Foto: Ricardo Stuckert |
Que o discurso de Lula na ONU foi irretocável, preciso e corajoso, todo mundo já disse, inclusive na mídia que vem ensaiando a retomada da implicância.
Com a fala que tocou em todos os problemas do mundo, aplaudida cinco vezes por um plenário cheio, Lula concluiu o processo de restauração do respeito da comunidade internacional pelo Brasil, pelo qual vem trabalhando em sua intensa diplomacia presidencial desde a posse.
E com ela, também, estabeleceu-se como voz autorizada do Sul Global no esforço para reformar práticas e estruturas.
Do que Lula pregou na ONU, o que pode ter consequências que gerem mudanças no mundo?
Não haverá o milagre da grande transformação que ele cobra mas algumas propostas parecem estar encontrando o tempo certo, como é o caso da ampliação do Conselho de Segurança da organização. Voltarei a isso.
Lula falo de tudo o que importa, não fugindo em qualquer momento, por descuido ou impulso, da linha que define sua política externa: novamente ativa e altiva, independente, pragmaticamente pluralista. Em alguns momentos recentes surgiram pontos fora da curva, como as críticas desnecessárias ao Tribunal Penal Internacional, mas são pontos acidentais, não essenciais.
Criticou a “resignação” dos ricos antes a desigualdade, a pobreza e a fome, e a omissão e hipocrisia diante da emergência climática, na medida em que não assumem compromissos efetivos, especialmente os financeiros, em favor das ações que podem mitigar a resposta do planeta às agressões do homem.
Criticou a debilitação da ONU, a desmoralização de seu Conselho de Segurança restrito a cinco membros que violam, eles mesmos, a Carta-base do organismo. O protecionismo avança diante de uma OMC inerte e o FMI é descaradamente alinhado aos ricos na fixação de seus créditos.
Na presença de Biden, que falou logo depois, criticou o embargo comercial imposto a Cuba, injustamente incluída na lista de países terroristas, e a prisão de Julian Assange, ao defender a liberdade de imprensa.
Rendeu homenagens à democracia brasileira que resistiu e o levou de novo àquela tribuna, sem referir-se diretamente ao antecessor de triste lembrança.
Dos escombros do neoliberalismo, afirmou, surge a extrema direita e os postulantes da tirania.
Lembrou as minorias, as mulheres, as pessoas com deficiências, e foi comedido ao elencar medidas de seu próprio governo, ambientais ou sociais.
Os encontros de hoje com Biden e Zelenski completarão a passagem por Nova York, calando, aqui no Brasil (pelo menos momentaneamente), críticos que o acusam de servidão à China e à Rússia.
Falou da guerra na Ucrânia apontando apenas a incapacidade dos governantes e dos organismos multilaterais em preservar a paz, razão maior da criação da ONU depois da II Guerra. E citando outros conflitos aos quais o mundo não dá bola.
O encontro com Zelenski não deve passar de um gesto mas a conversa com Biden pode render frutos. Houve convergências em alguns pontos nos discursos dos dois.
Ambos enfatizaram a questão climática e defenderam a reforma do Conselho de Segurança da ONU. Lançarão hoje iniciativa conjunta contra o trabalho precário e devem explorar possibilidades de cooperação na questão energética e ambiental.
Mas, voltando à pergunta lá de cima, de tudo o que Lula defendeu, um ponto que tem boas chances de prosperar é a ampliação do Conselho de Segurança.
Quem ouviu o discurso do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, que falou antes do presidente brasileiro, notou a referência dele à Cùpula do Milênio, da qual se fala quase nada no Brasil. Ela está em franca preparação nos bastidores da ONU.
Guterres quer encerrar seu mandato com uma assembleia geral, no ano que vem, que aprove mudanças importantes na Organização. Ela será a Cúpula do Futuro. Preparando seu legado, Guterres tem como um dos objetivos da cúpula a ampliação do número de membros permanentes do Conselho de Segurança.
Hoje eles são cinco e será preciso que todos concordem. Biden já aderiu. A China e a Rússia não poderão ser contra. Resta saber o que fariam França e Reino Unido, cujos governantes não foram agora a Nova York.
Essa é uma ideia que, embora debatida há décadas, pode estar encontrando seu momento de tornar-se realidade.
A Cúpula do Futuro trataria de outras reformas da ONU e tentaria por fim a sanções unilaterais impostas por países membros, como é o caso do embargo americano a Cuba.
Será preciso criar mecanismos para garantir o cumprimento de objetivos fixados pela organização, como os 17 ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), a serem cumpridos entre 2020 e 2030. A tal agenda 20-30.
Lula lembrou ontem que faltam apenas sete anos e a maioria dos países está longe de cumpri-los. Mas hoje não há punição prevista para quem descumpre estes compromissos.
A ONU não dará jeito da guerra da Ucrânia. Numa reunião paralela agora em Nova York, países do G-7 avaliaram que poderá durar ainda alguns anos. A ON não acabará com desigualdade mas poderá avançar na agenda climática e em sua própria reforma.
O alinhamento de Lula com os planos de Guterres favorece a colheita de algumas das ideias que ele defendeu ontem na tribuna. Ontem, por sinal, os dos tiveram mais um encontro antes de discursarem. Já tiveram outro em maio, durante a reunião do G-7.
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