De repente, todos podem ser bons, doar alimentos, contribuir com ONGs, distribuir cestas básicas, matar a fome dos pobres. O país com uma das mais injustas distribuições de renda do mundo se transforma na nação dos sentimentos caridosos. No mesmo território em que a entrega de alimentos apazigua o sentimento de culpa, jovens são culpados pelo CEP, pela falta de oportunidades e pela cor da pele, e exterminados em operações policiais.
Quem escapa da covid-19 é atingido à bala ou pela desnutrição. A fome não é uma triste consequência da pandemia e da quebradeira econômica, mas um projeto do governo federal.
É claro que é preciso se mobilizar para matar a fome dos brasileiros, que toda a movimentação e engajamento das pessoas e associações merecem reconhecimento, que garantir comida na mesa hoje para quem tem fome é uma obrigação moral inadiável. No entanto, é preciso entender sempre que se trata de uma ação que corre contra uma estrutura muito maior, que fundamenta a desigualdade brasileira e que vinha sendo enfrentada nos últimos anos.
Desde o governo golpista de Temer e, radicalmente, sob Bolsonaro, a insegurança alimentar e a destruição da rede de proteção social definem o descompromisso no setor.
A volta das campanhas por cestas básicas e outros projetos compensatórios é um sinal do retrocesso das políticas implantadas pelos governos de Lula e Dilma, numa construção de 13 anos, e que retoma para o país a triste posição cativa por décadas no Mapa da Fome, do qual o Brasil havia saído em 2014.
Há uma diferença profunda entre as campanhas contra a fome de Betinho e as que hoje mobilizam o país em tempos de pandemia. No primeiro momento, a fome era um sinal de todos os equívocos que mantinham o país no rumo da desigualdade. Mesmo assim, o combate à fome era urgente e não podia ser negociável no tempo. Quem tem fome tem pressa.
A sensibilidade de Betinho, naquele momento, foi entender que era preciso inverter a lógica habitual: em vez de esperar mudanças estruturais para com isso vencer o flagelo da fome, era preciso garantir a vida, para permitir que as pessoas então se organizassem para transformar as circunstâncias. Quando Lula assumiu a presidência da República pela primeira vez, o projeto Fome Zero parecia ecoar essa mesma percepção. Era ao mesmo tempo uma constatação da realidade e um símbolo. Fome de pão e de justiça.
Partindo da mais material das carências – a fome – o combate às desigualdades e à pobreza foi incorporando ações decisivas em vários campos, do emprego à valorização do salário mínimo, passando pela expansão dos direitos e construção da rede de proteção social e das políticas de distribuição de renda. Tudo começa a vir abaixo com o golpe de 2014 e se intensifica no governo Bolsonaro, agravado agora pela pandemia e pela incompetência na gestão da política econômica.
A volta ao Mapa da Fome não é sinal de fracasso, mas constatação do rumo definido pelo governo.
Pandemia aprofundou o caminho da fome
Em entrevista recente, o ministro Paulo Guedes exibiu seu habitual casamento de ignorância com maldade. Para ele, se a pandemia seguir em frente será necessário voltar a falar em auxílio emergencial, cada vez mais reduzido, é claro; quando a situação melhorar (algo para o qual o governo não tem feito nada) é só regredir ao estágio basal do Bolsa Família.
Nos dois casos, trata-se de dar esmola aos necessitados, na tradição da culpa religiosa que parece formar a consciência das elites nacionais. O papel do Ministério da Economia é servir ao mercado. Em tempos de exceção, tamponar a miséria com o mínimo de gasto e o pelo menor tempo possível. Para isso, além de cruel e equivocado, é preciso desfazer o que foi feito, mesmo que os resultados tenham sido reconhecidos em todo o mundo.
É só ir aos números: em matéria de fome estamos, hoje, piores do que em 2003. De acordo com os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, de dezembro do ano passado, 116 milhões de pessoas estavam em insegurança alimentar, o que é mais da metade dos brasileiros. Deste contingente, 19 milhões passavam fome. O fato de a pesquisa ter como base a pandemia não significa que a volta da fome seja consequência da covid-19, uma vez que os números vinham crescendo desde Temer.
A pandemia não trouxe a fome de volta, mas aprofundou o caminho que vinha sendo seguido.
São ações que se somam: extinção do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, com a consequente desarticulação das políticas do setor, numa das primeiras ações do governo Bolsonaro; não convocação da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que deveria ter sido realizada em 2019; retirada de direitos trabalhistas e precarização das relações de trabalho e da qualidade dos empregos, com impacto direto na renda das famílias.
E continua com ataques seguidos ao Bolsa Família e seus beneficiários; fim da política da valorização do salário mínimo; interrupção do auxílio emergencial sem alteração do quadro de desemprego e precarização do trabalho. Como se vê, há uma sombra perversa e uma lógica excludente na base do retorno do país ao Mapa da Fome.
