Gabriel Boric/Reprodução do Facebook |
“Não havia porque gastar tempo e recursos com prisioneiros inflexíveis, como que feitos de estanho, nem com aqueles que já tinham dado o que tinham para dar, os que enlouqueceram, os que viraram zumbis”. É um texto de Chico Buarque, do seu conto “Anos de Chumbo”, no livro do mesmo nome (Cia. das Letras, 2021, 168 pgs.) – ficção ao mesmo tempo irônica e dramática – e por todas as suas qualidades um livro de plena consagração desse escritor e cidadão do nosso país sofrido. “A banda” e “Sinal Fechado”, poesia da infância e fragmentação de um mundo de solidão e violência, estão presentes em cada uma das suas páginas.
O pensamento maldito dos torturadores que cumprem as sua tarefas mortais e a visão “liberal-rentista” do mundo fluem na parábola do conto de Chico: não há que perder tempo com os mortos, com os zumbis da fome e os marginalizados do mundo, que não devem travar a urgência da ciculação. A acumulação não permite as “filigranas” da democracia política, que exige paciência e uma certa lentidão, para que os passageiros do mundo andem juntos. Pinochet, Bolsonaro, Macri e seus chicago-boys, porém, parecem dizer: “recolham os cadáveres da fome e dos calabouços que o carro da história vai chegando veloz no mercado perfeito”. Esta é a nossa urgência absoluta.
Uma imagem de Ezra Pound, que poderia retratar um campo de concentração (no seu poema “Cathay”) neste momento, lembra o estado da América Latina, frutificado nas ditaduras dos anos 70 e consolidado pelos neoliberais do Consenso de Washington. Eles se vingaram da democracia paciente, que vinha melhorando a vida do povo, como no Brasil, Uruguai, Argentina: “Não se sustenta um muro em pé sobre a aldeia\ Ossos branquíssimos imersos na geada\ Grandes montes cobertos de árvores e erva\ Quem provocou estes despojos? Quem incendiou a flamejante cólera imperial?\ Quem trouxe este exército com tambores e címbalos?\ Reis bárbaros.” Depois da devastação, interrompida, a paciência monástica dos sacrificados, eis que irrompe o Chile.
Os movimentos unitários de Lula propondo a convergência no campo democrático; a vitória espetacular de Boric no Chile, apoiado em grupos políticos desvinculados do polo dos partidos tradicionais; e o desespero necrófilo de Bolsonaro – agora com a sua política de expor diretamente as crianças do país à morte – mais uma vez “naturalizada” no nível institucional – são três pontos de um triângulo enigmático. Eles terão fortes reflexos nos próximos vinte anos na América Latina, pois os fundamentos nos quais se “seguram” as análises tradicionais da esquerda foram abalados.
A mudança da hegemonia nos grupos e classes que defendem a democracia liberal pode ocorrer, a “nova esquerda” (Chile) vai ter que aprender rapidamente a governar e a necrofilia bolsonarista é bem mais forte do que a capacidade de reação das instituições. A extrema direita cresce no mundo. Devemos nos lembrar que o capital, hoje, se escora no dinheiro virtual, não tem mais intelectuais como Berlin e Raymond Aron, mas técnicos da acumulação sem trabalho dominando o mundo nas agência de risco, apertando “botões” através dos quais drones insípidos fazem “guerras limpas”, suavizadas pela engenharia virtual das opiniões logarítmicas.
Penso que os nossos governos atuais e futuros devem tomar, rapidamente, medidas radicais para responder à fome, bloquear a criminalidade, defender o ambiente e abrir caminhos para o conhecimento e a cultura destinados à juventude; combater a visão e as práticas racistas e afirmar fortemente as lutas das mulheres. Para enfrentar o que vem da direita e do fascismo, depois da vitória de Boric e da provável vitória do Lula, temos que ter em mente que a direita – veja Guedes – pode ser incompetente e raivosa e a as classes privilegiadas podem esperar, mas a ampla maioridade da sociedade que nos elege, exige competência e rapidez para as suas urgências da sobrevivência. E às vezes não sabe, ou não pode esperar.
As experiências-limite do Governo Bolsonaro nos obrigam a ter uma visão mais pessimista da História, mormente quando novamente iniciamos uma ofensiva para bloquear o fascismo e pautar mais igualdade e mais justiça. Devemos estar conscientes que o fascismo e o ultraliberalismo, não só podem matar, como sabotam todos os que reabrem – ainda que timidamente – as utopias da paz e da igualdade. Os fascistas e ultraliberais alinhados suprimem os tempos de espera pelo esmagamento violento das ansiedades e pelos assassinatos em massa quando necessário. E não sofrem com isso.
A tragédia de Bolsonaro deve nos tornar mais duros e mais conscientes, sabedores que a nova face do empresariado brasileiro, a que conta na política e nos princípios da decência pública – para eles – é mais o “Véio da Havan” e menos o Ermírio de Moraes. E os seus “intelectuais” podem pender mais para os Weintraub do que para os Celso Lafer. Lado bom: estes, os depreciados pelo fascismo, só podem se revigorar lutando ao nosso lado contra o fascismo. Lado mau: podem cair na velha cantilena da “escolha difícil”, que levou o fascismo ao poder, como ocorreu na Alemanha depois de Weimar. Temos um tempo curto à nossa espera, preparemos respostas que unam e espalhem solidariedade e confiança, em todos os poros da sociedade ultrajada.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
0 comentários:
Postar um comentário