Ilustração: Crisvector |
Há um detalhe, e que detalhe, que passa quase encoberto nas abordagens sobre o assassinato do congolês Moïse Kabagambe no Rio. É o detalhe político que merece ser posto ao lado da questão do racismo.
O detalhe começa pelo fato de que todos ali são parte do que já se chamou de a ralé brasileira. Começando pela vítima, que é na verdade um brasileiro desde os 14 anos. São 10 anos de Brasil. Ele não veio sozinho, veio com a família.
As imagens do espancamento mostram que não há personagens de uma elite clássica como algoz nesse episódio. Não há ali ninguém da elite branca. Isso está claro no vídeo, não precisa ir buscar detalhes no histórico de cada um.
Nenhum deles poderia ser definido como o capitão do mato que conhecemos. Os assassinos são o que a gíria brasileira definiria como chinelões.
O foco no racismo estrutural nos conduz de imediato para o consolo de que já temos uma explicação. O rapaz teria sido morto porque é negro. E pobre, negro ou branco, também mata pobre.
A grande maioria dos assassinados no Brasil é de negros. A polícia caça e mata mais de 6 mil pessoas por ano. Quase todos negros.
As vítimas de conflitos pelo tráfico e por controles de áreas de milícias, inclusive fora do Rio, são em maioria negros. O rapaz era um negro congolês que desejava ser visto como brasileiro.
Há uma sutileza cruel nesse caso, que só os especialistas em violência urbana poderão tentar decifrar. Há, por parte da ralé que matou Moïse, uma imposição de superioridade e de arbitrariedade autorizadas.
Os assassinos julgam e matam o rapaz porque estão acima dele, como acusadores e juízes. Por quê? Podem dizer que sempre foi assim, mas talvez não como agora.
O brasileiro médio, e não só os que se transformam em cães selvagens, está habilitado pelo governo, por suas autoridades e pelo presidente a agir com violência.
O dono do quiosque é um policial militar. Os leões de chácara que tentam defender os interesses do quiosque agem como se tivessem poder de polícia ou a mando de uma polícia violenta. Eles se consideram soldados do patrão.
Não há nesse caso todo nenhum branco rico ou da elite da classe média branca que nos ajude a explicar o racismo estrutural como consequência do poder econômico, social e político dessa elite. Dois dos envolvidos podem ser considerados negros.
O argumento para a identificação de racismo no massacre de Moïse é oferecido por personagens que não compõem o retrato clássico do racista. Esse é o nosso desconforto.
Assim como nos deixa abatidos a evidência de que o fortalecimento das organizações neonazistas não nos traz apenas caricaturas de branquelas hitleristas.
Já foi mostrado inúmeras vezes, inclusive domingo no Fantástico, o rosto de um dos mais ferozes militantes nazistas do Rio grande do Sul. É um negro.
Enfatizar essa constatação não é desviar o debate sobre racismo e xenofobia dos seus protagonistas clássicos e de como eles exercem a dominação. É tentar compreender os tentáculos e o alcance da violência em tempos bolsonaristas.
A polícia levou três dias para notificar o dono do quiosque. Porque o dono do bar é policial militar. O dono do quiosque ao lado também é policial.
Há racistas negros dentro do governo, mas há mais do que racistas, há uma relação desse poder com os milicianos. É da natureza desse governo e da família no poder.
A explicação para a morte de Moïse terá de passar pela essência política desse ambiente institucionalizado como preconceituoso, racista, xenófobo, miliciano, violento e fascista.
Não há como escamotear esses detalhes. Moïse foi morto por gente com índole racista, mesmo que todos fossem quase iguais a ele. Mas é bem mais do que isso.
Não importa se formalmente os criminosos não são milicianos. Importa que o congolês foi morto por figurantes inspirados e autorizados pela retórica, pela ação e pela estrutura oficialmente instalada no poder central.
O detalhe que não pode ser encoberto é este. Eles agem sumariamente porque se sentem habilitados não só pelo poder do patrão policial, mas por um poder político maior. O bolsonarismo matou Moïse Kabagambe.
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