quinta-feira, 27 de maio de 2010
A Conclat e os desafios do sindicalismo (1)
Na próxima terça-feira, 1º de junho, mais de 30 mil sindicalistas de todo país estarão reunidos na Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat), no Estádio do Pacaembu (SP), para aprovar uma plataforma com vistas à sucessão presidencial. Numa modesta contribuição ao debate, publico quatro artigos analisando a conjuntura internacional e nacional e os desafios do sindicalismo na atualidade:
I- O fantasma da crise internacional
Os trabalhadores do mundo inteiro acompanharam, tensos e temerosos, a crise que se abateu sobre a economia capitalista desde a falência do banco Lehman Brothers em setembro de 2008. Afinal, em todas as recessões econômicas, sejam nas mais suaves ou nas mais profundas, os que vivem do salário são sempre as principais vítimas, com a explosão do desemprego, o arrocho dos salários e a precarização do trabalho. No caso desta crise, ela teve um agravante. Ela começou no coração do sistema capitalista, nos EUA – e não na sua periferia.
Detonada a partir do estouro da bolha especulativa no setor imobiliário, o chamado subprime, ela logo atingiu o setor financeiro, levando à falência centenas de bancos. Na sequência, indústria e comércio sentiram seu impacto, cuja concordata da ex-poderosa GM foi o caso mais emblemático. Diferente das crises cíclicas anteriores, esta foi e ainda é uma crise estrutural e sistêmica, cujos efeitos deverão ser mais prolongados e destrutivos.
16 milhões sumariamente demitidos
No rastro devastador da crise, que logo contaminou as economias “avançadas” da Europa e do Japão, cerca de 16 milhões de trabalhadores foram sumariamente demitidos; inúmeros sindicatos assinaram acordos de redução salarial; vários governos reduziram investimentos nas áreas sociais e impuseram leis de flexibilização trabalhista. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que apenas nas 20 maiores economias do planeta o desemprego ceifou 6 milhões de empregos na indústria, 3 milhões na construção civil e 2,3 milhões no comércio.
Culpados pela crise, os capitalistas novamente jogaram o seu ônus nas costas dos assalariados. Numa prova de cinismo, também rasgaram os dogmas neoliberais, que pregavam o desmonte do Estado, da nação e do trabalho e que foram os maiores culpados pela eclosão da crise. O poder público, antes satanizado e reduzido a “estado mínimo”, foi acionado para salvar os avarentos capitalistas. Os governos de George Bush e Barack Obama saquearam do cofre público mais de 1,5 trilhão de dólares para socorrer bancos, indústrias e comércio. Para os ricaços, tudo e com urgência; para os trabalhadores, o brutal ônus da crise – como sempre ocorreu no sistema de exploração capitalista.
Novos repiques da crise mundial
A grave retração mundial confirmou que o capitalismo é um sistema de crises periódicas. Elas fazem parte da sua dinâmica, com todas suas chagas sociais. Mas também revelou que o sistema não cai de maduro. Ele desenvolveu mecanismos para se safar da completa falência. No auge da crise, em meados do ano passado, muitos analistas previram uma profunda reforma do sistema, com formas de controle de agiotagem financeira e de maior justiça social. Mas isto não ocorreu.
O capitalismo mantém sua dinâmica de exploração do trabalho, de concentração das riquezas nas mãos de uma minoria e de especulação rentista. A crise não foi terminal, como muitos previam. Mas também ainda não foi superada, como os apologistas do capital bravateiam. Nas potências capitalistas, ela continua gerando instabilidade política e insegurança para os trabalhadores. Na maior parte da periferia do sistema, os efeitos da brutal recessão ainda são sentidos, inclusive nos países da América Latina mais dependentes do mercado externo. Os sinais de novos repiques da crise mundial ainda assombram os povos, como um fantasma que ronda o mundo capitalista.
Socorro às poderosas corporações
Nos EUA, epicentro da crise, o desemprego alcançou o recorde histórico de 10% em 2009 – o dobro de 2008. O déficit público, decorrente do salvamento aos poderosos, já engoliu US$ 12,36 trilhões do erário e o Orçamento para 2011 prevê cortes de US$ 1,6 trilhão nos gastos sociais – o que agravará o drama de milhões de miseráveis deste país símbolo do capitalismo. O socorro até agora dispensado às poderosas corporações ainda não surtiu efeito.
Em abril último, a comissão de valores mobiliários dos EUA (SEC) acusou os 19 maiores bancos do país de usarem artifícios contábeis para desviar fortunas dos cofres públicos. Já a auditoria federal teme pela capacidade de sobrevivência da GM, apesar dos US$ 13,4 bilhões que garfou da União, revela o jornal Valor (20/4/10). Na Europa, a situação é ainda mais dramática. A Grécia faliu e outros primos pobres da região, como Portugal e Espanha, caminham para o mesmo desfiladeiro. Para o Banco Central Europeu, há forte risco de “novas turbulências econômicas”, alerta o jornal O Estado de S.Paulo (16/4/10). “Nós podemos já ter entrado na próxima fase da crise”, afirma Jürgen Stark, executivo do BCE. Algumas economias inclusive já ameaçam abandonar a moeda única da região, o Euro.
Desenvolvimento desigual e os Bric
Como em outros momentos históricos, a grave crise das maiores economias capitalistas abriu espaço para o crescimento de alguns países da periferia do sistema – o que reforça a tese de que, na lógica do desenvolvimento combinado e desigual do capitalismo, a crise pode se tornar uma janela de oportunidades. Isto é que explicaria a situação distinta do chamado Bric, que reúne as economias do Brasil, Rússia, Índia e China. Segundo previsões do Banco Mundial para 2010, a China terá um crescimento de quase 10% no seu PIB; a Índia pode beirar os 7%; e o Brasil deve superar os 5%. A Rússia, que foi destruída pela restauração capitalista, é que apresenta maiores dificuldades – mesmo assim, ela está em melhores condições do que várias potências capitalistas.
Um dos segredos desta situação favorável dos Bric é que estas nações não seguiram o receituário neoliberal imposto pela ditadura financeira – de desmonte do estado, da nação e do trabalho. Elas ainda possuem empresas estatais fortes, bancos públicos de peso, maior capacidade dos governos de regulação e indução econômica e mercados internos protegidos. A negação do neoliberalismo foi decisiva para que estes países fossem os últimos a entrar em crise e os primeiros a sair dela.
II- Instabilidade política e ofensiva belicista
A grave crise promoveu alterações no quadro político mundial, o que tem reflexos na luta dos trabalhadores. Nos EUA, a retração econômica e a agressiva política externa de George W. Bush foram responsáveis pela eleição do primeiro presidente negro desta nação racista. Barack Obama foi eleito com a promessa de mudança, mas até agora só causou decepção. Tanto que seu índice de popularidade já despencou – de 72% na posse para menos de 50% em fevereiro.
Vacilante, ele não enfrentou o poderoso complexo financeiro/industrial/militar, bancou trilhões de dólares para os rentistas e abrandou até a sua reforma do sistema de saúde. No campo externo, Obama segue os passos genocidas de Bush. Ele reforçou a ocupação militar do Afeganistão, apóia Israel contra os palestinos e, o mais preocupante, dá fortes sinais de uma nova escalada militar – com o risco de guerras contra Irã e Coréia do Norte, o que pode lançar a humanidade numa completa barbárie de conseqüências desastrosas. Historicamente, as guerras sempre foram um instrumento utilizado pelo capitalismo para superar suas graves crises econômicas. Obama vai virando um refém dos setores mais direitistas dos EUA, alojados no Partido Republicano, que ameaçam desestabilizar o seu governo e exigem uma política mais belicista e expansionista.
A fascistização da Europa
Já a Europa, continente envelhecido, presencia o crescimento de forças nitidamente fascistas, que utilizam o discurso xenófobo para jogar a sociedade contra os imigrantes. A maior parte dos governos do continente está sob controle de partidos de direita, que promovem contra-reformas da Previdência, impõem medidas de precarizaçao do trabalho, arrocham brutalmente os salários e desmontam o estado de bem-estar social construído no pós-guerra.
A situação dos trabalhadores europeus é de acelerada regressão dos direitos. Ângela Merkel (Alemanha), Nicolas Sarkozy (França) e Silvio Berlusconi (Itália) estão na linha de frente desta onda direitista na Europa. Seus governos também reforçam os traços imperialistas e belicistas, almejando principalmente maior expansão no Leste Europeu destruído pelo tsunami capitalista e no sofrido continente africano. A Europa, sob a hegemonia de forças de caráter fascista, abandona a bandeira da paz e reforça o discurso guerreiro dos EUA, o que agrava a situação de instabilidade no mundo atual.
A resistência dos trabalhadores
Diante deste cenário dantesco, os trabalhadores europeus resistem, mas ainda numa correlação de forças adversa. As cinco greves gerais na Grécia são a resposta às tentativas de regressão de direitos trabalhistas e previdenciários. Em Portugal, prestes a cair no desfiladeiro, também foram realizadas duas greves gerais neste ano. Na França, que sofre a pior recessão desde o pós-guerra – o PIB recuou 2,2% em 2009 –, uma greve geral parou o país no final de março contra o pacote de maldade do governo direitista de Nicolas Sarkozy, que visa congelar salários e elevar o tempo de aposentadoria dos franceses. Cerca de 3 milhões de franceses participaram de passeatas e atos de protesto. Como resultado da crescente rebeldia, Sarkozy colheu sua primeira derrota eleitoral no pleito regional de março. Na Itália, Berlusconi é hostilizado devido ao seu projeto regressivo de reforma da Previdência Social. Na Inglaterra, a ocupação de fábricas falidas prossegue. A luta de classes deve se aguçar na Europa, que vive a tensa disjuntiva: progresso social ou fascismo!
III- Riscos de retrocesso na América Latina
Na América Latina, o cenário também não é dos mais tranqüilos. Após a heróica luta contra as ditaduras militares, o continente oprimido virou o principal laboratório internacional das políticas neoliberais. A partir do Consenso de Washington, firmado pelas elites empresariais em 1989, um tsunami devastou os países da região com a privatização das empresas estatais, redução do papel do estado, abertura de fronteiras contrária à soberania nacional, corte de investimentos públicos e retirada de direitos trabalhistas.
A taxa de desemprego bateu recordes históricos; a informalidade superou os índices de trabalho formal; os salários perderam peso no Produto Interno Bruto (PIB); a miséria e a barbárie se alastraram na América Latina. O neoliberalismo se tornou hegemônico, elegendo e reelegendo presidentes comprometidos com os seus dogmas, afinados com a ditadura financeira e alinhados servilmente com os EUA. Uma parcela dos trabalhadores, inclusive, foi seduzida pelos slogans midiáticos contra os servidores públicos, os direitos previdenciários e trabalhistas e a soberania das nações. A quebradeira, porém, não durou muito tempo.
A guinada à esquerda no continente
De continente laboratório das políticas neoliberais, a América Latina se transformou, a partir do final da década de 1990, na vanguarda da luta contra o neoliberalismo. Apesar da devastação do trabalho, que fragmentou e tornou mais complexa a classe trabalhadora, o sindicalismo não se curvou e resistiu à brutal ofensiva do capital. Novos movimentos sociais passaram a jogar papel de maior protagonismo no hemisfério. Fruto desta resistência ativa, onze presidentes neoliberais foram depostos e os candidatos identificados com esse receituário destrutivo e regressivo foram rechaçados nas urnas.
Com concepções distintas e ritmos diferenciados, reflexos da realidade da luta de classes em cada país, novos governantes passaram a adotar políticas de fortalecimento do estado, de reversão do processo de privatização, de maior investimento em programas sociais e de diálogo mais democrático com os movimentos sindicais e populares. A hegemonia neoliberal deu lugar a uma guinada à esquerda na América Latina. Os novos governos também perceberam que precisam investir na integração regional; divididos diante do império estadunidense, estes países se desintegrariam. Em curto espaço de tempo, o sonho de uma América Latina mais unida foi ganhando contornos com a retomada do Mercosul, a criação da Unasul e a constituição do Conselho de Defesa Militar do Sul, entre outras medidas integradoras do continente.
Nova ofensiva do imperialismo
Estes expressivos avanços, porém, não estão imunes a risco. Ainda campeia a desigualdade social nesta região devastada pelo colonialismo, ditaduras e neoliberalismo. As experiências em curso também revelam limitações, não conseguindo enfrentar os seus problemas estruturais. Para agravar o cenário, os EUA tentam retomar a ofensiva no seu “quintal”, após uma fase de sensível perda de influência política e econômica. Não dá para subestimar a agressividade deste império, que tem muitos interesses em jogo na região.
Um breve balanço confirma que ele obteve recentes vitórias e recupera terreno no continente, seja através de golpes, ocupações militares e até mesmo pela via eleitoral. Ainda na gestão de George Bush, os EUA reativaram a 4ª Frota, composta por navios nucleares que vigiam os mares do hemisfério, ameaçando os governos progressistas da região e a descoberta do pré-sal. Em maio passado, o empresário direitista Ricardo Martinelli venceu as eleições no Panamá; em junho, o “democrata” Barack Obama foi cúmplice do golpe em Honduras, o que fez ressurgir o fantasma das ditaduras; no mesmo período, os EUA anunciaram a criação de seis bases militares na Colômbia; já no Haiti, o mortífero terremoto serviu de pretexto para o envio de milhares de soldados ianques.
A experiência mais emblemática, no entanto, se deu na eleição do Chile. Apesar da popularidade da presidente Michele Bachelet, ela não conseguiu transferir votos para o seu candidato Eduardo Frei. A direita saiu unificada e as forças de centro à esquerda apresentaram três candidaturas. Resultado: o barão midiático Sebastián Piñera, totalmente servil à política externa dos EUA, venceu o pleito para o delírio da direita latino-americana.
Brasil decide o destino da região
Estes reveses indicam que a guinada progressista na América Latina corre perigo. A opção por programas sociais distributivos, pela retomada do papel indutor do estado e pela integração latino-americana, entre outros avanços, pode ser abortada com o regresso de gestores neoliberais, que pregam o “alinhamento automático” com os EUA. Há sinais de alerta na Argentina, onde a direita ruralista e rentista joga na desestabilização do governo Cristina Kirchner; na Venezuela, onde ressurgem as conspirações golpistas; na Bolívia, sempre sob a ameaça da divisão territorial; e principalmente nos países da América Central, agora sob o espectro assustador do retorno dos golpes e ditaduras militares.
Mas, como apontou recente artigo do jornal britânico Guardian, a aposta decisiva para os rumos da América Latina se dá no Brasil devido ao seu peso geopolítico no continente. “Embora as autoridades do Departamento de Estado sob Bush e Obama tenham mantido postura amigável, é obvio que se ressentem profundamente das mudanças na política externa brasileira que aliaram o país a outros governos social-democratas do hemisfério e se ressentem da posição independente do Brasil em relação ao Oriente Médio, ao Irã e a outros lugares”. O destino da América Latina será decidido no Brasil, garante o influente Guardian.
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I- O fantasma da crise internacional
Os trabalhadores do mundo inteiro acompanharam, tensos e temerosos, a crise que se abateu sobre a economia capitalista desde a falência do banco Lehman Brothers em setembro de 2008. Afinal, em todas as recessões econômicas, sejam nas mais suaves ou nas mais profundas, os que vivem do salário são sempre as principais vítimas, com a explosão do desemprego, o arrocho dos salários e a precarização do trabalho. No caso desta crise, ela teve um agravante. Ela começou no coração do sistema capitalista, nos EUA – e não na sua periferia.
Detonada a partir do estouro da bolha especulativa no setor imobiliário, o chamado subprime, ela logo atingiu o setor financeiro, levando à falência centenas de bancos. Na sequência, indústria e comércio sentiram seu impacto, cuja concordata da ex-poderosa GM foi o caso mais emblemático. Diferente das crises cíclicas anteriores, esta foi e ainda é uma crise estrutural e sistêmica, cujos efeitos deverão ser mais prolongados e destrutivos.
16 milhões sumariamente demitidos
No rastro devastador da crise, que logo contaminou as economias “avançadas” da Europa e do Japão, cerca de 16 milhões de trabalhadores foram sumariamente demitidos; inúmeros sindicatos assinaram acordos de redução salarial; vários governos reduziram investimentos nas áreas sociais e impuseram leis de flexibilização trabalhista. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que apenas nas 20 maiores economias do planeta o desemprego ceifou 6 milhões de empregos na indústria, 3 milhões na construção civil e 2,3 milhões no comércio.
Culpados pela crise, os capitalistas novamente jogaram o seu ônus nas costas dos assalariados. Numa prova de cinismo, também rasgaram os dogmas neoliberais, que pregavam o desmonte do Estado, da nação e do trabalho e que foram os maiores culpados pela eclosão da crise. O poder público, antes satanizado e reduzido a “estado mínimo”, foi acionado para salvar os avarentos capitalistas. Os governos de George Bush e Barack Obama saquearam do cofre público mais de 1,5 trilhão de dólares para socorrer bancos, indústrias e comércio. Para os ricaços, tudo e com urgência; para os trabalhadores, o brutal ônus da crise – como sempre ocorreu no sistema de exploração capitalista.
Novos repiques da crise mundial
A grave retração mundial confirmou que o capitalismo é um sistema de crises periódicas. Elas fazem parte da sua dinâmica, com todas suas chagas sociais. Mas também revelou que o sistema não cai de maduro. Ele desenvolveu mecanismos para se safar da completa falência. No auge da crise, em meados do ano passado, muitos analistas previram uma profunda reforma do sistema, com formas de controle de agiotagem financeira e de maior justiça social. Mas isto não ocorreu.
