os governadores e prefeitos a não mais imporem medidas restritivas de atividades ou, no mínimo, tentando intimidá-los com tais ameaças. Para tanto, precisava demonstrar que contava com o poder da força e manifestações favoráveis do braço armado eram fundamentais. Nem Azevedo e muito menos o general Edson Pujol (então comandante do Exército) se prestaram a este papel e a reforma ministerial foi a oportunidade para o Bolsonaro demonstrar sua insatisfação.

A intenção dos três comandantes, ocultada por Bolsonaro, de entregar seus cargos em desagravo à exoneração de Azevedo, demonstrou uma disposição dos militares de se afastar das insanidades daquele que se acha dono do Exército. Diante da situação de crise sanitária, econômica e social e principalmente do quadro que se avizinha, segundo Nicolelis, todo e qualquer fato que aprofunde o isolamento de Bolsonaro é fundamental. No entanto, devemos nos perguntar, os militares estariam dispostos a jogar a criança fora junto com a água do banho?

Há muita gente fazendo coro à versão de o general Villas Boas (ex-comandante do Exército), de que o envolvimento dos militares com os acontecimentos políticos, de 2013 para cá, decorrem de um sentimento de revanchismo às avessas, em resposta ao revanchismo da Comissão da Verdade. Podemos até admitir que a instalação de tal Comissão foi inapropriada naquele momento, mas a versão do revanchismo às avessas é de um simplismo absolutamente inaceitável. Também há aqueles que se iludem com as ideias de projeto, sentido de desenvolvimento e coesão nacional expressos pelo ex-comandante do Exército.

Ao interpretar a história das Forças Armadas brasileiras e enaltecer figuras que de fato expressavam um pensamento transformador e progressista em suas fileiras, alguns se esquecem que o golpe de 1964 estabeleceu um divisor de águas na corporação. Se houve interesse das elites em depor o governo progressista de João Goulart e incitar os militares ao golpe, estes, por sua vez, justificaram tal ação como uma reação à entrada no país de pensamentos estranhos à história, cultura e tradição brasileiras, em decorrência da guerra fria. Ou seja, utilizou-se da tese da guerra fria para negar as contradições da sociedade brasileira e tentar impor aos seus opositores um pensamento único, totalitário e de extrema violência. Pensamentos únicos não admitem divergências de ideias.

Se, enquanto projeto de poder e imposição do pensamento único à sociedade, os militares tiveram que recuar no final da década de 70, início de 80, nas academias militares obtiveram pleno sucesso. Impôs-se a doutrina de que qualquer pensamento que não reze pela teoria da segurança nacional formulada nos anos de chumbo é estranha aos interesses nacionais e deve ser extirpada. Recolhidos à caserna, permaneceram ruminando tais teorias, ajustando-as aos novos cenários, mas mantendo a sua essência. Aqui é fundamental que se entenda que tal teoria levou as estruturas militares a se tornarem impermeáveis a qualquer pensamento discordante. Militares como Nelson Werneck Sodré, entre outros, jamais voltariam a se criar na corporação, pois, segundo reza a doutrina vigente, representam pensamentos estranhos à sociedade brasileira.

Os generais de pijama que ocupam cargos no governo Bolsonaro e aqueles que compõem os altos comandos das Forças Armadas atualmente são os últimos remanescentes do período da ditadura. Passaram pelas academias militares entre a segunda metade dos anos 1970 e primeira metade dos anos 1980. Mais que um revanchismo às avessas, aproveitaram-se das crises ocorridas a partir de 2013 para colocar as unhas de fora, pois seria a última oportunidade de tentar ressuscitar a “Redentora”. Até então, somente figuras toscas levantavam suas vozes em defesa do regime militar. A partir de 2013, começaram a vir a público generais da ativa como Heleno e Mourão, escancarando o pensamento que dominava a caserna. A Comissão da Verdade é hoje tão somente uma justificativa e não a verdadeira razão do envolvimento político dos generais.

O argumento central de Villas Boas, e é importante entendermos que ele não fala por si próprio e sim expressa o pensamento do alto oficialato, é de que a partir dos anos 1980 abandonamos o sentido de desenvolvimento e perdemos a coesão interna. Em nenhum momento, no entanto, coloca o neoliberalismo e a hegemonia da elite rentista como causa das dificuldades que o país enfrentou nestas últimas décadas. Talvez pelo fato de estas mesmas elites entreguistas terem sido as principais promotoras do golpe de 1964. Com a queda do bloco soviético e o fim da guerra fria, o argumento da ameaça comunista se esvaziou, mas, na inexistência de guerras, tais teorias precisam de inimigos externos, ainda que fantasiosos, para gerar o temor interno. Elegeram então como graves ameaças externas atuais, que colocariam em risco a integridade nacional, o que Villas Boas chama do “politicamente correto”, como o ambientalismo, o antirracismo, o feminismo, entre outros movimentos que apresentam grande envolvimento das esquerdas. São colocados como pensamentos exógenos, que devem ser extirpados da sociedade brasileira.

Perdessem a oportunidade aberta com as crises a partir de 2013, corriam o risco de as novas gerações, que não vivenciaram o regime, irem gradualmente abandonando a doutrina que tanto defendem. Não só agiram intensamente nos movimentos de impeachment como entraram de cabeça na campanha e governo de Bolsonaro. Querem não só reescrever a história inscrevendo o golpe de 1964 como um “movimento” que “preservou a democracia” e que deve ser “celebrado”. Não é a reação ao suposto revanchismo da Comissão da Verdade que os movimenta, mas sim o espírito autoritário e reacionário gestado nos anos de chumbo.

Os militares querem ganhar a sociedade para esse pensamento para se reinstalarem no poder. Divergências com Bolsonaro devido a suas ações tresloucadas podem até gerar um distanciamento da corporação, o que é positivo, pois isola ainda mais o genocida. Porém, não acredito que pretendam jogar fora a criança junto com a água do banho. Talvez não haja clima para um novo golpe aos moldes de 1964, mas Forças Armadas que se orientam por uma doutrina totalitarista serão sempre uma ameaça à democracia. A defesa da democracia exige uma luta sem tréguas, no campo das ideias, a estas concepções totalitárias.

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