Comida na mesa de todos é um lado de nossa urgência. O outro é a indignação. Nosso prato deve ser feito de solidariedade e luta. Com sabor de fraternidade, no primeiro caso. Mas, se possível, com o tempero da revolta.
Quem escapa da covid-19 é atingido à bala ou pela desnutrição. A fome não é uma triste consequência da pandemia e da quebradeira econômica, mas um projeto do governo federal.
É claro que é preciso se mobilizar para matar a fome dos brasileiros, que toda a movimentação e engajamento das pessoas e associações merecem reconhecimento, que garantir comida na mesa hoje para quem tem fome é uma obrigação moral inadiável. No entanto, é preciso entender sempre que se trata de uma ação que corre contra uma estrutura muito maior, que fundamenta a desigualdade brasileira e que vinha sendo enfrentada nos últimos anos.
Desde o governo golpista de Temer e, radicalmente, sob Bolsonaro, a insegurança alimentar e a destruição da rede de proteção social definem o descompromisso no setor.
A volta das campanhas por cestas básicas e outros projetos compensatórios é um sinal do retrocesso das políticas implantadas pelos governos de Lula e Dilma, numa construção de 13 anos, e que retoma para o país a triste posição cativa por décadas no Mapa da Fome, do qual o Brasil havia saído em 2014.
Há uma diferença profunda entre as campanhas contra a fome de Betinho e as que hoje mobilizam o país em tempos de pandemia. No primeiro momento, a fome era um sinal de todos os equívocos que mantinham o país no rumo da desigualdade. Mesmo assim, o combate à fome era urgente e não podia ser negociável no tempo. Quem tem fome tem pressa.
A sensibilidade de Betinho, naquele momento, foi entender que era preciso inverter a lógica habitual: em vez de esperar mudanças estruturais para com isso vencer o flagelo da fome, era preciso garantir a vida, para permitir que as pessoas então se organizassem para transformar as circunstâncias. Quando Lula assumiu a presidência da República pela primeira vez, o projeto Fome Zero parecia ecoar essa mesma percepção. Era ao mesmo tempo uma constatação da realidade e um símbolo. Fome de pão e de justiça.
Partindo da mais material das carências – a fome – o combate às desigualdades e à pobreza foi incorporando ações decisivas em vários campos, do emprego à valorização do salário mínimo, passando pela expansão dos direitos e construção da rede de proteção social e das políticas de distribuição de renda. Tudo começa a vir abaixo com o golpe de 2014 e se intensifica no governo Bolsonaro, agravado agora pela pandemia e pela incompetência na gestão da política econômica.
A volta ao Mapa da Fome não é sinal de fracasso, mas constatação do rumo definido pelo governo.
Pandemia aprofundou o caminho da fome
Em entrevista recente, o ministro Paulo Guedes exibiu seu habitual casamento de ignorância com maldade. Para ele, se a pandemia seguir em frente será necessário voltar a falar em auxílio emergencial, cada vez mais reduzido, é claro; quando a situação melhorar (algo para o qual o governo não tem feito nada) é só regredir ao estágio basal do Bolsa Família.
Nos dois casos, trata-se de dar esmola aos necessitados, na tradição da culpa religiosa que parece formar a consciência das elites nacionais. O papel do Ministério da Economia é servir ao mercado. Em tempos de exceção, tamponar a miséria com o mínimo de gasto e o pelo menor tempo possível. Para isso, além de cruel e equivocado, é preciso desfazer o que foi feito, mesmo que os resultados tenham sido reconhecidos em todo o mundo.
É só ir aos números: em matéria de fome estamos, hoje, piores do que em 2003. De acordo com os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, de dezembro do ano passado, 116 milhões de pessoas estavam em insegurança alimentar, o que é mais da metade dos brasileiros. Deste contingente, 19 milhões passavam fome. O fato de a pesquisa ter como base a pandemia não significa que a volta da fome seja consequência da covid-19, uma vez que os números vinham crescendo desde Temer.
A pandemia não trouxe a fome de volta, mas aprofundou o caminho que vinha sendo seguido.
São ações que se somam: extinção do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, com a consequente desarticulação das políticas do setor, numa das primeiras ações do governo Bolsonaro; não convocação da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que deveria ter sido realizada em 2019; retirada de direitos trabalhistas e precarização das relações de trabalho e da qualidade dos empregos, com impacto direto na renda das famílias.
E continua com ataques seguidos ao Bolsa Família e seus beneficiários; fim da política da valorização do salário mínimo; interrupção do auxílio emergencial sem alteração do quadro de desemprego e precarização do trabalho. Como se vê, há uma sombra perversa e uma lógica excludente na base do retorno do país ao Mapa da Fome.
Comida na mesa de todos é um lado de nossa urgência. O outro é a indignação. Nosso prato deve ser feito de solidariedade e luta. Com sabor de fraternidade, no primeiro caso. Mas, se possível, com o tempero da revolta.
0 comentários:
Postar um comentário