O capitalismo mantém sua dinâmica de exploração do trabalho, de concentração das riquezas nas mãos de uma minoria e de especulação rentista. A crise não foi terminal, como muitos previam. Mas também ainda não foi superada, como os apologistas do capital bravateiam. Nas potências capitalistas, ela continua gerando instabilidade política e insegurança para os trabalhadores. Na maior parte da periferia do sistema, os efeitos da brutal recessão ainda são sentidos, inclusive nos países da América Latina mais dependentes do mercado externo. Os sinais de novos repiques da crise mundial ainda assombram os povos, como um fantasma que ronda o mundo capitalista.
Socorro às poderosas corporações
Nos EUA, epicentro da crise, o desemprego alcançou o recorde histórico de 10% em 2009 – o dobro de 2008. O déficit público, decorrente do salvamento aos poderosos, já engoliu US$ 12,36 trilhões do erário e o Orçamento para 2011 prevê cortes de US$ 1,6 trilhão nos gastos sociais – o que agravará o drama de milhões de miseráveis deste país símbolo do capitalismo. O socorro até agora dispensado às poderosas corporações ainda não surtiu efeito.
Em abril último, a comissão de valores mobiliários dos EUA (SEC) acusou os 19 maiores bancos do país de usarem artifícios contábeis para desviar fortunas dos cofres públicos. Já a auditoria federal teme pela capacidade de sobrevivência da GM, apesar dos US$ 13,4 bilhões que garfou da União, revela o jornal Valor (20/4/10). Na Europa, a situação é ainda mais dramática. A Grécia faliu e outros primos pobres da região, como Portugal e Espanha, caminham para o mesmo desfiladeiro. Para o Banco Central Europeu, há forte risco de “novas turbulências econômicas”, alerta o jornal O Estado de S.Paulo (16/4/10). “Nós podemos já ter entrado na próxima fase da crise”, afirma Jürgen Stark, executivo do BCE. Algumas economias inclusive já ameaçam abandonar a moeda única da região, o Euro.
Desenvolvimento desigual e os Bric
Como em outros momentos históricos, a grave crise das maiores economias capitalistas abriu espaço para o crescimento de alguns países da periferia do sistema – o que reforça a tese de que, na lógica do desenvolvimento combinado e desigual do capitalismo, a crise pode se tornar uma janela de oportunidades. Isto é que explicaria a situação distinta do chamado Bric, que reúne as economias do Brasil, Rússia, Índia e China. Segundo previsões do Banco Mundial para 2010, a China terá um crescimento de quase 10% no seu PIB; a Índia pode beirar os 7%; e o Brasil deve superar os 5%. A Rússia, que foi destruída pela restauração capitalista, é que apresenta maiores dificuldades – mesmo assim, ela está em melhores condições do que várias potências capitalistas.
Um dos segredos desta situação favorável dos Bric é que estas nações não seguiram o receituário neoliberal imposto pela ditadura financeira – de desmonte do estado, da nação e do trabalho. Elas ainda possuem empresas estatais fortes, bancos públicos de peso, maior capacidade dos governos de regulação e indução econômica e mercados internos protegidos. A negação do neoliberalismo foi decisiva para que estes países fossem os últimos a entrar em crise e os primeiros a sair dela.
II- Instabilidade política e ofensiva belicista
A grave crise promoveu alterações no quadro político mundial, o que tem reflexos na luta dos trabalhadores. Nos EUA, a retração econômica e a agressiva política externa de George W. Bush foram responsáveis pela eleição do primeiro presidente negro desta nação racista. Barack Obama foi eleito com a promessa de mudança, mas até agora só causou decepção. Tanto que seu índice de popularidade já despencou – de 72% na posse para menos de 50% em fevereiro.
Vacilante, ele não enfrentou o poderoso complexo financeiro/industrial/militar, bancou trilhões de dólares para os rentistas e abrandou até a sua reforma do sistema de saúde. No campo externo, Obama segue os passos genocidas de Bush. Ele reforçou a ocupação militar do Afeganistão, apóia Israel contra os palestinos e, o mais preocupante, dá fortes sinais de uma nova escalada militar – com o risco de guerras contra Irã e Coréia do Norte, o que pode lançar a humanidade numa completa barbárie de conseqüências desastrosas. Historicamente, as guerras sempre foram um instrumento utilizado pelo capitalismo para superar suas graves crises econômicas. Obama vai virando um refém dos setores mais direitistas dos EUA, alojados no Partido Republicano, que ameaçam desestabilizar o seu governo e exigem uma política mais belicista e expansionista.
A fascistização da Europa
Já a Europa, continente envelhecido, presencia o crescimento de forças nitidamente fascistas, que utilizam o discurso xenófobo para jogar a sociedade contra os imigrantes. A maior parte dos governos do continente está sob controle de partidos de direita, que promovem contra-reformas da Previdência, impõem medidas de precarizaçao do trabalho, arrocham brutalmente os salários e desmontam o estado de bem-estar social construído no pós-guerra.
A situação dos trabalhadores europeus é de acelerada regressão dos direitos. Ângela Merkel (Alemanha), Nicolas Sarkozy (França) e Silvio Berlusconi (Itália) estão na linha de frente desta onda direitista na Europa. Seus governos também reforçam os traços imperialistas e belicistas, almejando principalmente maior expansão no Leste Europeu destruído pelo tsunami capitalista e no sofrido continente africano. A Europa, sob a hegemonia de forças de caráter fascista, abandona a bandeira da paz e reforça o discurso guerreiro dos EUA, o que agrava a situação de instabilidade no mundo atual.
A resistência dos trabalhadores
Diante deste cenário dantesco, os trabalhadores europeus resistem, mas ainda numa correlação de forças adversa. As cinco greves gerais na Grécia são a resposta às tentativas de regressão de direitos trabalhistas e previdenciários. Em Portugal, prestes a cair no desfiladeiro, também foram realizadas duas greves gerais neste ano. Na França, que sofre a pior recessão desde o pós-guerra – o PIB recuou 2,2% em 2009 –, uma greve geral parou o país no final de março contra o pacote de maldade do governo direitista de Nicolas Sarkozy, que visa congelar salários e elevar o tempo de aposentadoria dos franceses. Cerca de 3 milhões de franceses participaram de passeatas e atos de protesto. Como resultado da crescente rebeldia, Sarkozy colheu sua primeira derrota eleitoral no pleito regional de março. Na Itália, Berlusconi é hostilizado devido ao seu projeto regressivo de reforma da Previdência Social. Na Inglaterra, a ocupação de fábricas falidas prossegue. A luta de classes deve se aguçar na Europa, que vive a tensa disjuntiva: progresso social ou fascismo!
III- Riscos de retrocesso na América Latina
Na América Latina, o cenário também não é dos mais tranqüilos. Após a heróica luta contra as ditaduras militares, o continente oprimido virou o principal laboratório internacional das políticas neoliberais. A partir do Consenso de Washington, firmado pelas elites empresariais em 1989, um tsunami devastou os países da região com a privatização das empresas estatais, redução do papel do estado, abertura de fronteiras contrária à soberania nacional, corte de investimentos públicos e retirada de direitos trabalhistas.
A taxa de desemprego bateu recordes históricos; a informalidade superou os índices de trabalho formal; os salários perderam peso no Produto Interno Bruto (PIB); a miséria e a barbárie se alastraram na América Latina. O neoliberalismo se tornou hegemônico, elegendo e reelegendo presidentes comprometidos com os seus dogmas, afinados com a ditadura financeira e alinhados servilmente com os EUA. Uma parcela dos trabalhadores, inclusive, foi seduzida pelos slogans midiáticos contra os servidores públicos, os direitos previdenciários e trabalhistas e a soberania das nações. A quebradeira, porém, não durou muito tempo.
A guinada à esquerda no continente
De continente laboratório das políticas neoliberais, a América Latina se transformou, a partir do final da década de 1990, na vanguarda da luta contra o neoliberalismo. Apesar da devastação do trabalho, que fragmentou e tornou mais complexa a classe trabalhadora, o sindicalismo não se curvou e resistiu à brutal ofensiva do capital. Novos movimentos sociais passaram a jogar papel de maior protagonismo no hemisfério. Fruto desta resistência ativa, onze presidentes neoliberais foram depostos e os candidatos identificados com esse receituário destrutivo e regressivo foram rechaçados nas urnas.
Com concepções distintas e ritmos diferenciados, reflexos da realidade da luta de classes em cada país, novos governantes passaram a adotar políticas de fortalecimento do estado, de reversão do processo de privatização, de maior investimento em programas sociais e de diálogo mais democrático com os movimentos sindicais e populares. A hegemonia neoliberal deu lugar a uma guinada à esquerda na América Latina. Os novos governos também perceberam que precisam investir na integração regional; divididos diante do império estadunidense, estes países se desintegrariam. Em curto espaço de tempo, o sonho de uma América Latina mais unida foi ganhando contornos com a retomada do Mercosul, a criação da Unasul e a constituição do Conselho de Defesa Militar do Sul, entre outras medidas integradoras do continente.
Nova ofensiva do imperialismo
Estes expressivos avanços, porém, não estão imunes a risco. Ainda campeia a desigualdade social nesta região devastada pelo colonialismo, ditaduras e neoliberalismo. As experiências em curso também revelam limitações, não conseguindo enfrentar os seus problemas estruturais. Para agravar o cenário, os EUA tentam retomar a ofensiva no seu “quintal”, após uma fase de sensível perda de influência política e econômica. Não dá para subestimar a agressividade deste império, que tem muitos interesses em jogo na região.
Um breve balanço confirma que ele obteve recentes vitórias e recupera terreno no continente, seja através de golpes, ocupações militares e até mesmo pela via eleitoral. Ainda na gestão de George Bush, os EUA reativaram a 4ª Frota, composta por navios nucleares que vigiam os mares do hemisfério, ameaçando os governos progressistas da região e a descoberta do pré-sal. Em maio passado, o empresário direitista Ricardo Martinelli venceu as eleições no Panamá; em junho, o “democrata” Barack Obama foi cúmplice do golpe em Honduras, o que fez ressurgir o fantasma das ditaduras; no mesmo período, os EUA anunciaram a criação de seis bases militares na Colômbia; já no Haiti, o mortífero terremoto serviu de pretexto para o envio de milhares de soldados ianques.
A experiência mais emblemática, no entanto, se deu na eleição do Chile. Apesar da popularidade da presidente Michele Bachelet, ela não conseguiu transferir votos para o seu candidato Eduardo Frei. A direita saiu unificada e as forças de centro à esquerda apresentaram três candidaturas. Resultado: o barão midiático Sebastián Piñera, totalmente servil à política externa dos EUA, venceu o pleito para o delírio da direita latino-americana.
Brasil decide o destino da região
Estes reveses indicam que a guinada progressista na América Latina corre perigo. A opção por programas sociais distributivos, pela retomada do papel indutor do estado e pela integração latino-americana, entre outros avanços, pode ser abortada com o regresso de gestores neoliberais, que pregam o “alinhamento automático” com os EUA. Há sinais de alerta na Argentina, onde a direita ruralista e rentista joga na desestabilização do governo Cristina Kirchner; na Venezuela, onde ressurgem as conspirações golpistas; na Bolívia, sempre sob a ameaça da divisão territorial; e principalmente nos países da América Central, agora sob o espectro assustador do retorno dos golpes e ditaduras militares.
Mas, como apontou recente artigo do jornal britânico Guardian, a aposta decisiva para os rumos da América Latina se dá no Brasil devido ao seu peso geopolítico no continente. “Embora as autoridades do Departamento de Estado sob Bush e Obama tenham mantido postura amigável, é obvio que se ressentem profundamente das mudanças na política externa brasileira que aliaram o país a outros governos social-democratas do hemisfério e se ressentem da posição independente do Brasil em relação ao Oriente Médio, ao Irã e a outros lugares”. O destino da América Latina será decidido no Brasil, garante o influente Guardian.
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TV digital e o drible na Constituição
Reproduzo artigo de João Brant, Jonas Valente e Eloísa Machado, publicado na coluna Tendências/Debates da Folha de S.Paulo:
No meio da Copa do Mundo de 2006, quando ainda achávamos que o Brasil bateria a França e iria rumo ao hexa, o governo federal publicou o decreto nº 5.820, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital. Na mesma semana, duas decepções: o Brasil foi eliminado da Copa e decidiu abrir mão das possibilidades que a TV digital trazia para democratizar as comunicações. Quatro anos depois, temos chance de superar as duas coisas, pelo menos em parte. Uma depende de Dunga e dos 23 jogadores.
A outra depende do Supremo Tribunal Federal, que tem em sua pauta a Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pelo PSOL em 2007. A Adin contesta o fato de o decreto ter entregue, por meio de consignação, mais um canal para os atuais concessionários de TV.
O argumento da Adin foi reforçado pelas entidades Intervozes, Conectas e Pro Bono, que entraram como "amici curiae" na ação e veem aí duas inconstitucionalidades. Para compreendê-las, é preciso saber que a TV digital não é apenas uma evolução da TV analógica.
Além de melhorar a qualidade de áudio e vídeo das transmissões, a digitalização cria uma nova plataforma, viabilizando interatividade (colocando a TV em diálogo com a internet), recepção portátil (em celulares e pequenos aparelhos) e multiprogramação, ou seja, a transmissão de até 8 programações usando o mesmo canal.
Esse novo serviço deveria ser regulamentado e passar pelo processo de novas concessões, respeitando os artigos 175 e 223 da Constituição Federal, que preveem, inclusive, a apreciação das outorgas pelo Congresso Nacional.
Além de passar por cima desse procedimento, o decreto, ao entregar às emissoras o mesmo espaço que já ocupavam no espectro analógico (6 MHz), deixa de promover o pluralismo e a ampliação da liberdade de expressão, preceitos fundamentais de nossa Constituição.
A proibição a monopólios e oligopólios em rádio e TV, expressa no artigo 220, deveria ser uma diretriz para o ato que instituiu a TV digital.
Mas o decreto deixou de observá-la e privilegiou as atuais concessionárias, que já configuram um oligopólio de fato - as quatro emissoras líderes concentram 83,3% da audiência e 97,2% da receita publicitária. No caso da televisão, esse não é apenas um problema econômico, mas uma ameaça à democracia.
A TV digital poderia significar verdadeira revolução democrática, mas o modelo adotado no Brasil aprofunda as desigualdades, com a manutenção da concentração e ausência de competição. A continuar assim, nem deveríamos falar em TV digital - é a velha TV analógica transmitida em outra tecnologia.
Alguns dirão que, dois anos após o início das transmissões, qualquer tentativa de reconfigurar esse cenário irá afetar investimentos milionários feitos pelas emissoras. Há, na verdade, várias saídas para aproveitá-los. O mais importante, porém, é compreender que está em jogo a possibilidade de ampliar a liberdade de expressão e fortalecer a democracia. E liberdade de expressão e democracia não podem ser reféns de fatos consumados.
Ainda mais quando estes são flagrantemente inconstitucionais.
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No meio da Copa do Mundo de 2006, quando ainda achávamos que o Brasil bateria a França e iria rumo ao hexa, o governo federal publicou o decreto nº 5.820, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital. Na mesma semana, duas decepções: o Brasil foi eliminado da Copa e decidiu abrir mão das possibilidades que a TV digital trazia para democratizar as comunicações. Quatro anos depois, temos chance de superar as duas coisas, pelo menos em parte. Uma depende de Dunga e dos 23 jogadores.
A outra depende do Supremo Tribunal Federal, que tem em sua pauta a Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pelo PSOL em 2007. A Adin contesta o fato de o decreto ter entregue, por meio de consignação, mais um canal para os atuais concessionários de TV.
O argumento da Adin foi reforçado pelas entidades Intervozes, Conectas e Pro Bono, que entraram como "amici curiae" na ação e veem aí duas inconstitucionalidades. Para compreendê-las, é preciso saber que a TV digital não é apenas uma evolução da TV analógica.
Além de melhorar a qualidade de áudio e vídeo das transmissões, a digitalização cria uma nova plataforma, viabilizando interatividade (colocando a TV em diálogo com a internet), recepção portátil (em celulares e pequenos aparelhos) e multiprogramação, ou seja, a transmissão de até 8 programações usando o mesmo canal.
Esse novo serviço deveria ser regulamentado e passar pelo processo de novas concessões, respeitando os artigos 175 e 223 da Constituição Federal, que preveem, inclusive, a apreciação das outorgas pelo Congresso Nacional.
Além de passar por cima desse procedimento, o decreto, ao entregar às emissoras o mesmo espaço que já ocupavam no espectro analógico (6 MHz), deixa de promover o pluralismo e a ampliação da liberdade de expressão, preceitos fundamentais de nossa Constituição.
A proibição a monopólios e oligopólios em rádio e TV, expressa no artigo 220, deveria ser uma diretriz para o ato que instituiu a TV digital.
Mas o decreto deixou de observá-la e privilegiou as atuais concessionárias, que já configuram um oligopólio de fato - as quatro emissoras líderes concentram 83,3% da audiência e 97,2% da receita publicitária. No caso da televisão, esse não é apenas um problema econômico, mas uma ameaça à democracia.
A TV digital poderia significar verdadeira revolução democrática, mas o modelo adotado no Brasil aprofunda as desigualdades, com a manutenção da concentração e ausência de competição. A continuar assim, nem deveríamos falar em TV digital - é a velha TV analógica transmitida em outra tecnologia.
Alguns dirão que, dois anos após o início das transmissões, qualquer tentativa de reconfigurar esse cenário irá afetar investimentos milionários feitos pelas emissoras. Há, na verdade, várias saídas para aproveitá-los. O mais importante, porém, é compreender que está em jogo a possibilidade de ampliar a liberdade de expressão e fortalecer a democracia. E liberdade de expressão e democracia não podem ser reféns de fatos consumados.
Ainda mais quando estes são flagrantemente inconstitucionais.
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Do contracíclico ao antissocial
Reproduzo artigo de Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado no jornal Valor Econômico:
A crise internacional iniciada em 2008 tem sido comparada à Grande Depressão de 1929. Atualmente, contudo, percebe-se que ela se aproxima mais da Depressão de 1873 a 1896, tendo em vista a perspectiva de consolidação de nova hegemonia mundial frente à postergação na adoção de respostas de caráter estrutural à crise, sobretudo nas nações desenvolvidas. Por conta disso, observa-se pela primeira vez desde a década de 1930 que o centro do capitalismo mundial não se mostra capaz de liderar a retomada sustentada do crescimento econômico mundial, abrindo nova possibilidade de ascensão do protagonismo em países não desenvolvidos.
Recorda-se que, durante a depressão econômica do último quartel do século 19, a liderança inglesa no mundo começou a dar lugar à disputa de novas hegemonias nacionais, especialmente entre os Estados Unidos e a Alemanha, que completavam o ciclo retardatário de industrialização. Nos dias de hoje, alguns países de industrialização tardia se apresentam cada vez mais como possíveis portadores do futuro, a exemplo daqueles com grande potencial de expansão via mercado interno, como China, Índia e Brasil.
Ainda que a crise internacional tenha colocado por terra mais de duas décadas de predomínio do ideário neoliberal, em que o Estado era apresentado como parte fundamental dos problemas da sociedade, constata-se que as recentes medidas de ajuste adotadas pela Grécia e Espanha terminam por, novamente, reativar a ortodoxia antissocial neoliberal. Como não poderia deixar de ser, as medidas de forte corte no gasto público saudadas pelo mercado financeiro correm o sério risco de se transformar nas adicionais doses de morfina que postergam a decisão final a respeito das dívidas de 1 trilhão e aumentam o sacrifício humano especialmente dos mais vulneráveis.
O vazio da governança global, expresso pelo anacronismo das instituições multilaterais vigentes e pela ausência de lideranças no norte do hemisfério à altura do desafio de reconstrução de um novo padrão de desenvolvimento mundial, faz regredir a formação da convergência nacional gerada em torno do resgate das políticas anticíclicas comandadas pelo revigoramento do Estado logo no último trimestre de 2008. Essa convergência, todavia, não produziu resultados idênticos entre as distintas nações, uma vez que, nos países ricos, por exemplo, o papel governamental direcionou fundamentalmente ao estancamento da crise internacional por intermédio da defesa dos interesses das matrizes das grandes corporações transnacionais, com a alocação de imensa quantidade de recursos públicos para liquidar dívidas decorrentes do processo de financeirização de riqueza a que se encontravam contaminadas. A corporação transnacional se tornou tão grande que não mais poderia quebrar, sob o risco de impor a bancarrota todo o sistema capitalista mundial, o que exigiu associação inédita das políticas fiscais e monetárias em torno da salvação do setor privado.
Em virtude disso, a ampliação dos gastos públicos nas operações de solvência financeira dos grandes empreendimentos financeiros e não financeiros não foi orientada ao reativamento direto do setor produtivo. Ao contrário, trouxe a elevação do grau de endividamento público com a manutenção da asfixia no crescimento das economias ricas.
No caso das nações não desenvolvidas, o reposicionamento do Estado durante a crise internacional foi diferenciado, mais voltado à defesa da produção e do emprego nacional. Em geral, os recursos públicos terminaram sendo alocados em apoio a novos investimentos em infraestrutura, energia e habitação, capazes, em geral, de fazer frente ao desestímulo decorrente da queda das exportações e retraimento do setor privado prisioneiro do processo de financeirização da riqueza. Também teve importância o manejo da política fiscal e monetária orientada à redução de custos de produção ao mercado interno, com apoio de mais crédito e redução da carga tributária para ampliação da renda interna ao consumo. Além disso, teve importância a aplicação das políticas de renda, capazes de compensar parte significativa do ônus da crise sobre os segmentos mais vulneráveis da população nos países não desenvolvidos. Nesse sentido, as respostas dos países periféricos permitiram a saída mais rápida da crise do que o observado nas economias do centro do capitalismo mundial.
É claro que a retirada das medidas anticíclicas precisa ser acompanhada de muito cuidado para não gerar novo ciclo de políticas antissociais, conforme verificado atualmente em alguns países europeus. A recente elevação de juros no Brasil não pode ser descartada disso, inclusive porque a recuperação econômica ocorre com ganhos de produtividade crescendo apenas sete vezes mais que a elevação do salário médio real. Com isso, os salários podem perder participação na renda nacional, e o circuito vicioso da financeirização da riqueza tende a receber um novo alento.
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A crise internacional iniciada em 2008 tem sido comparada à Grande Depressão de 1929. Atualmente, contudo, percebe-se que ela se aproxima mais da Depressão de 1873 a 1896, tendo em vista a perspectiva de consolidação de nova hegemonia mundial frente à postergação na adoção de respostas de caráter estrutural à crise, sobretudo nas nações desenvolvidas. Por conta disso, observa-se pela primeira vez desde a década de 1930 que o centro do capitalismo mundial não se mostra capaz de liderar a retomada sustentada do crescimento econômico mundial, abrindo nova possibilidade de ascensão do protagonismo em países não desenvolvidos.
Recorda-se que, durante a depressão econômica do último quartel do século 19, a liderança inglesa no mundo começou a dar lugar à disputa de novas hegemonias nacionais, especialmente entre os Estados Unidos e a Alemanha, que completavam o ciclo retardatário de industrialização. Nos dias de hoje, alguns países de industrialização tardia se apresentam cada vez mais como possíveis portadores do futuro, a exemplo daqueles com grande potencial de expansão via mercado interno, como China, Índia e Brasil.
Ainda que a crise internacional tenha colocado por terra mais de duas décadas de predomínio do ideário neoliberal, em que o Estado era apresentado como parte fundamental dos problemas da sociedade, constata-se que as recentes medidas de ajuste adotadas pela Grécia e Espanha terminam por, novamente, reativar a ortodoxia antissocial neoliberal. Como não poderia deixar de ser, as medidas de forte corte no gasto público saudadas pelo mercado financeiro correm o sério risco de se transformar nas adicionais doses de morfina que postergam a decisão final a respeito das dívidas de 1 trilhão e aumentam o sacrifício humano especialmente dos mais vulneráveis.
O vazio da governança global, expresso pelo anacronismo das instituições multilaterais vigentes e pela ausência de lideranças no norte do hemisfério à altura do desafio de reconstrução de um novo padrão de desenvolvimento mundial, faz regredir a formação da convergência nacional gerada em torno do resgate das políticas anticíclicas comandadas pelo revigoramento do Estado logo no último trimestre de 2008. Essa convergência, todavia, não produziu resultados idênticos entre as distintas nações, uma vez que, nos países ricos, por exemplo, o papel governamental direcionou fundamentalmente ao estancamento da crise internacional por intermédio da defesa dos interesses das matrizes das grandes corporações transnacionais, com a alocação de imensa quantidade de recursos públicos para liquidar dívidas decorrentes do processo de financeirização de riqueza a que se encontravam contaminadas. A corporação transnacional se tornou tão grande que não mais poderia quebrar, sob o risco de impor a bancarrota todo o sistema capitalista mundial, o que exigiu associação inédita das políticas fiscais e monetárias em torno da salvação do setor privado.
Em virtude disso, a ampliação dos gastos públicos nas operações de solvência financeira dos grandes empreendimentos financeiros e não financeiros não foi orientada ao reativamento direto do setor produtivo. Ao contrário, trouxe a elevação do grau de endividamento público com a manutenção da asfixia no crescimento das economias ricas.
No caso das nações não desenvolvidas, o reposicionamento do Estado durante a crise internacional foi diferenciado, mais voltado à defesa da produção e do emprego nacional. Em geral, os recursos públicos terminaram sendo alocados em apoio a novos investimentos em infraestrutura, energia e habitação, capazes, em geral, de fazer frente ao desestímulo decorrente da queda das exportações e retraimento do setor privado prisioneiro do processo de financeirização da riqueza. Também teve importância o manejo da política fiscal e monetária orientada à redução de custos de produção ao mercado interno, com apoio de mais crédito e redução da carga tributária para ampliação da renda interna ao consumo. Além disso, teve importância a aplicação das políticas de renda, capazes de compensar parte significativa do ônus da crise sobre os segmentos mais vulneráveis da população nos países não desenvolvidos. Nesse sentido, as respostas dos países periféricos permitiram a saída mais rápida da crise do que o observado nas economias do centro do capitalismo mundial.
É claro que a retirada das medidas anticíclicas precisa ser acompanhada de muito cuidado para não gerar novo ciclo de políticas antissociais, conforme verificado atualmente em alguns países europeus. A recente elevação de juros no Brasil não pode ser descartada disso, inclusive porque a recuperação econômica ocorre com ganhos de produtividade crescendo apenas sete vezes mais que a elevação do salário médio real. Com isso, os salários podem perder participação na renda nacional, e o circuito vicioso da financeirização da riqueza tende a receber um novo alento.
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Liberdade de imprensa: farsa e tragédia
O professor Venício A. de Lima, um dos maiores especialistas no estudo da mídia, está lançando o seu novo livro: “Liberdade de expressão vs. liberdade de imprensa – Direito à comunicação e democracia”, pela Editora Publisher. Reproduzo o prefácio do professor Fábio Konder Comparato:
Mais uma vez, Venício de Lima, ao fazer a crítica aguda da "desorganização" dos meios de comunicação de massa, contribui apreciavelmente para a reforma do nosso sistema político.
A Constituição de 1988 abre-se com a declaração solene de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. Acontece que nenhum desses três magnos princípios é adequadamente obedecido neste país. Não somos uma verdadeira república, porque o bem comum do povo, que os romanos denominavam exatamente res publica, não prevalece sobre os interesses particulares dos ricos e poderosos. Não somos uma autêntica democracia, porque o poder soberano não pertence ao povo, mas a uma minoria de grupos ou pessoas abastadas; o que é a própria definição de oligarquia. Tampouco constituímos um Estado de Direito, porque, com escandalosa frequência, as pessoas investidas em cargos públicos – no Executivo, no Legislativo e até mesmo no Judiciário – exercem um poder sem controle, e logram pôr sua vontade e seus interesses próprios acima do disposto na Constituição e nas leis.
Em suma, vivemos um regime político de dupla face. Para efeitos externos, a nossa República, como declara a Constituição, é um Estado Democrático de Direito. Para efeitos internos, porém, como todos sabem, a realidade é bem outra.
O povo brasileiro tem sido regularmente impedido de exercer o poder soberano. De um lado, por falta de adequada informação sobre as questões de interesse público; de outro, pela impossibilidade em que se encontra o conjunto dos cidadãos de manifestar publicamente suas opiniões ou protestos.
Liberdade pública
Na democracia ateniense, a comunicação cívica era presencial: o povo reunia-se na ágora, para discutir e votar as grandes questões de interesse da pólis. Nas sociedades de massas do presente, a comunicação dos cidadãos entre si exige a mediação da imprensa, do rádio, da televisão, ou da internet. Ora, no Brasil e em vários outros países, esses meios de comunicação de massa, com a só exceção (por quanto tempo?) da internet, foram ocupados e apropriados por particulares, que deles se servem em proveito próprio, ou das classes e entidades a que estão ligados.
Em verdade, nas sociedades contemporâneas os veículos de comunicação pública exercem função semelhante à do sistema de circulação sanguínea nos organismos animais. Trata-se de levar fatos, opiniões, ensinamentos, propostas ou espetáculos ao conjunto dos cidadãos, com a suposição de que estes saberão reagir a tais estímulos. É sempre o duplo movimento de sístole e diástole.
Ora, ninguém ignora que o sistema de comunicação de massa, aqui e alhures, tem funcionado com obstruções e insuficiências, semelhantes à manifestação de uma aterosclerose. Pior: na maioria esmagadora dos casos, não existe propriamente comunicação, no sentido original da palavra. Na língua matriz, communicatio, com o verbo correlato communico, -are, significava o ato de pôr algo em comum, de partilhar. Não é o que acontece hoje no campo das transmissões radiofônicas e televisivas, nem no da imprensa periódica: as mensagens são unilateralmente transmitidas ao público, e a este, salvo em hipóteses excepcionais, não é reconhecido o direito de contestá-las, e, menos ainda, o de abrir uma discussão a respeito delas.
Venício de Lima opõe com razão, desde o título da obra, os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa (transformada, no sistema capitalista, em liberdade de empresa).
A partir das declarações de direitos do final do século 18, estabeleceu-se a distinção entre liberdade pública, com o sentido político de autogoverno ou autopoder, e liberdades privadas, como contrapoderes; vale dizer, instrumentos de defesa do cidadão perante os poderes oficiais.
Benjamin Constant, em conferência pronunciada no Ateneu Real de Paris, em 1819, sustentou que, enquanto os gregos e os romanos só se preocupavam com a liberdade pública, isto é, a participação do cidadão no exercício do poder político, e desconheciam a autonomia privada, os modernos atribuem ao Estado, praticamente, uma única função: garantir as liberdades individuais. Com isto, perdemos tanto uma, quanto as outras.
Hoje, é preciso compreender que entre liberdade pública e liberdades privadas não há oposição, mas sim complementaridade. A liberdade pública é o quadro de organização das liberdades privadas. Tomemos, por exemplo, a liberdade de voto em eleições populares. Durante o regime militar brasileiro de 1964 a 1985, a Constituição garantia a liberdade de voto, mas as eleições não eram livres: só podiam existir partidos autorizados pelo governo, e os candidatos a postos eletivos eram submetidos a severa triagem ideológica.
Agenda setting
Esse foi um caso emblemático, em que as liberdades individuais deixaram de existir, em razão do excesso de restrições regulamentares.
Mas pode também ocorrer que as liberdades privadas sejam prejudicadas pela ausência de regulamentação. É o que vemos hoje, em nosso país, no campo da comunicação de massa. A Constituição declarou livre a manifestação do pensamento (art. 5º, inciso IV), mas deixou a regulamentação do quadro geral de exercício dessa liberdade individual à legislação ordinária. Sucede que até hoje, passados mais de vinte anos da entrada em vigor da Constituição, as suas principais disposições sobre a matéria ainda não foram regulamentadas. O Congresso Nacional é sistematicamente paralisado pela pressão dominante das empresas de comunicação.
Se, numa sociedade de massas, as opiniões, idéias, protestos ou propostas só podem ser manifestados publicamente através dos meios institucionais de comunicação social, é evidente que esse espaço, por natureza público, não pode ser apropriado por particulares, atuando em ambiente não regulamentado.
O vale-tudo empresarial nesse campo, aliás, não é próprio do Brasil. Ele se espalhou pelo mundo todo com o movimento de globalização capitalista, a partir do último quartel do século 20. Não há dúvida, porém, que fomos dos primeiros a aderir à nova moda. Nos Estados Unidos, bastião inconteste do capitalismo, a desregulamentação dos mass media somente ocorreu com a lamentável lei de 1996 [cf. Ben H. Bagdikian, The New Media Monopoly, Bacon Press books, 2004, pp. 137/138; C. Edwin Baker, Media Concentration and Democracy – Why ownership matters, Cambridge University Press, 2007, pp. 1, 12 e ss]. Aqui, nem precisamos de lei para deitar abaixo a regulamentação mínima do setor. Neste ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal, manifestando completa desinteligência dos princípios jurídicos em relação à realidade hodierna dos meios de comunicação de massa, julgou revogada a Lei de imprensa de 1967. O fundamento dessa decisão "libertária" foi o fato de que ela fora editada durante o regime militar. Os empresários rejubilaram, exclamando como o velho sertanejo: a onça fugiu, o mato é nosso.
Nunca é demais repetir que público opõe-se a próprio. Público é o que pertence a todos. Próprio, o que pertence exclusivamente a um ou alguns. A comunhão ou comunidade é o exato contrário da propriedade. Nesse sentido, pode-se dizer que a liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, não pode ser objeto de propriedade de ninguém, pois ela é um atributo essencial da pessoa humana, um direito comum a todos. Ora, se a liberdade de expressão se exerce atualmente pela mediação necessária dos meios de comunicação de massa, estes últimos não podem, em estrita lógica, ser objeto de propriedade empresarial no interesse privado.
É preciso lembrar que a globalização capitalista do final do século passado engendrou uma enorme concentração do controle privado das empresas de comunicação de massa. Nos Estados Unidos havia, em 1983, cinquenta empresas dominantes no mercado de imprensa, rádio e televisão; hoje, há apenas cinco [cf. Ben H. Bagdikian, op. cit., pág. 16]. Atualmente no Brasil, apenas quatro megaempresas dominam o setor de televisão: a Globo controla 342 veículos; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; a Record, 142; sendo que cada uma dessas "redes" representa um segmento de um grupo, que explora também o rádio, jornais e revistas.
Com esse quadro reduzido de atores, as peças encenadas são sempre as mesmas. Quando eu era jovem – e já lá se vão alguns decênios – dizia-se que para ser bem informado era preciso ler vários jornais. Hoje, quem lê um dos nossos grandes matutinos leu todos os outros. Tirante algumas originalidades marginais, há absoluta convergência na defesa do capitalismo e na desregulamentação do setor de comunicação social. A escolha dos fatos a serem noticiados, ou dos assuntos a serem comentados – o famoso agenda setting dos norte-americanos – é basicamente a mesma. Até o estilo jornalístico, antes bem diverso conforme os periódicos, é hoje fastidiosamente homogêneo.
Princípios fundamentais
No passado, a edição de livros ou jornais representava o exercício de uma liberdade fundamental perante os órgãos do poder estabelecido. Era o modo de se desvendarem os abusos oficiais, perante o público leitor. Eis por que o soberano político, ou os chefes religiosos, não abriam mão da censura prévia. Os leitores eram constrangidos a pensar e a se exprimir como as autoridades ordenavam. Tal situação persiste ainda nos atuais Estados autoritários e totalitários.
Sucede, porém, que nos atuais países em que a democracia existe só como fachada, a apropriação empresarial dos meios de comunicação de massa inverteu os papéis: de instrumentos de contrapoder, ou garantias da liberdade de expressão, eles passaram a compor o complexo do poder estabelecido, manipulando a opinião pública e fazendo com que os diferentes órgãos do Estado – o Executivo, o Congresso Nacional e até mesmo os tribunais – se inclinem diante de suas exigências.
A verdade que o poder político não se assenta apenas na coação física, mas necessita também, para ser estável, de um mínimo de obediência voluntária. Ora, esta, nas sociedades contemporâneas, só pode ser obtida com a colaboração dos meios de comunicação de massa. Quando estes últimos são organizados sob a forma de empresas privadas, atuando livres de toda regulamentação, eles se tornam os grandes mentores da opinião pública, distribuindo loas e labéus a aliados e adversários, assim como as autoridades religiosas do passado zelavam pela ortodoxia dos fiéis, prometendo a salvação para uns e a condenação eterna para outros.
A atual inversão de papéis fez com que o poder de censura passasse das autoridades estatais para os próprios órgãos privados de comunicação social. A menção a pessoas não gratas aos novos barões da imprensa, do rádio e da televisão é terminantemente proibida. Tudo se passa como se tais renegados houvessem desaparecido deste mundo, sem deixar vestígios. Conheço, assim, um professor universitário paulista que goza do odioso privilégio de ter seu nome censurado nos dois principais jornais de São Paulo.
O que importa hoje, portanto, antes de tudo, é montar uma estratégia de combate aos abusos consolidados no vasto setor de comunicação social. Como toda estratégia, ela implica a fixação de princípios, a montagem de um programa de reformas institucionais e a organização de forças políticas empenhadas em levar avante o movimento geral de transformação.
Os princípios fundamentais são os três acima citados: a República, a Democracia e o Estado de Direito. O essencial é preservar, sob controle do povo, o espaço público de comunicação de massa, e evitar cair nos desvios do estatismo e do privatismo.
Oligopólio empresarial
Ofereço a seguir, como contribuição à montagem de um programa de reformas institucionais, sob a égide desses princípios, as propostas seguintes:
** Prioridade absoluta deve ser reconhecida à criação de rádios ou televisões públicas; sejam elas de comunidades locais, com reduzido espectro de transmissão, sejam de âmbito nacional ou regional. Estas últimas devem ser geridas pelo Estado, mas com a participação majoritária, em seus conselhos de administração, de representantes legítimos da sociedade civil.
** As entidades privadas de imprensa, rádio e televisão não podem se organizar como empresas capitalistas, mas devem funcionar sob a forma de associações ou fundações. Metade, pelo menos, dos componentes do conselho de administração dessas entidades deve ser eleita pelos jornalistas que nelas trabalham.
** Nenhuma empresa privada de comunicação pode possuir o controle, direto ou indireto, de mais de um veículo.
** A concessão pública de funcionamento de entidades privadas de rádio e televisão, bem como a sua renovação, devem ser feitas sempre mediante licitação pública (Constituição Federal, art. 175), revogando-se o disposto no § 2º do art. 223 da Constituição ["A não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal"].
** O Conselho de Comunicação Social, previsto no art. 224 da Constituição Federal, deve ser composto, metade por representantes dos veículos públicos de comunicação social e a outra metade por representantes dos veículos privados.
** Devem ser criadas ouvidorias populares para fiscalizar a atuação dos veículos de comunicação social, em todas as unidades da federação.
** Além do direito de resposta tradicional, a lei deve instituir um direito de resposta para a defesa dos direitos coletivos e difusos, a ser exercido por associações ou entidades que tenham em seu estatuto social essa finalidade.
** Além dos partidos políticos, devem poder exercer o chamado direito de antena, já instituído nas Constituições da Espanha e de Portugal, as entidades privadas ou oficiais, reconhecidas de utilidade pública. Ou seja, elas devem poder fazer passar suas mensagens, de modo livre e gratuito, no rádio e na televisão, reservando-se, para tanto, um tempo mínimo nos respectivos veículos.
Quando da independência dos Estados Unidos, James Madison, um dos seus Pais Fundadores, afirmou que um governo democrático (a government by the people), sem uma imprensa controlada pelo povo (a popular press), seria um prelúdio à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas.
No Brasil, a criação do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa durante o regime militar (1964 a 1985) logrou, de fato, unir a farsa à tragédia. Não foi por outra razão que esse amálgama monstruoso mereceu de um jornal de São Paulo a leviana qualificação de ditabranda.
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Mais uma vez, Venício de Lima, ao fazer a crítica aguda da "desorganização" dos meios de comunicação de massa, contribui apreciavelmente para a reforma do nosso sistema político.
A Constituição de 1988 abre-se com a declaração solene de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. Acontece que nenhum desses três magnos princípios é adequadamente obedecido neste país. Não somos uma verdadeira república, porque o bem comum do povo, que os romanos denominavam exatamente res publica, não prevalece sobre os interesses particulares dos ricos e poderosos. Não somos uma autêntica democracia, porque o poder soberano não pertence ao povo, mas a uma minoria de grupos ou pessoas abastadas; o que é a própria definição de oligarquia. Tampouco constituímos um Estado de Direito, porque, com escandalosa frequência, as pessoas investidas em cargos públicos – no Executivo, no Legislativo e até mesmo no Judiciário – exercem um poder sem controle, e logram pôr sua vontade e seus interesses próprios acima do disposto na Constituição e nas leis.
Em suma, vivemos um regime político de dupla face. Para efeitos externos, a nossa República, como declara a Constituição, é um Estado Democrático de Direito. Para efeitos internos, porém, como todos sabem, a realidade é bem outra.
O povo brasileiro tem sido regularmente impedido de exercer o poder soberano. De um lado, por falta de adequada informação sobre as questões de interesse público; de outro, pela impossibilidade em que se encontra o conjunto dos cidadãos de manifestar publicamente suas opiniões ou protestos.
Liberdade pública
Na democracia ateniense, a comunicação cívica era presencial: o povo reunia-se na ágora, para discutir e votar as grandes questões de interesse da pólis. Nas sociedades de massas do presente, a comunicação dos cidadãos entre si exige a mediação da imprensa, do rádio, da televisão, ou da internet. Ora, no Brasil e em vários outros países, esses meios de comunicação de massa, com a só exceção (por quanto tempo?) da internet, foram ocupados e apropriados por particulares, que deles se servem em proveito próprio, ou das classes e entidades a que estão ligados.
Em verdade, nas sociedades contemporâneas os veículos de comunicação pública exercem função semelhante à do sistema de circulação sanguínea nos organismos animais. Trata-se de levar fatos, opiniões, ensinamentos, propostas ou espetáculos ao conjunto dos cidadãos, com a suposição de que estes saberão reagir a tais estímulos. É sempre o duplo movimento de sístole e diástole.
Ora, ninguém ignora que o sistema de comunicação de massa, aqui e alhures, tem funcionado com obstruções e insuficiências, semelhantes à manifestação de uma aterosclerose. Pior: na maioria esmagadora dos casos, não existe propriamente comunicação, no sentido original da palavra. Na língua matriz, communicatio, com o verbo correlato communico, -are, significava o ato de pôr algo em comum, de partilhar. Não é o que acontece hoje no campo das transmissões radiofônicas e televisivas, nem no da imprensa periódica: as mensagens são unilateralmente transmitidas ao público, e a este, salvo em hipóteses excepcionais, não é reconhecido o direito de contestá-las, e, menos ainda, o de abrir uma discussão a respeito delas.
Venício de Lima opõe com razão, desde o título da obra, os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa (transformada, no sistema capitalista, em liberdade de empresa).
A partir das declarações de direitos do final do século 18, estabeleceu-se a distinção entre liberdade pública, com o sentido político de autogoverno ou autopoder, e liberdades privadas, como contrapoderes; vale dizer, instrumentos de defesa do cidadão perante os poderes oficiais.
Benjamin Constant, em conferência pronunciada no Ateneu Real de Paris, em 1819, sustentou que, enquanto os gregos e os romanos só se preocupavam com a liberdade pública, isto é, a participação do cidadão no exercício do poder político, e desconheciam a autonomia privada, os modernos atribuem ao Estado, praticamente, uma única função: garantir as liberdades individuais. Com isto, perdemos tanto uma, quanto as outras.
Hoje, é preciso compreender que entre liberdade pública e liberdades privadas não há oposição, mas sim complementaridade. A liberdade pública é o quadro de organização das liberdades privadas. Tomemos, por exemplo, a liberdade de voto em eleições populares. Durante o regime militar brasileiro de 1964 a 1985, a Constituição garantia a liberdade de voto, mas as eleições não eram livres: só podiam existir partidos autorizados pelo governo, e os candidatos a postos eletivos eram submetidos a severa triagem ideológica.
Agenda setting
Esse foi um caso emblemático, em que as liberdades individuais deixaram de existir, em razão do excesso de restrições regulamentares.
Mas pode também ocorrer que as liberdades privadas sejam prejudicadas pela ausência de regulamentação. É o que vemos hoje, em nosso país, no campo da comunicação de massa. A Constituição declarou livre a manifestação do pensamento (art. 5º, inciso IV), mas deixou a regulamentação do quadro geral de exercício dessa liberdade individual à legislação ordinária. Sucede que até hoje, passados mais de vinte anos da entrada em vigor da Constituição, as suas principais disposições sobre a matéria ainda não foram regulamentadas. O Congresso Nacional é sistematicamente paralisado pela pressão dominante das empresas de comunicação.
Se, numa sociedade de massas, as opiniões, idéias, protestos ou propostas só podem ser manifestados publicamente através dos meios institucionais de comunicação social, é evidente que esse espaço, por natureza público, não pode ser apropriado por particulares, atuando em ambiente não regulamentado.
O vale-tudo empresarial nesse campo, aliás, não é próprio do Brasil. Ele se espalhou pelo mundo todo com o movimento de globalização capitalista, a partir do último quartel do século 20. Não há dúvida, porém, que fomos dos primeiros a aderir à nova moda. Nos Estados Unidos, bastião inconteste do capitalismo, a desregulamentação dos mass media somente ocorreu com a lamentável lei de 1996 [cf. Ben H. Bagdikian, The New Media Monopoly, Bacon Press books, 2004, pp. 137/138; C. Edwin Baker, Media Concentration and Democracy – Why ownership matters, Cambridge University Press, 2007, pp. 1, 12 e ss]. Aqui, nem precisamos de lei para deitar abaixo a regulamentação mínima do setor. Neste ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal, manifestando completa desinteligência dos princípios jurídicos em relação à realidade hodierna dos meios de comunicação de massa, julgou revogada a Lei de imprensa de 1967. O fundamento dessa decisão "libertária" foi o fato de que ela fora editada durante o regime militar. Os empresários rejubilaram, exclamando como o velho sertanejo: a onça fugiu, o mato é nosso.
Nunca é demais repetir que público opõe-se a próprio. Público é o que pertence a todos. Próprio, o que pertence exclusivamente a um ou alguns. A comunhão ou comunidade é o exato contrário da propriedade. Nesse sentido, pode-se dizer que a liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, não pode ser objeto de propriedade de ninguém, pois ela é um atributo essencial da pessoa humana, um direito comum a todos. Ora, se a liberdade de expressão se exerce atualmente pela mediação necessária dos meios de comunicação de massa, estes últimos não podem, em estrita lógica, ser objeto de propriedade empresarial no interesse privado.
É preciso lembrar que a globalização capitalista do final do século passado engendrou uma enorme concentração do controle privado das empresas de comunicação de massa. Nos Estados Unidos havia, em 1983, cinquenta empresas dominantes no mercado de imprensa, rádio e televisão; hoje, há apenas cinco [cf. Ben H. Bagdikian, op. cit., pág. 16]. Atualmente no Brasil, apenas quatro megaempresas dominam o setor de televisão: a Globo controla 342 veículos; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; a Record, 142; sendo que cada uma dessas "redes" representa um segmento de um grupo, que explora também o rádio, jornais e revistas.
Com esse quadro reduzido de atores, as peças encenadas são sempre as mesmas. Quando eu era jovem – e já lá se vão alguns decênios – dizia-se que para ser bem informado era preciso ler vários jornais. Hoje, quem lê um dos nossos grandes matutinos leu todos os outros. Tirante algumas originalidades marginais, há absoluta convergência na defesa do capitalismo e na desregulamentação do setor de comunicação social. A escolha dos fatos a serem noticiados, ou dos assuntos a serem comentados – o famoso agenda setting dos norte-americanos – é basicamente a mesma. Até o estilo jornalístico, antes bem diverso conforme os periódicos, é hoje fastidiosamente homogêneo.
Princípios fundamentais
No passado, a edição de livros ou jornais representava o exercício de uma liberdade fundamental perante os órgãos do poder estabelecido. Era o modo de se desvendarem os abusos oficiais, perante o público leitor. Eis por que o soberano político, ou os chefes religiosos, não abriam mão da censura prévia. Os leitores eram constrangidos a pensar e a se exprimir como as autoridades ordenavam. Tal situação persiste ainda nos atuais Estados autoritários e totalitários.
Sucede, porém, que nos atuais países em que a democracia existe só como fachada, a apropriação empresarial dos meios de comunicação de massa inverteu os papéis: de instrumentos de contrapoder, ou garantias da liberdade de expressão, eles passaram a compor o complexo do poder estabelecido, manipulando a opinião pública e fazendo com que os diferentes órgãos do Estado – o Executivo, o Congresso Nacional e até mesmo os tribunais – se inclinem diante de suas exigências.
A verdade que o poder político não se assenta apenas na coação física, mas necessita também, para ser estável, de um mínimo de obediência voluntária. Ora, esta, nas sociedades contemporâneas, só pode ser obtida com a colaboração dos meios de comunicação de massa. Quando estes últimos são organizados sob a forma de empresas privadas, atuando livres de toda regulamentação, eles se tornam os grandes mentores da opinião pública, distribuindo loas e labéus a aliados e adversários, assim como as autoridades religiosas do passado zelavam pela ortodoxia dos fiéis, prometendo a salvação para uns e a condenação eterna para outros.
A atual inversão de papéis fez com que o poder de censura passasse das autoridades estatais para os próprios órgãos privados de comunicação social. A menção a pessoas não gratas aos novos barões da imprensa, do rádio e da televisão é terminantemente proibida. Tudo se passa como se tais renegados houvessem desaparecido deste mundo, sem deixar vestígios. Conheço, assim, um professor universitário paulista que goza do odioso privilégio de ter seu nome censurado nos dois principais jornais de São Paulo.
O que importa hoje, portanto, antes de tudo, é montar uma estratégia de combate aos abusos consolidados no vasto setor de comunicação social. Como toda estratégia, ela implica a fixação de princípios, a montagem de um programa de reformas institucionais e a organização de forças políticas empenhadas em levar avante o movimento geral de transformação.
Os princípios fundamentais são os três acima citados: a República, a Democracia e o Estado de Direito. O essencial é preservar, sob controle do povo, o espaço público de comunicação de massa, e evitar cair nos desvios do estatismo e do privatismo.
Oligopólio empresarial
Ofereço a seguir, como contribuição à montagem de um programa de reformas institucionais, sob a égide desses princípios, as propostas seguintes:
** Prioridade absoluta deve ser reconhecida à criação de rádios ou televisões públicas; sejam elas de comunidades locais, com reduzido espectro de transmissão, sejam de âmbito nacional ou regional. Estas últimas devem ser geridas pelo Estado, mas com a participação majoritária, em seus conselhos de administração, de representantes legítimos da sociedade civil.
** As entidades privadas de imprensa, rádio e televisão não podem se organizar como empresas capitalistas, mas devem funcionar sob a forma de associações ou fundações. Metade, pelo menos, dos componentes do conselho de administração dessas entidades deve ser eleita pelos jornalistas que nelas trabalham.
** Nenhuma empresa privada de comunicação pode possuir o controle, direto ou indireto, de mais de um veículo.
** A concessão pública de funcionamento de entidades privadas de rádio e televisão, bem como a sua renovação, devem ser feitas sempre mediante licitação pública (Constituição Federal, art. 175), revogando-se o disposto no § 2º do art. 223 da Constituição ["A não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal"].
** O Conselho de Comunicação Social, previsto no art. 224 da Constituição Federal, deve ser composto, metade por representantes dos veículos públicos de comunicação social e a outra metade por representantes dos veículos privados.
** Devem ser criadas ouvidorias populares para fiscalizar a atuação dos veículos de comunicação social, em todas as unidades da federação.
** Além do direito de resposta tradicional, a lei deve instituir um direito de resposta para a defesa dos direitos coletivos e difusos, a ser exercido por associações ou entidades que tenham em seu estatuto social essa finalidade.
** Além dos partidos políticos, devem poder exercer o chamado direito de antena, já instituído nas Constituições da Espanha e de Portugal, as entidades privadas ou oficiais, reconhecidas de utilidade pública. Ou seja, elas devem poder fazer passar suas mensagens, de modo livre e gratuito, no rádio e na televisão, reservando-se, para tanto, um tempo mínimo nos respectivos veículos.
Quando da independência dos Estados Unidos, James Madison, um dos seus Pais Fundadores, afirmou que um governo democrático (a government by the people), sem uma imprensa controlada pelo povo (a popular press), seria um prelúdio à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas.
No Brasil, a criação do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa durante o regime militar (1964 a 1985) logrou, de fato, unir a farsa à tragédia. Não foi por outra razão que esse amálgama monstruoso mereceu de um jornal de São Paulo a leviana qualificação de ditabranda.
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quarta-feira, 26 de maio de 2010
O jornalismo e as palavras do poder
Reproduzo discurso de Robert Fisk, publicado no blog Viomundo:
O correspondente do jornal britânico The Independent no Oriente Médio, Robert Fisk, fez o seguinte discurso no quinto fórum anual da emissora árabe Al Jazeera, em 23 de maio:
Poder e mídia não são apenas relações amigáveis entre jornalistas e líderes políticos, entre editores e presidentes. Não são apenas sobre as relações parasitárias e de osmose entre repórteres supostamente honrados e o eixo do poder que existe entre a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Pentágono, a Downing Street e os ministérios das Relações Exteriores e da Defesa [britânicos]. No contexto Ocidental, a relação entre poder e mídia diz respeito a palavras — é sobre o uso de palavras. É sobre semântica. É sobre o emprego de frases e suas origens. E é sobre o mau uso da História e sobre nossa ignorância da História. Mais e mais, hoje em dia, nós jornalistas nos tornamos prisioneiros da linguagem do poder.
Isso acontece porque não nos preocupamos com a linguística? É porque os laptops ‘corrigem’ nossa ortografia, ‘limpam’ nossa gramática de forma a que nossas sentenças frequentemente se tornem idênticas às de nossos líderes? É por isso que os editoriais de jornais hoje em dia soam como se fossem discursos políticos?
Deixem-me demonstrar o que quero dizer.
Por duas décadas as lideranças dos Estados Unidos e do Reino Unido — e dos israelenses e palestinos — tem usado as palavras “processo de paz” para definir o acordo sem futuro, inadequado e desonroso que permite aos Estados Unidos e a Israel fazerem o que bem entenderem com os pedaços de terra que deveriam ser dados a um povo sob ocupação.
Eu primeiro me perguntei sobre esta expressão e sobre a origem dela na época de Oslo [Nota do Viomundo: A capital da Noruega foi sede das negociações que resultaram num tratado entre israelenses e palestinos celebrado na Casa Branca com as presenças do presidente Bill Clinton, do líder palestino Yasser Arafat e do primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin, tratado que na prática fracassou] — embora a gente se esqueça facilmente que as rendições secretas de Oslo tenham sido, em si, uma conspiração sem qualquer base legal. Pobre e velha Oslo, sempre pensei! O que Oslo fez para merecer isso? Foi o acordo da Casa Branca que selou o tratado dúbio e absurdo — pelo qual os refugiados, as fronteiras, as colônias israelenses e mesmo o plano de metas foram adiados até que não pudessem mais ser negociados.
E como nos esquecemos facilmente do gramado da Casa Branca — embora, sim, lembremos das imagens — no qual Clinton citou o Corão e Arafat escolheu dizer: “Obrigado, obrigado, obrigado sr. presidente”. E como chamamos esse embuste depois? Sim, foi um ‘momento histórico’! Foi? Foi mesmo?
Vocês se lembram como Arafat se referia a ele? “A paz dos bravos”. Mas não me lembro que algum de nós tenha apontado que a frase “paz dos bravos” foi usada originalmente pelo general De Gaulle no fim da guerra [de independência] da Argélia. Os franceses perderam a guerra na Argélia. Nós não nos demos conta desta ironia extraordinária.
Vemos isso de novo, hoje. Nós, jornalistas ocidentais — usados outra vez mais pelos nossos líderes — temos noticiado como os felizes generais do Afeganistão tem dito que a guerra lá só pode ser vencida como parte de uma campanha “pelos corações e mentes” [dos afegãos]. Ninguém fez aos generais a pergunta óbvia: esta mesma frase não foi usada em relação aos civis vietnamitas na guerra do Vietnã? E nós não — nós, o Ocidente – não perdemos a guerra do Vietnã?
Ainda assim nós, jornalistas ocidentais, estamos usando — no Afeganistão — a frase “corações e mentes” em nossas reportagens, como se fosse uma frase nova no dicionário e não um símbolo de derrota usado pela segunda vez em quatro décadas, em alguns casos usada pelos mesmos soldados que venderam esta bobagem — quando eram mais novos — no Vietnã.
Olhem agora para as palavras que nós recentemente ‘adotamos’ vindas dos militares dos Estados Unidos.
Quando nós ocidentais descobrimos que “nossos” inimigos — a Al-Qaeda, por exemplo, ou o talibã — explodiram mais bombas e patrocinaram mais ataques do que o esperado, chamamos isso de “um salto da violência”. Ah, sim, um ’salto’.
Um ’salto’ de violência, senhoras e senhores, foi uma frase primeiro usada, de acordo com meus arquivos, por um general na Zona Verde de Bagdá em 2004 [inicialmente quartel-general da ocupação dos Estados Unidos no Iraque]. No entanto, nós usamos a frase agora, discutimos a partir dela, replicamos como se fosse nossa. Estamos usando, literalmente, uma expressão criada para nós pelo Pentágono. Um “salto”, naturalmente, significa algo que sobe rapidamente e que em seguida cai rapidamente. Um ’salto’, assim sendo, evita o uso do terrível “aumento da violência” — já que um aumento, senhoras e senhores, pode não ser seguido por uma redução posteriormente.
De novo, quando os generais dos Estados Unidos se referem a um repentino aumento de suas forças para um ataque contra Fallujah ou o centro de Bagdá ou Kandahar — um movimento em massa de soldados trazidos para países muçulmanos aos milhares — eles chamam isso de ’surge’. E um ’surge’, como um tsunami ou qualquer outro fenômeno natural, pode ter efeitos devastadores. O que esses ’surges’ são, na verdade — para usar as palavras verdadeiras do jornalismo sério — são reforços. E reforços são mandados para as guerras quando os exércitos estão perdendo essas guerras. Mas nossos meninos e meninas nos jornais e nas emissoras de TV estão falando em ’surges’ sem atribuir isso ao Pentágono! O Pentágono ganha de novo.
Enquanto isso, o ‘processo de paz’ desabou. Assim nossos líderes — nós gostamos de chamá-los de ‘jogadores-chave’ — estão tentando de novo. Assim o processo tem de ser colocado ‘nos trilhos’. Era um trem, como vocês notaram. Os vagões tinham saído dos trilhos. E assim o trem tem de ser posto de novo ‘nos trilhos’. Foi o governo Clinton o primeiro a usar a frase, depois os israelenses, depois a BBC. Mas havia um problema quando o ‘processo de paz’ foi colocado de novo ‘nos trilhos’ — e ainda assim não andou. E então produzimos o ‘mapa do caminho’ — tocado por um quarteto liderado pelo nosso amigo de Deus, Tony Blair, ao qual — em uma obscenidade da História — agora nos referemimos como ‘enviado da paz’.
Mas o ‘mapa do caminho’ não está funcionando. E agora, notem, o velho ‘processo de paz’ está de volta aos jornais e às telas de TV. Dois dias atrás, na CNN, um destes velhos chatos que os meninos e meninas da TV chamam de ‘experts’ — falarei deles em um momento — nos disse de novo que o ‘processo de paz’ está sendo colocado ‘nos trilhos’ por causa do início de ‘conversas indiretas’ entre israelenses e palestinos.
Senhoras e senhores, não são apenas clichês — isso é jornalismo absurdo. Não existe mais batalha entre o poder e a mídia. Através da linguagem, nós nos tornamos eles. Talvez o problema advenha de que a gente não pensa mais por conta própria por não ler livros. Os árabes ainda lêem livros — não estou falando aqui sobre a taxa de analfabetismo em países árabes — mas não estou certo de que no Ocidente a gente ainda leia livros. Eu geralmente mando mensagens pelo telefone e descubro que tenho de passar dez minutos repetindo à secretária algumas centenas de palavras. Elas não sabem soletrar.
Eu estava no avião um dia destes, voando de Paris a Beirute — um vôo de cerca de 3 horas e 45 minutos — e a mulher sentada ao lado estava lendo um livro em francês sobre a história da Segunda Guerra Mundial. Ela mudava de página depois de alguns segundos. Acabou o livro antes do pouso em Beirute! E de repente me dei conta de que ela não estava lendo o livro, estava surfando nas páginas! Tinha perdido a habilidade do que costumo chamar de ‘leitura profunda’. Meramente usamos as primeiras palavras que aparecem…
Deixe-me mostrar outro pedaço da covardia midiática que faz os meus dentes de 63 anos de idade rangerem depois de 34 anos comendo humus e tahina no Oriente Médio.
Somos informados, em tantas análises, que precisamos lidar no Oriente Médio com ‘narrativas que competem’. Que meigo. Não há justiça, nem injustiça, apenas algumas pessoas que nos contam histórias diferentes. ‘Narrativas que competem’ agora aparece regularmente na imprensa britânica. A frase é uma espécie — ou subespécie — da falsa linguagem da antropologia. Nega a possibilidade de que um grupo de pessoas — no Oriente Médio, por exemplo — seja ocupado, enquanto outro grupo de pessoas promove a ocupação. Novamente, não há justiça, injustiça, não-opressão ou opressão, apenas amigáveis ‘narrativas que competem’, um jogo de futebol, se quiserem, um campo neutro já que os dois lados estão — não estão? — ‘em competição’. E os dois lados merecem tempo igual em todas as reportagens.
E assim uma ‘ocupação’ pode se tornar uma ‘disputa’. E assim um ‘muro’ pode se tornar uma ‘cerca’ ou uma ‘barreira de segurança’. E assim a colonização israelense de terra árabe contrária a todas as leis internacionais se torna ‘acampamentos’ ou ‘postos’ ou ‘vizinhanças judaicas’.
Vocês não vão se surpreender ao descobrir que foi Colin Powell, em seu estrelato sem poder no posto de secretário de Estado de George W. Bush, que disse a diplomatas americanos no Oriente Médio que eles deveriam se referir à terra ocupada dos palestinos como ‘terra disputada’ — o que foi bom o suficiente para a maior parte da mídia americana.
Fiquem de olho na ‘narrativa que compete’, senhoras e senhores. Não há ‘narrativas que competem’, naturalmente, entre os militares dos Estados Unidos e o talibã. Quando houver, no entanto, vocês saberão que o Ocidente perdeu. Mas vou dar um exemplo pessoal para demonstrar como as ‘narrativas que competem’ evaporam.
No ano passado, fiz uma palestra em Toronto para marcar os 95 anos do genocídio armênio de 1915, o assassinato em massa deliberado de um milhão e meio de cristãos armênios por milícias e pelo exército otomano da Turquia. Antes da minha palestra, fui entrevistado na tv canadense, a CTV, que também é dona do jornal Toronto Globe and Mail. Desde o início, notei que minha entrevistadora tinha um problema. O Canadá tem uma grande comunidade armênia. Mas Toronto também tem uma grande comunidade turca. E os turcos, como o Globe and Mail sempre diz, ‘negam calorosamente’ que tenha havido genocídio. E assim a entrevistadora chamou o genocídio de “massacres mortais”.
Naturalmente que notei este problema específico de cara. Ela não podia chamar os massacres de ‘genocídio’ porque a comunidade turca se sentiria ultrajada. Mas, igualmente, ela sentiu que ‘massacre’ sozinho — especialmente com as fotos cruéis que serviam de cenário no estúdio, de armênios mortos — não seria suficiente para definir um milhão e meio de seres humanos assassinados. Daí os ‘massacres mortais’. Que estranho!!! Se existem massacres ‘mortais’, existem massacres que não são ‘mortais’, nos quais as vítimas saem com vida? Foi tautologia ridícula.
No fim, contei este pequeno caso de covardia jornalística na palestra, para minha audiência armênia, na qual também havia executivos da CTV. Uma hora depois de minha palestra, o armênio que promoveu o encontro recebeu uma mensagem de texto de um repórter da CTV. “Cagar na CTV não tinha nada a ver”, o repórter reclamou. Duvido, pessoalmente, que a palavra ‘cagar’ seja usada na CTV. Mas ‘genocídio’ também não é. Foi assim que as ‘narrativas que competem’ explodiram.
Sim, o uso da linguagem do poder — de suas palavras e frases — é comum entre nós. Quantas vezes ouvi de repórteres ocidentais sobre ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão? Eles estão se referindo, naturalmente, a vários grupos árabes que supostamente ajudam o talibã. Ouvimos a mesma história no Iraque. Sauditas, jordanianos, palestinos, combatentes chechenos, naturalmente. Os generais os chamavam de ‘combatentes estrangeiros’. E assim, imediatamente, fizemos o mesmo. Chamá-los de ‘combatentes estrangeiros’ significava que são uma força de invasão. Mas nunca — nunca — ouvi uma estação de TV ocidental se referir ao fato de que existem pelo menos 150 mil ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão. E que a maioria deles, senhoras e senhores, veste uniformes dos Estados Unidos e da Otan!
Da mesma forma, a frase perniciosa ‘Af-Pak’ — racista e politicamente desonesta como é — é usada por repórteres quando foi originalmente uma criação do Departamento de Estado, no dia em que Richard Holbrooke foi indicado mediador dos Estados Unidos no Afeganistão e no Paquistão. Mas a frase evita o uso da palavra ‘Índia’, cuja influência no Afeganistão e cuja presença no Afeganistão é parte vital da história. Além disso, ‘Af-Pak’ — ao apagar a Índia — eficazmente apaga toda a crise de Kashmir do conflito no sudeste da Ásia. E assim o Paquistão ficou sem qualquer papel na política dos Estados Unidos para Kashmir — afinal, Holbrooke foi nomeado para o ‘Af-Pak’, especificamente proibido de discutir Kashmir. E assim a frase ‘Af-Pak’, que nega totalmente a tragédia do Kashmir — muitas ‘narrativas que competem’, quem sabe? — significa que quando nós jornalistas usamos a mesma frase, ‘Af-Pak’ — que com certeza foi criada para nós — estamos fazendo o trabalho do Departamento de Estado americano.
Agora olhemos para a História. Nossos leitores amam História. Mais que tudo, eles amam a Segunda Guerra Mundial. Em 2003, George W. Bush pensou que era Churchill e George W. Bush. Na verdade, Bush gastou a guerra do Vietnã protegendo os céus do Texas dos vietcongs [Nota do Viomundo: Durante a guerra do Vietnã, Bush filho evitou sua convocação servindo à Força Aérea americana em uma base do Texas].
Mas agora, em 2003, Bush estava enfrentando os ‘apaziguadores’ que não queriam guerra com o Saddam que era, naturalmente, o “Hitler do [rio] Tigre”. Os ‘apaziguadores’ eram os britânicos que não queriam enfrentar a Alemanha nazista em 1938. Blair, naturalmente, também experimentou a casaca de Churchill. Ele não era ‘apaziguador’. Os Estados Unidos eram os aliados mais antigo do Reino Unido — Blair proclamou — e Bush e Blair lembraram aos jornalistas que os Estados Unidos estavam ombro a ombra com o Reino Unido quando este precisou de ajuda, em 1940.
Mas nada disso era verdade.
O mais antigo aliado do Reino Unido não foram os Estados Unidos. Foi Portugal, um estado fascista que ficou neutro durante a Segunda Guerra. Somente meu jornal, o Independent, notou isso.
Nem os Estados Unidos lutaram ao lado do Reino Unido na hora que os britânicos precisaram, em 1940, quando Hitler ameaçou invasão e a força aérea alemã bombardeou Londres. Não, em 1940 os Estados Unidos aproveitavam um período lucrativo de neutralidade — e não se juntaram à guerra do Reino Unido a não ser depois que o Japão atacou a base de Pearl Harbor em dezembro de 1941. Doeu!
Em 1956, li outro dia, Eden chamou Nasser de ‘Mussolini do Nilo’. Um erro. Nasser era amado pelos árabes, não odiado como Mussolini era pela maioria dos africanos, especialmente os líbios árabes. O paralelo com Mussolini não foi questionado pela mídia britânica. E todos sabemos o que aconteceu em Suez em 1956.
[Nota do Viomundo: Anthony Eden foi ministro britânico das Relações Exteriores; Gamal Abdel Nasser, líder nacionalista do Egito; em 1956 Nasser nacionalizou o canal de Suez, ao que se seguiu um ataque militar de Reino Unido, França e Israel, que só fracassou politicamente por pressão de Estados Unidos e União Soviética]
Sim, quando se trata de História, nós jornalistas simplesmente deixamos que presidentes e primeiros-ministros nos dêem um balão.
Hoje, no momento em que estrangeiros tentam levar comida e combustível pelo mar a palestinos famintos em Gaza, nós jornalistas deveríamos relembrar nossos telespectadores e leitores de um dia faz-tempo quando os Estados Unidos e o Reino Unido sairam em socorro de um povo cercado, levando comida e combustível — foi assim que alguns de nossos próprios militares morreram — para uma população faminta.
Aquela população tinha sido cercada por uma cerca construída por um exército brutal que queria torná-los submissos pela fome. O exército era o russo. A cidade era Berlim. O muro viria mais tarde. O povo ajudado tinha sido nosso inimigo há apenas três anos. Ainda assim fizemos uma ponte-aérea para salvá-los. Agora olhem para Gaza. Que jornalista ocidental — e amamos paralelos históricos — já mencionou Berlim de 1948 no contexto de Gaza?
Olhem para exemplos mais recentes. Saddam tinha ‘armas de destruição em massa’ — dá para encaixar ‘WMD’ numa manchete — mas naturalmente, ele não tinha e a imprensa americana passou por momentos embaraçosos de auto-condenação. Como pudemos ser enganados, o New York Times se perguntou? O jornal concluiu que não tinha desafiado suficientemente o governo Bush.
E agora o mesmo jornal está suavemente — muito suavemente — batendo os bumbos de guerra no Irã. O Irã está trabalhando com ‘WMD’. E depois da guerra, se houver guerra, haverá de novo a auto-condenação, se não houver projetos de armas nucleares no Irã.
Ainda assim o lado mais perigoso de nosso uso da semântica de guerra, nosso uso das palavras do poder — embora não seja uma guerra, já que nós nos rendemos — é que isso nos isola de nossos telespectadores e leitores. Eles não são estúpidos. Eles entendem as palavras e, em muitos casos — temo — melhor que nós. Eles sabem que estamos afogando nosso vocabulário na linguagem dos generais e presidentes, das assim-chamadas elites, na arrogância dos experts do Brookings Institute, ou daqueles da Rand Corporation ou o que eu chamo de ‘tink thanks’. Então nós nos tornanos parte desta linguagem. Aqui estão, por exemplo, algumas palavras perigosas:
- power players
- ativismo
- atores não-estatais
- jogadores-chave
- jogadores geoestratégicos
- narrativas
- jogadores externos
- processo de paz
- soluções significativas
- Af-Pak
- agentes de mudanças (quem quer que sejam estas criaturas sinistras)
Não sou um convidado regular da Al Jazeera. Isso me dá liberdade para falar. Alguns anos atrás, quando Wadah Khanfar (agora diretor-geral da Al Jazeera) era o homem da emissora em Bagdá, os militares dos Estados Unidos começaram uma campanha de boatos contra o escritório de Wadah, alegando — mentirosamente — que a Al Jazeera fazia o jogo da Al Qaeda porque estava recebendo vídeos de ataques contra forças dos Estados Unidos. Fui a Fallujah para checar isso. Wadah estava 100% correto. A Al Qaeda estava entregando os vídeos de suas emboscadas sem qualquer aviso, colocando nas caixas de correio. Os americanos estavam mentindo. O Wadah, naturalmente, está pensando o que virá em seguida…
Bem, devo dizer a vocês, senhoras e senhores, que todas as ‘palavras perigosas’ que acabei de ler para vocês — de jogadores-chave a narrativas a processo de paz a Af-Pak — estão no programa de nove páginas da Al Jazeera para este forum. Não estou condenando a Al Jazeera por isso, senhoras e senhores. Porque este vocabulário não é adotado como resultado de aliança política. É uma infecção da qual todos sofremos. Eu mesmo usei ‘processo de paz’ algumas vezes, embora entre aspas, o que não dá para fazer na TV, mas sim, é um contágio.
E quando usamos estas palavras nós nos tornamos aliados do poder e das elites que mandam no mundo sem medo de serem desafiadas pela mídia. A Al Jazeera fez mais que qualquer rede de televisão que conheço para desafiar a autoridade, tanto no Oriente Médio quanto no Ocidente. (Não estou usando ‘desafio’ como ‘problema’, mas como ‘enfrento muitos desafios’, dito pelo general McCrystal).
Como escapamos desta doença? Fiquem de olho nos corretores de ortografia de seus laptops, nos sonhos dos subeditores com palavras de uma sílaba, parem de usar a Wikipedia. E leiam livros, com páginas de papel, que significam leitura profunda. Livros de História, especialmente.
A Al Jazeera está fazendo uma boa cobertura da frota — o comboio de barcos — que vai a Gaza. Não acredito que sejam um bando de anti-israelenses. Penso que este comboio internacional está a caminho porque as pessoas a bordo dos navios — de todo o mundo — estão tentando fazer o que líderes supostamente humanitários deixaram de fazer. Estão levando comida e combustível e equipamento hospitalar para aqueles que sofrem. Em qualquer outro contexto, os Obamas e os Sarkozys e os Camerons estariam competindo para mandar fuzileiros navais, marinheiros reais ou forças francesas com ajuda humanitária — como Clinton fez na Somália. O divino Blair não acreditava em ‘intervenção’ humanitária em Kosovo e Serra Leoa?
Em circunstâncias normais, o Blair colocaria o pé sobre a fronteira. Mas não. Não ousamos ofender Israel. E assim pessoas comuns estão tentando fazer o que os líderes não fizeram. Os líderes fracassaram. E a mídia? Estamos mostrando imagens de documentários da ponte aérea que salvou Berlim? Ou das tentativas de Clinton de resgatar pessoas que morriam de fome na Somália ou da ‘intervenção’humanitária de Blair nos Balcãs, simplesmente para relembrar nossos leitores e telespectadores — e aqueles pessoas naqueles barcos — que isso é hipocrisia em escala maciça?
O diabo que estamos! Nós preferimos ‘narrativas que competem’. Poucos políticos querem que a viagem até Gaza seja completada — seja o seu fim bem sucedido, uma farsa ou trágico. Nós acreditamos no ‘processo de paz’, no ‘mapa do caminho’. Mantenham a ‘cerca’ em torno dos palestinos. Deixem os ‘jogadores-chave’ encontrar uma solução. Senhoras e senhores, não sou seu ‘key-speaker’ nesta manhã. Sou seu convidado e agradeço pela paciência que tiveram em me ouvir.
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O correspondente do jornal britânico The Independent no Oriente Médio, Robert Fisk, fez o seguinte discurso no quinto fórum anual da emissora árabe Al Jazeera, em 23 de maio:
Poder e mídia não são apenas relações amigáveis entre jornalistas e líderes políticos, entre editores e presidentes. Não são apenas sobre as relações parasitárias e de osmose entre repórteres supostamente honrados e o eixo do poder que existe entre a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Pentágono, a Downing Street e os ministérios das Relações Exteriores e da Defesa [britânicos]. No contexto Ocidental, a relação entre poder e mídia diz respeito a palavras — é sobre o uso de palavras. É sobre semântica. É sobre o emprego de frases e suas origens. E é sobre o mau uso da História e sobre nossa ignorância da História. Mais e mais, hoje em dia, nós jornalistas nos tornamos prisioneiros da linguagem do poder.
Isso acontece porque não nos preocupamos com a linguística? É porque os laptops ‘corrigem’ nossa ortografia, ‘limpam’ nossa gramática de forma a que nossas sentenças frequentemente se tornem idênticas às de nossos líderes? É por isso que os editoriais de jornais hoje em dia soam como se fossem discursos políticos?
Deixem-me demonstrar o que quero dizer.
Por duas décadas as lideranças dos Estados Unidos e do Reino Unido — e dos israelenses e palestinos — tem usado as palavras “processo de paz” para definir o acordo sem futuro, inadequado e desonroso que permite aos Estados Unidos e a Israel fazerem o que bem entenderem com os pedaços de terra que deveriam ser dados a um povo sob ocupação.
Eu primeiro me perguntei sobre esta expressão e sobre a origem dela na época de Oslo [Nota do Viomundo: A capital da Noruega foi sede das negociações que resultaram num tratado entre israelenses e palestinos celebrado na Casa Branca com as presenças do presidente Bill Clinton, do líder palestino Yasser Arafat e do primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin, tratado que na prática fracassou] — embora a gente se esqueça facilmente que as rendições secretas de Oslo tenham sido, em si, uma conspiração sem qualquer base legal. Pobre e velha Oslo, sempre pensei! O que Oslo fez para merecer isso? Foi o acordo da Casa Branca que selou o tratado dúbio e absurdo — pelo qual os refugiados, as fronteiras, as colônias israelenses e mesmo o plano de metas foram adiados até que não pudessem mais ser negociados.
E como nos esquecemos facilmente do gramado da Casa Branca — embora, sim, lembremos das imagens — no qual Clinton citou o Corão e Arafat escolheu dizer: “Obrigado, obrigado, obrigado sr. presidente”. E como chamamos esse embuste depois? Sim, foi um ‘momento histórico’! Foi? Foi mesmo?
Vocês se lembram como Arafat se referia a ele? “A paz dos bravos”. Mas não me lembro que algum de nós tenha apontado que a frase “paz dos bravos” foi usada originalmente pelo general De Gaulle no fim da guerra [de independência] da Argélia. Os franceses perderam a guerra na Argélia. Nós não nos demos conta desta ironia extraordinária.
Vemos isso de novo, hoje. Nós, jornalistas ocidentais — usados outra vez mais pelos nossos líderes — temos noticiado como os felizes generais do Afeganistão tem dito que a guerra lá só pode ser vencida como parte de uma campanha “pelos corações e mentes” [dos afegãos]. Ninguém fez aos generais a pergunta óbvia: esta mesma frase não foi usada em relação aos civis vietnamitas na guerra do Vietnã? E nós não — nós, o Ocidente – não perdemos a guerra do Vietnã?
Ainda assim nós, jornalistas ocidentais, estamos usando — no Afeganistão — a frase “corações e mentes” em nossas reportagens, como se fosse uma frase nova no dicionário e não um símbolo de derrota usado pela segunda vez em quatro décadas, em alguns casos usada pelos mesmos soldados que venderam esta bobagem — quando eram mais novos — no Vietnã.
Olhem agora para as palavras que nós recentemente ‘adotamos’ vindas dos militares dos Estados Unidos.
Quando nós ocidentais descobrimos que “nossos” inimigos — a Al-Qaeda, por exemplo, ou o talibã — explodiram mais bombas e patrocinaram mais ataques do que o esperado, chamamos isso de “um salto da violência”. Ah, sim, um ’salto’.
Um ’salto’ de violência, senhoras e senhores, foi uma frase primeiro usada, de acordo com meus arquivos, por um general na Zona Verde de Bagdá em 2004 [inicialmente quartel-general da ocupação dos Estados Unidos no Iraque]. No entanto, nós usamos a frase agora, discutimos a partir dela, replicamos como se fosse nossa. Estamos usando, literalmente, uma expressão criada para nós pelo Pentágono. Um “salto”, naturalmente, significa algo que sobe rapidamente e que em seguida cai rapidamente. Um ’salto’, assim sendo, evita o uso do terrível “aumento da violência” — já que um aumento, senhoras e senhores, pode não ser seguido por uma redução posteriormente.
De novo, quando os generais dos Estados Unidos se referem a um repentino aumento de suas forças para um ataque contra Fallujah ou o centro de Bagdá ou Kandahar — um movimento em massa de soldados trazidos para países muçulmanos aos milhares — eles chamam isso de ’surge’. E um ’surge’, como um tsunami ou qualquer outro fenômeno natural, pode ter efeitos devastadores. O que esses ’surges’ são, na verdade — para usar as palavras verdadeiras do jornalismo sério — são reforços. E reforços são mandados para as guerras quando os exércitos estão perdendo essas guerras. Mas nossos meninos e meninas nos jornais e nas emissoras de TV estão falando em ’surges’ sem atribuir isso ao Pentágono! O Pentágono ganha de novo.
Enquanto isso, o ‘processo de paz’ desabou. Assim nossos líderes — nós gostamos de chamá-los de ‘jogadores-chave’ — estão tentando de novo. Assim o processo tem de ser colocado ‘nos trilhos’. Era um trem, como vocês notaram. Os vagões tinham saído dos trilhos. E assim o trem tem de ser posto de novo ‘nos trilhos’. Foi o governo Clinton o primeiro a usar a frase, depois os israelenses, depois a BBC. Mas havia um problema quando o ‘processo de paz’ foi colocado de novo ‘nos trilhos’ — e ainda assim não andou. E então produzimos o ‘mapa do caminho’ — tocado por um quarteto liderado pelo nosso amigo de Deus, Tony Blair, ao qual — em uma obscenidade da História — agora nos referemimos como ‘enviado da paz’.
Mas o ‘mapa do caminho’ não está funcionando. E agora, notem, o velho ‘processo de paz’ está de volta aos jornais e às telas de TV. Dois dias atrás, na CNN, um destes velhos chatos que os meninos e meninas da TV chamam de ‘experts’ — falarei deles em um momento — nos disse de novo que o ‘processo de paz’ está sendo colocado ‘nos trilhos’ por causa do início de ‘conversas indiretas’ entre israelenses e palestinos.
Senhoras e senhores, não são apenas clichês — isso é jornalismo absurdo. Não existe mais batalha entre o poder e a mídia. Através da linguagem, nós nos tornamos eles. Talvez o problema advenha de que a gente não pensa mais por conta própria por não ler livros. Os árabes ainda lêem livros — não estou falando aqui sobre a taxa de analfabetismo em países árabes — mas não estou certo de que no Ocidente a gente ainda leia livros. Eu geralmente mando mensagens pelo telefone e descubro que tenho de passar dez minutos repetindo à secretária algumas centenas de palavras. Elas não sabem soletrar.
Eu estava no avião um dia destes, voando de Paris a Beirute — um vôo de cerca de 3 horas e 45 minutos — e a mulher sentada ao lado estava lendo um livro em francês sobre a história da Segunda Guerra Mundial. Ela mudava de página depois de alguns segundos. Acabou o livro antes do pouso em Beirute! E de repente me dei conta de que ela não estava lendo o livro, estava surfando nas páginas! Tinha perdido a habilidade do que costumo chamar de ‘leitura profunda’. Meramente usamos as primeiras palavras que aparecem…
Deixe-me mostrar outro pedaço da covardia midiática que faz os meus dentes de 63 anos de idade rangerem depois de 34 anos comendo humus e tahina no Oriente Médio.
Somos informados, em tantas análises, que precisamos lidar no Oriente Médio com ‘narrativas que competem’. Que meigo. Não há justiça, nem injustiça, apenas algumas pessoas que nos contam histórias diferentes. ‘Narrativas que competem’ agora aparece regularmente na imprensa britânica. A frase é uma espécie — ou subespécie — da falsa linguagem da antropologia. Nega a possibilidade de que um grupo de pessoas — no Oriente Médio, por exemplo — seja ocupado, enquanto outro grupo de pessoas promove a ocupação. Novamente, não há justiça, injustiça, não-opressão ou opressão, apenas amigáveis ‘narrativas que competem’, um jogo de futebol, se quiserem, um campo neutro já que os dois lados estão — não estão? — ‘em competição’. E os dois lados merecem tempo igual em todas as reportagens.
E assim uma ‘ocupação’ pode se tornar uma ‘disputa’. E assim um ‘muro’ pode se tornar uma ‘cerca’ ou uma ‘barreira de segurança’. E assim a colonização israelense de terra árabe contrária a todas as leis internacionais se torna ‘acampamentos’ ou ‘postos’ ou ‘vizinhanças judaicas’.
Vocês não vão se surpreender ao descobrir que foi Colin Powell, em seu estrelato sem poder no posto de secretário de Estado de George W. Bush, que disse a diplomatas americanos no Oriente Médio que eles deveriam se referir à terra ocupada dos palestinos como ‘terra disputada’ — o que foi bom o suficiente para a maior parte da mídia americana.
Fiquem de olho na ‘narrativa que compete’, senhoras e senhores. Não há ‘narrativas que competem’, naturalmente, entre os militares dos Estados Unidos e o talibã. Quando houver, no entanto, vocês saberão que o Ocidente perdeu. Mas vou dar um exemplo pessoal para demonstrar como as ‘narrativas que competem’ evaporam.
No ano passado, fiz uma palestra em Toronto para marcar os 95 anos do genocídio armênio de 1915, o assassinato em massa deliberado de um milhão e meio de cristãos armênios por milícias e pelo exército otomano da Turquia. Antes da minha palestra, fui entrevistado na tv canadense, a CTV, que também é dona do jornal Toronto Globe and Mail. Desde o início, notei que minha entrevistadora tinha um problema. O Canadá tem uma grande comunidade armênia. Mas Toronto também tem uma grande comunidade turca. E os turcos, como o Globe and Mail sempre diz, ‘negam calorosamente’ que tenha havido genocídio. E assim a entrevistadora chamou o genocídio de “massacres mortais”.
Naturalmente que notei este problema específico de cara. Ela não podia chamar os massacres de ‘genocídio’ porque a comunidade turca se sentiria ultrajada. Mas, igualmente, ela sentiu que ‘massacre’ sozinho — especialmente com as fotos cruéis que serviam de cenário no estúdio, de armênios mortos — não seria suficiente para definir um milhão e meio de seres humanos assassinados. Daí os ‘massacres mortais’. Que estranho!!! Se existem massacres ‘mortais’, existem massacres que não são ‘mortais’, nos quais as vítimas saem com vida? Foi tautologia ridícula.
No fim, contei este pequeno caso de covardia jornalística na palestra, para minha audiência armênia, na qual também havia executivos da CTV. Uma hora depois de minha palestra, o armênio que promoveu o encontro recebeu uma mensagem de texto de um repórter da CTV. “Cagar na CTV não tinha nada a ver”, o repórter reclamou. Duvido, pessoalmente, que a palavra ‘cagar’ seja usada na CTV. Mas ‘genocídio’ também não é. Foi assim que as ‘narrativas que competem’ explodiram.
Sim, o uso da linguagem do poder — de suas palavras e frases — é comum entre nós. Quantas vezes ouvi de repórteres ocidentais sobre ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão? Eles estão se referindo, naturalmente, a vários grupos árabes que supostamente ajudam o talibã. Ouvimos a mesma história no Iraque. Sauditas, jordanianos, palestinos, combatentes chechenos, naturalmente. Os generais os chamavam de ‘combatentes estrangeiros’. E assim, imediatamente, fizemos o mesmo. Chamá-los de ‘combatentes estrangeiros’ significava que são uma força de invasão. Mas nunca — nunca — ouvi uma estação de TV ocidental se referir ao fato de que existem pelo menos 150 mil ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão. E que a maioria deles, senhoras e senhores, veste uniformes dos Estados Unidos e da Otan!
Da mesma forma, a frase perniciosa ‘Af-Pak’ — racista e politicamente desonesta como é — é usada por repórteres quando foi originalmente uma criação do Departamento de Estado, no dia em que Richard Holbrooke foi indicado mediador dos Estados Unidos no Afeganistão e no Paquistão. Mas a frase evita o uso da palavra ‘Índia’, cuja influência no Afeganistão e cuja presença no Afeganistão é parte vital da história. Além disso, ‘Af-Pak’ — ao apagar a Índia — eficazmente apaga toda a crise de Kashmir do conflito no sudeste da Ásia. E assim o Paquistão ficou sem qualquer papel na política dos Estados Unidos para Kashmir — afinal, Holbrooke foi nomeado para o ‘Af-Pak’, especificamente proibido de discutir Kashmir. E assim a frase ‘Af-Pak’, que nega totalmente a tragédia do Kashmir — muitas ‘narrativas que competem’, quem sabe? — significa que quando nós jornalistas usamos a mesma frase, ‘Af-Pak’ — que com certeza foi criada para nós — estamos fazendo o trabalho do Departamento de Estado americano.
Agora olhemos para a História. Nossos leitores amam História. Mais que tudo, eles amam a Segunda Guerra Mundial. Em 2003, George W. Bush pensou que era Churchill e George W. Bush. Na verdade, Bush gastou a guerra do Vietnã protegendo os céus do Texas dos vietcongs [Nota do Viomundo: Durante a guerra do Vietnã, Bush filho evitou sua convocação servindo à Força Aérea americana em uma base do Texas].
Mas agora, em 2003, Bush estava enfrentando os ‘apaziguadores’ que não queriam guerra com o Saddam que era, naturalmente, o “Hitler do [rio] Tigre”. Os ‘apaziguadores’ eram os britânicos que não queriam enfrentar a Alemanha nazista em 1938. Blair, naturalmente, também experimentou a casaca de Churchill. Ele não era ‘apaziguador’. Os Estados Unidos eram os aliados mais antigo do Reino Unido — Blair proclamou — e Bush e Blair lembraram aos jornalistas que os Estados Unidos estavam ombro a ombra com o Reino Unido quando este precisou de ajuda, em 1940.
Mas nada disso era verdade.
O mais antigo aliado do Reino Unido não foram os Estados Unidos. Foi Portugal, um estado fascista que ficou neutro durante a Segunda Guerra. Somente meu jornal, o Independent, notou isso.
Nem os Estados Unidos lutaram ao lado do Reino Unido na hora que os britânicos precisaram, em 1940, quando Hitler ameaçou invasão e a força aérea alemã bombardeou Londres. Não, em 1940 os Estados Unidos aproveitavam um período lucrativo de neutralidade — e não se juntaram à guerra do Reino Unido a não ser depois que o Japão atacou a base de Pearl Harbor em dezembro de 1941. Doeu!
Em 1956, li outro dia, Eden chamou Nasser de ‘Mussolini do Nilo’. Um erro. Nasser era amado pelos árabes, não odiado como Mussolini era pela maioria dos africanos, especialmente os líbios árabes. O paralelo com Mussolini não foi questionado pela mídia britânica. E todos sabemos o que aconteceu em Suez em 1956.
[Nota do Viomundo: Anthony Eden foi ministro britânico das Relações Exteriores; Gamal Abdel Nasser, líder nacionalista do Egito; em 1956 Nasser nacionalizou o canal de Suez, ao que se seguiu um ataque militar de Reino Unido, França e Israel, que só fracassou politicamente por pressão de Estados Unidos e União Soviética]
Sim, quando se trata de História, nós jornalistas simplesmente deixamos que presidentes e primeiros-ministros nos dêem um balão.
Hoje, no momento em que estrangeiros tentam levar comida e combustível pelo mar a palestinos famintos em Gaza, nós jornalistas deveríamos relembrar nossos telespectadores e leitores de um dia faz-tempo quando os Estados Unidos e o Reino Unido sairam em socorro de um povo cercado, levando comida e combustível — foi assim que alguns de nossos próprios militares morreram — para uma população faminta.
Aquela população tinha sido cercada por uma cerca construída por um exército brutal que queria torná-los submissos pela fome. O exército era o russo. A cidade era Berlim. O muro viria mais tarde. O povo ajudado tinha sido nosso inimigo há apenas três anos. Ainda assim fizemos uma ponte-aérea para salvá-los. Agora olhem para Gaza. Que jornalista ocidental — e amamos paralelos históricos — já mencionou Berlim de 1948 no contexto de Gaza?
Olhem para exemplos mais recentes. Saddam tinha ‘armas de destruição em massa’ — dá para encaixar ‘WMD’ numa manchete — mas naturalmente, ele não tinha e a imprensa americana passou por momentos embaraçosos de auto-condenação. Como pudemos ser enganados, o New York Times se perguntou? O jornal concluiu que não tinha desafiado suficientemente o governo Bush.
E agora o mesmo jornal está suavemente — muito suavemente — batendo os bumbos de guerra no Irã. O Irã está trabalhando com ‘WMD’. E depois da guerra, se houver guerra, haverá de novo a auto-condenação, se não houver projetos de armas nucleares no Irã.
Ainda assim o lado mais perigoso de nosso uso da semântica de guerra, nosso uso das palavras do poder — embora não seja uma guerra, já que nós nos rendemos — é que isso nos isola de nossos telespectadores e leitores. Eles não são estúpidos. Eles entendem as palavras e, em muitos casos — temo — melhor que nós. Eles sabem que estamos afogando nosso vocabulário na linguagem dos generais e presidentes, das assim-chamadas elites, na arrogância dos experts do Brookings Institute, ou daqueles da Rand Corporation ou o que eu chamo de ‘tink thanks’. Então nós nos tornanos parte desta linguagem. Aqui estão, por exemplo, algumas palavras perigosas:
- power players
- ativismo
- atores não-estatais
- jogadores-chave
- jogadores geoestratégicos
- narrativas
- jogadores externos
- processo de paz
- soluções significativas
- Af-Pak
- agentes de mudanças (quem quer que sejam estas criaturas sinistras)
Não sou um convidado regular da Al Jazeera. Isso me dá liberdade para falar. Alguns anos atrás, quando Wadah Khanfar (agora diretor-geral da Al Jazeera) era o homem da emissora em Bagdá, os militares dos Estados Unidos começaram uma campanha de boatos contra o escritório de Wadah, alegando — mentirosamente — que a Al Jazeera fazia o jogo da Al Qaeda porque estava recebendo vídeos de ataques contra forças dos Estados Unidos. Fui a Fallujah para checar isso. Wadah estava 100% correto. A Al Qaeda estava entregando os vídeos de suas emboscadas sem qualquer aviso, colocando nas caixas de correio. Os americanos estavam mentindo. O Wadah, naturalmente, está pensando o que virá em seguida…
Bem, devo dizer a vocês, senhoras e senhores, que todas as ‘palavras perigosas’ que acabei de ler para vocês — de jogadores-chave a narrativas a processo de paz a Af-Pak — estão no programa de nove páginas da Al Jazeera para este forum. Não estou condenando a Al Jazeera por isso, senhoras e senhores. Porque este vocabulário não é adotado como resultado de aliança política. É uma infecção da qual todos sofremos. Eu mesmo usei ‘processo de paz’ algumas vezes, embora entre aspas, o que não dá para fazer na TV, mas sim, é um contágio.
E quando usamos estas palavras nós nos tornamos aliados do poder e das elites que mandam no mundo sem medo de serem desafiadas pela mídia. A Al Jazeera fez mais que qualquer rede de televisão que conheço para desafiar a autoridade, tanto no Oriente Médio quanto no Ocidente. (Não estou usando ‘desafio’ como ‘problema’, mas como ‘enfrento muitos desafios’, dito pelo general McCrystal).
Como escapamos desta doença? Fiquem de olho nos corretores de ortografia de seus laptops, nos sonhos dos subeditores com palavras de uma sílaba, parem de usar a Wikipedia. E leiam livros, com páginas de papel, que significam leitura profunda. Livros de História, especialmente.
A Al Jazeera está fazendo uma boa cobertura da frota — o comboio de barcos — que vai a Gaza. Não acredito que sejam um bando de anti-israelenses. Penso que este comboio internacional está a caminho porque as pessoas a bordo dos navios — de todo o mundo — estão tentando fazer o que líderes supostamente humanitários deixaram de fazer. Estão levando comida e combustível e equipamento hospitalar para aqueles que sofrem. Em qualquer outro contexto, os Obamas e os Sarkozys e os Camerons estariam competindo para mandar fuzileiros navais, marinheiros reais ou forças francesas com ajuda humanitária — como Clinton fez na Somália. O divino Blair não acreditava em ‘intervenção’ humanitária em Kosovo e Serra Leoa?
Em circunstâncias normais, o Blair colocaria o pé sobre a fronteira. Mas não. Não ousamos ofender Israel. E assim pessoas comuns estão tentando fazer o que os líderes não fizeram. Os líderes fracassaram. E a mídia? Estamos mostrando imagens de documentários da ponte aérea que salvou Berlim? Ou das tentativas de Clinton de resgatar pessoas que morriam de fome na Somália ou da ‘intervenção’humanitária de Blair nos Balcãs, simplesmente para relembrar nossos leitores e telespectadores — e aqueles pessoas naqueles barcos — que isso é hipocrisia em escala maciça?
O diabo que estamos! Nós preferimos ‘narrativas que competem’. Poucos políticos querem que a viagem até Gaza seja completada — seja o seu fim bem sucedido, uma farsa ou trágico. Nós acreditamos no ‘processo de paz’, no ‘mapa do caminho’. Mantenham a ‘cerca’ em torno dos palestinos. Deixem os ‘jogadores-chave’ encontrar uma solução. Senhoras e senhores, não sou seu ‘key-speaker’ nesta manhã. Sou seu convidado e agradeço pela paciência que tiveram em me ouvir.
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PHA X Noblat e o "golpe anti-Dilma"
Reproduzo artigo de Bernardo Joffily, publicado no sítio Vermelho:
Dois blogueiros com vasto público, Paulo Henrique Amorim e Ricardo Noblat, tiveram nesta terça-feira (25) um web-bate-boca sobre as chances de golpe contra a presidenciável Dilma Rousseff (PT). Noblat chamou PHA de "blogueiro ordinário", após sustentar que "há abusos suficientes para ameaçar o registro da candidatura de Dilma", mas "falta coragem" ao Tribunal Superior Eleitoral. O episódio é um bom pretexto para examinar o suposto – e cada vez mais falado – risco de golpe.
Primeiro, o resumo da ópera:
1. O jornal Folha de S.Paulo desta terça afirma que "a candidatura da ex-ministra Dilma Rousseff (PT) à Presidência caminha para ter problemas já no registro e, se eleita, na sua diplomação", pelo TSE, "por abuso de poder econômico e político". A fonte é a procuradora da República e vice-procuradora-geral eleitoral, Sandra Cureau.
2. Ricardo Noblat comenta: "Há abusos suficientes para ameaçar o registro da candidatura de Dilma, admitem dois ministros do Tribunal Superior Eleitoral ouvidos por este blog. Mas falta ao tribunal coragem para tomar qualquer medida mais drástica a esse respeito."
3. PHA reproduz a notícia e o comentário, a pedido de um internauta: "O Conversa Afiada reproduz o comentário do amigo navegante Paulo: 'PH olha essa que saiu no blog do Noblat, funcionario da Globo aliada do Serra, a tentativa de golpe já começa a rondar a oposição, TSE e mídia'".
4. Noblat, com o título "Sobre um blogueiro ordinário", repete a notícia e o cometário, omite a introdução do Conversa Afiada, mas seleciona três comentários postados por internautas (às 18h17 havia 161 no total). Diz que "eles dão a medida do grau de irresponsabilidade do titular do blog, de sua parceria com gente insana, e por extensão do seu comportamento insano".
5. PHA não passa recibo do 'ordinário'. Treplica com "Noblat tem razão: comentário é um despropósito". Admite que "o pente fino do Conversa Afiada falhou e pede desculpas a ele (Noblat) e aos leitores", avisando que os comentários foram tirados do ar.
Não há risco de golpe
E agora, o que interessa: Existe uma tentativa de golpe em curso? Há o perigo do TSE rejeitar o registro da candidatura Dilma, ou, pior, impedir sua posse caso eleita?
Sustento que não. Não há perigo de um golpe no Brasil de 2010, um "terceiro turno" truculento, violentando a vontade dos eleitores, seja a partir das Forças Armadas ou pela via do Judiciário.
O que não impede que haja "golpistas", conhecidos e ativos: não no sentido de perpetradores de um golpe real, mas de levantadores de poeira golpista. Gente que, sentindo os votos lhes escaparem por entre os dedos, julga conveniente sacudir o espantalho de uma "solução extra-eleitoral", ainda que sem pé nem cabeça.
O texto da notícia da Folha e o comentário de Noblat enquadram-se, objetivamente, nesta categoria. Paulo, o internauta que escreveu a PH, forçou a barra quando falou em "tentativa de golpe".
Noblat e a Folha falam para os seus leitores. Na ùltima enquete do Blog do Noblat (número das 21h07), uma maioria de 50,4% achava que na próxxima rodada de pesquisas o oposicionista José Serra (PSDB) abrirá "uma vantagem sobre Dilma". O Datafolha revelou no último dia 3 que Serra tem 54% dos votos dos leitores da Folha, contra 18% de... Marina Silva (PV) e 15% de Dilma. O jornal e o blogueiro oferecem a seu público o consolo de que a candidata de Lula, se vencer (como aponta a curva das pesquisas junto ao conjunto do eleitorado), o fará não só com o voto dos nordestinos, dos pobres, dos pouco escolarizados, o que para certa gente é um acinte, mas também graças a atos ilegais, abusivos, e unicamente porque "falta coragem" ao TSE. De quebra, turvam as águas, na medida do possível. Mas não a ponto de uma tentativa de golpe "de verdade".
Pressupostos de um golpe de Estado
Não há no Brasil de hoje as condições para um golpe de Estado. Este reclama antes de mais nada uma força armada que o imponha; além disso requer uma força política capaz de encabeçá-lo, a mobilização ativa ao menos uma fatia da opinião pública em seu favor e cobertura de mídia no sentido de justificá-lo.
No Brasil de 2010, o último quesito aparentemente está dado. Porém as Forças Armadas não dão o menor sinal de se prestarem a um tal papel (apesar dos resmungos esporádicos de um ou outro general de pijama). A oposição demotucana limita-se ao seu jogo de cena "judicializante". E a fatia da sociedade civil sob influência oposicionista está constrangida à defensiva pela popularidade do governo.
Não era bem assim no Brasil de 2005, no pico do 'Mensalão'. Em 2005, sim, a oposição conservadora chegou a cogitar a hipótese de um golpe. Mas mesmo então, fez as contas, consultou as pesquisas, mediu a temperatura das ruas – onde o "Fica Lula" prevalecia – e engavetou a ideia.
Tampouco era assim – vale a pena recordar – no Brasil de 1955, quando uma real tentativa de golpe quase impediu a posse do presidente eleito: Juscelino Kubitschek.
O golpe contra a posse de Juscelino
Apoiado pelo PSD, o PTB e o ilegalizado Partido Comunista do Brasil, JK vencera por pouco a eleição de 3 de outubro. Tivera apenas 400 mil votos de vantagem sobre o udenista Juarez Távora, e 36% do total (a eleição em dois turnos só surgiria 23 anos mais tarde). A UDN tentou impugnar o resultado. Alegou que seria preciso maioria absoluta, e que Juscelino vencera por ter apoio comunista. O presidente interino (pois Getúlio Vargas se suicidara e seu vice, Café Filho, adoecera), Carlos Luz, era udenófilo e apoiou a tese, com sustentação da Marinha e da Aeronáutica. Foi preciso o ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, por os tanques nas ruas do Rio para desmontar a trama.
Naquele tempo, sim, os golpes rondavam sempre o país. Os militares os consideravam quase como um direito, ou até um dever, e a direita civil os estimulava abertamente. Antes de 1955, houvera o golpe de 1937, o de 1945, o quase golpe que vitimou Getúlio em 1954. Depois, ainda haveria a tentativa de 1961 e por fim o Grande Golpe de 1964, que desandou em 21 anos de ditadura.
Três provas de fogo pós-ditadura
Um quarto de século depois do fim da ditadura, há sólidas evidências de que o Brasil é outro. A chamada Nova República passou por três provas de fogo – a doença e morte de Tancredo Neves (1985), o impeachment de Fernando Collor (1992) e a eleição de Lula (2002) – sem ameaças golpistas reais.
A eleição presidencial de outubro será a sexta de uma inédita sequência democrática ininterrupta. Graças a isso, o povo trabalhador e cidadão e eleitor pôde fazer um aprendizado que nunca antes lhe fora permitido. Um aprendizado difícil, tortuoso, por tentativa e erro, vivendo os resultados na própria carne, mas com evidentes resultados.
O tempo de Lacerda passou
A campanha deste ano será dura (espero que não "sangrenta", ao contrário do que disse ontem o presidente de honra do DEM, Jorge Bornhausen) e disputada. Ninguém pode predizer seu resultado. Porém não há espaço para nenhum desfecho da disputa que não seja o decidido em 3 de outubro (e em 24, caso seja preciso segundo turno) pelos 134 milhões de eleitores brasileiros, conforme o princípio do Parágrafo único do Artigo 1º da Constituição, de que "todo o poder emana do povo".
Até lá, com certeza vão se multiplicar na mídia notícias como a da Folha e comentários como o de Noblat. Prepare os nervos. Mas não serão tentativas de golpe e sim mera poeira golpista. Não impedirão que a candidata de Lula seja submetida às urnas e, se eleita, tome posse e governe.
Passou o tempo em que um Carlos Lacerda – 'o Corvo', mais tarde um dos complotadores contra a posse de Juscelino – podia vir a público com sua famosa tirada: “Getulio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar” (1950).
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Dois blogueiros com vasto público, Paulo Henrique Amorim e Ricardo Noblat, tiveram nesta terça-feira (25) um web-bate-boca sobre as chances de golpe contra a presidenciável Dilma Rousseff (PT). Noblat chamou PHA de "blogueiro ordinário", após sustentar que "há abusos suficientes para ameaçar o registro da candidatura de Dilma", mas "falta coragem" ao Tribunal Superior Eleitoral. O episódio é um bom pretexto para examinar o suposto – e cada vez mais falado – risco de golpe.
Primeiro, o resumo da ópera:
1. O jornal Folha de S.Paulo desta terça afirma que "a candidatura da ex-ministra Dilma Rousseff (PT) à Presidência caminha para ter problemas já no registro e, se eleita, na sua diplomação", pelo TSE, "por abuso de poder econômico e político". A fonte é a procuradora da República e vice-procuradora-geral eleitoral, Sandra Cureau.
2. Ricardo Noblat comenta: "Há abusos suficientes para ameaçar o registro da candidatura de Dilma, admitem dois ministros do Tribunal Superior Eleitoral ouvidos por este blog. Mas falta ao tribunal coragem para tomar qualquer medida mais drástica a esse respeito."
3. PHA reproduz a notícia e o comentário, a pedido de um internauta: "O Conversa Afiada reproduz o comentário do amigo navegante Paulo: 'PH olha essa que saiu no blog do Noblat, funcionario da Globo aliada do Serra, a tentativa de golpe já começa a rondar a oposição, TSE e mídia'".
4. Noblat, com o título "Sobre um blogueiro ordinário", repete a notícia e o cometário, omite a introdução do Conversa Afiada, mas seleciona três comentários postados por internautas (às 18h17 havia 161 no total). Diz que "eles dão a medida do grau de irresponsabilidade do titular do blog, de sua parceria com gente insana, e por extensão do seu comportamento insano".
5. PHA não passa recibo do 'ordinário'. Treplica com "Noblat tem razão: comentário é um despropósito". Admite que "o pente fino do Conversa Afiada falhou e pede desculpas a ele (Noblat) e aos leitores", avisando que os comentários foram tirados do ar.
Não há risco de golpe
E agora, o que interessa: Existe uma tentativa de golpe em curso? Há o perigo do TSE rejeitar o registro da candidatura Dilma, ou, pior, impedir sua posse caso eleita?
Sustento que não. Não há perigo de um golpe no Brasil de 2010, um "terceiro turno" truculento, violentando a vontade dos eleitores, seja a partir das Forças Armadas ou pela via do Judiciário.
O que não impede que haja "golpistas", conhecidos e ativos: não no sentido de perpetradores de um golpe real, mas de levantadores de poeira golpista. Gente que, sentindo os votos lhes escaparem por entre os dedos, julga conveniente sacudir o espantalho de uma "solução extra-eleitoral", ainda que sem pé nem cabeça.
O texto da notícia da Folha e o comentário de Noblat enquadram-se, objetivamente, nesta categoria. Paulo, o internauta que escreveu a PH, forçou a barra quando falou em "tentativa de golpe".
Noblat e a Folha falam para os seus leitores. Na ùltima enquete do Blog do Noblat (número das 21h07), uma maioria de 50,4% achava que na próxxima rodada de pesquisas o oposicionista José Serra (PSDB) abrirá "uma vantagem sobre Dilma". O Datafolha revelou no último dia 3 que Serra tem 54% dos votos dos leitores da Folha, contra 18% de... Marina Silva (PV) e 15% de Dilma. O jornal e o blogueiro oferecem a seu público o consolo de que a candidata de Lula, se vencer (como aponta a curva das pesquisas junto ao conjunto do eleitorado), o fará não só com o voto dos nordestinos, dos pobres, dos pouco escolarizados, o que para certa gente é um acinte, mas também graças a atos ilegais, abusivos, e unicamente porque "falta coragem" ao TSE. De quebra, turvam as águas, na medida do possível. Mas não a ponto de uma tentativa de golpe "de verdade".
Pressupostos de um golpe de Estado
Não há no Brasil de hoje as condições para um golpe de Estado. Este reclama antes de mais nada uma força armada que o imponha; além disso requer uma força política capaz de encabeçá-lo, a mobilização ativa ao menos uma fatia da opinião pública em seu favor e cobertura de mídia no sentido de justificá-lo.
No Brasil de 2010, o último quesito aparentemente está dado. Porém as Forças Armadas não dão o menor sinal de se prestarem a um tal papel (apesar dos resmungos esporádicos de um ou outro general de pijama). A oposição demotucana limita-se ao seu jogo de cena "judicializante". E a fatia da sociedade civil sob influência oposicionista está constrangida à defensiva pela popularidade do governo.
Não era bem assim no Brasil de 2005, no pico do 'Mensalão'. Em 2005, sim, a oposição conservadora chegou a cogitar a hipótese de um golpe. Mas mesmo então, fez as contas, consultou as pesquisas, mediu a temperatura das ruas – onde o "Fica Lula" prevalecia – e engavetou a ideia.
Tampouco era assim – vale a pena recordar – no Brasil de 1955, quando uma real tentativa de golpe quase impediu a posse do presidente eleito: Juscelino Kubitschek.
O golpe contra a posse de Juscelino
Apoiado pelo PSD, o PTB e o ilegalizado Partido Comunista do Brasil, JK vencera por pouco a eleição de 3 de outubro. Tivera apenas 400 mil votos de vantagem sobre o udenista Juarez Távora, e 36% do total (a eleição em dois turnos só surgiria 23 anos mais tarde). A UDN tentou impugnar o resultado. Alegou que seria preciso maioria absoluta, e que Juscelino vencera por ter apoio comunista. O presidente interino (pois Getúlio Vargas se suicidara e seu vice, Café Filho, adoecera), Carlos Luz, era udenófilo e apoiou a tese, com sustentação da Marinha e da Aeronáutica. Foi preciso o ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, por os tanques nas ruas do Rio para desmontar a trama.
Naquele tempo, sim, os golpes rondavam sempre o país. Os militares os consideravam quase como um direito, ou até um dever, e a direita civil os estimulava abertamente. Antes de 1955, houvera o golpe de 1937, o de 1945, o quase golpe que vitimou Getúlio em 1954. Depois, ainda haveria a tentativa de 1961 e por fim o Grande Golpe de 1964, que desandou em 21 anos de ditadura.
Três provas de fogo pós-ditadura
Um quarto de século depois do fim da ditadura, há sólidas evidências de que o Brasil é outro. A chamada Nova República passou por três provas de fogo – a doença e morte de Tancredo Neves (1985), o impeachment de Fernando Collor (1992) e a eleição de Lula (2002) – sem ameaças golpistas reais.
A eleição presidencial de outubro será a sexta de uma inédita sequência democrática ininterrupta. Graças a isso, o povo trabalhador e cidadão e eleitor pôde fazer um aprendizado que nunca antes lhe fora permitido. Um aprendizado difícil, tortuoso, por tentativa e erro, vivendo os resultados na própria carne, mas com evidentes resultados.
O tempo de Lacerda passou
A campanha deste ano será dura (espero que não "sangrenta", ao contrário do que disse ontem o presidente de honra do DEM, Jorge Bornhausen) e disputada. Ninguém pode predizer seu resultado. Porém não há espaço para nenhum desfecho da disputa que não seja o decidido em 3 de outubro (e em 24, caso seja preciso segundo turno) pelos 134 milhões de eleitores brasileiros, conforme o princípio do Parágrafo único do Artigo 1º da Constituição, de que "todo o poder emana do povo".
Até lá, com certeza vão se multiplicar na mídia notícias como a da Folha e comentários como o de Noblat. Prepare os nervos. Mas não serão tentativas de golpe e sim mera poeira golpista. Não impedirão que a candidata de Lula seja submetida às urnas e, se eleita, tome posse e governe.
Passou o tempo em que um Carlos Lacerda – 'o Corvo', mais tarde um dos complotadores contra a posse de Juscelino – podia vir a público com sua famosa tirada: “Getulio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar” (1950).
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Folha de cara nova e idéias caducas
Reproduzo artigo de Renata Mielli, publicado no blog “Janela sobre a palavra”:
Lançada neste domingo, a reforma gráfica e editorial do jornal Folha de S.Paulo deixa explícita a visão anacrônica de mundo que o diário prega insistentemente em suas páginas: a defesa do mercado a partir da doutrina neoliberal e como o poder deve estar a serviço desse projeto de nação mercantil e subordinada.
A mudança do nome de alguns cadernos é mais do que emblemática da linha editorial da Folha: Brasil passa a ser Poder e Economia passa a ser Mercado. Ancorada no corolário mais opinião menos informação, o jornal tenta dar cara nova para ideias cada vez mais caducas na sociedade.
Para dar voz a essas ideias, vão acolher colunistas como o presidente da Febraban, Fábio Barbosa; enquanto executaram sumariamente talvez uma das únicas vozes dissonantes do jornal, o economista Paulo Nogueira Batista Jr.
A coluna estreante de Gustavo Cerbasi, autor dos livros “Casais Inteligentes Enriquecem Juntos” e “Mais Tempo, Mais Dinheiro” mostra que a auto-ajuda focada no conceito do sucesso é dinheiro, dinheiro é status e status se conquista consumindo dá o tom de tudo o que está na contramão da história.
Diz Cerbasi em sua coluna sobre a consagração da classe média “Quem está com sua carteira assinada pela primeira vez merece comemorar e gastar um pouco mais. Porém, não faz muito sentido gastar a ponto de arruinar o orçamento dos meses seguintes. Gaste menos do que você tem, mas gaste principalmente com o que você gosta. Celebre! Repense o tamanho da sua casa, escolha uma mais econômica, para que caibam mais prestações de coisas interessantes em seu orçamento. E, independentemente do seu estilo de gasto, faça as contas e poupe o mínimo necessário”, aconselha. Sinceramente, é de ficar boquiaberto!
Ou seja, em momento de crise econômica mundial, de discussões acirradas sobre desenvolvimento sustentável e, consequentemente, sobre consumo sustentável, a Folha inicia sua cruzada em nome do consumo desenfreado!!!! É, no mínimo, politicamente incorreto.
Análise X Opinião
A Folha diz que vai dar mais ênfase à análise que, de acordo com o jornal, é “o esforço de esclarecer o leitor sobre a importância, o contexto, a origem, as implicações e o feixe de interesses em torno de informações relevantes publicadas no jornal”. Já, a opinião, que segundo o jornal é quando o “autor se coloca, manifesta preferências e apresenta argumentos que as sustentem” aparecerá apenas pela palavra dos colunistas.
Na página on-line sobre a reforma do jornal, há um link sobre a diferença entre análise e opinião, que infelizmente está quebrado. Portanto, eu não pude me aprofundar nas digressões que a Folha faz para tentar mascarar a análise de texto imparcial. Ora, é claro que toda análise parte de um ponto de vista sobre qualquer assunto, e é, portanto, uma forma de opinião. Neste caso, claro está, a do jornal.
Furo na era da informação em tempo real
Outro elemento que está destacado como central no fazer jornalístico da nova Folha é a prioridade para os furos. Fico imaginando como tais furos serão conseguidos e quais. É mais que sabido que a internet se não acabou, reduziu drasticamente o furo, aquela notícia que só o seu jornal tem e vai divulgar em primeira mão. Mas, se as notícias exclusivas estão escassaz, então o jeito é produzi-las, como no caso da ficha policial da Dilma durante a ditadura militar.
O slogan “Folha – o jornal do Futuro” só me dá uma certeza: esse futuro que a Folha quer para o Brasil eu não quero, e os brasileiros também não.
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terça-feira, 25 de maio de 2010
EUA financiam “blogueiros” contra Cuba
Com base em documentos recentemente desclassificados, a socióloga estadunidense-venezuelana Eva Golinger acaba de comprovar que os EUA têm investido milhões de dólares na propaganda contra a Cuba através da internet. Isto talvez ajude a explicar a gigantesca badalação em torno da blogueira cubana Yoani Sánchez, que virou estrela da mídia mundial e nativa. No mês passado, ela foi destaque nos jornalões, revistonas e emissoras de televisão do Brasil. O seu livro, lançado no início do ano, já figura na lista dos mais vendidos da revista Veja – o que não é lá uma grande coisa.
A farta documentação, que veio à tona devido à Lei de Acesso à Informação (FOIA), revela que a USAID, agência ianque famosa por interferir nos assuntos internos de várias nações, inverteu mais de US$ 2,3 milhões para disseminar “propaganda suja” contra Cuba nos últimos anos. Ela inclui os contratos originais entre a USAID e a organização CubaNet, formada por “blogueiros” raivosos contra o regime cubano. Criada em 1999, ela tem sede em Miami e hoje recebe o grosso dos recursos da USAID e também da NED (National Endowment for Democracy).
“A estreita relação de controle”
“Os documentos demonstram um padrão de financiamento que aumenta a cada ano no esforço de promover informações distorcidas sobre Cuba – tudo com a intenção de provocar uma ‘transição à democracia’ ou ‘cambio de regime’ na ilha caribenha. Há cinqüenta anos, Washington executa uma guerra suja contra Cuba. Um componente dessa agressão é o uso dos meios de comunicação para manipular e distorcer a realidade cubana junto à opinião pública internacional e, ao mesmo tempo, infiltrar e disseminar informações falsas dentro de Cuba”, explica Golinger.
Até recentemente, os maiores inversões eram destinadas à Rádio e TV Marti, também sediados nos EUA. Diante do fracasso destes meios, o império ianque passou a investir mais na internet. O dinheiro é utilizado para “assalariar” jornalistas e manter sítios e blogs. “Embora não seja mais segredo que a CubaNet recebe financiamento e diretrizes de Washington, os documentos agora desclassificados da USAID demonstram a estreita relação de controle que esta agência mantém sobre esta organização propagandística”, afirma a pesquisadora.
Que dá dinheiro cobra a fatura
A cláusula 16 de um dos contratos com a CubaNet, intitulada “os entendimentos de participação substancial”, confirma a ingerência. “Se entende e se acorda que a USAID manterá participação substancial durante a execução do Acordo de Cooperação da seguinte maneira: Pessoal chave: O assessor principal da USAI para Cuba aprovará com antecipação a seleção de qualquer chefia ou subalternos. Plano de monitoramento e avaliação: O assessor principal da USAID para Cuba aprovará os planos para avaliar e monitorar o progresso dos objetivos do programa durante o transcurso do Acordo de Cooperação”. Em síntese: o governo ianque manda na CubaNet.
A pesquisa de onze documentos recentes evidencia o aumento do financiamento anual dos EUA à CubaNet. “Também revelam outros dados sobre a natureza do programa. O documento de 19 de abril de 2005 autoriza o envio de ‘fundos privados’ ‘avançar nos objetivos do acordo’. Devido às restrições do Departamento do Tesouro sobre o envio de dólares a Cuba, os ‘fundos privados’ seriam camuflados com a autorização que já têm as agências estadunidenses para financiar o programa CubaNet”, explica Golinger, que acrescenta uma informação estarrecedora:
Planilha da ingerência imperialista
“O mesmo documento revela que CubaNet não realiza apenas seu trabalho dentro de Cuba, mas também ‘continua publicando reportagens e promovendo sua disseminação nos meios massivos dos Estados Unidos e na imprensa mundial’. É proibido por lei nos EUA disseminar propaganda financiada pelo governo e utilizá-la como ‘informação nos meios de comunicação’. Não obstante, o documento desclassificado evidencia que a USAID age em plena violação da lei”.
Como aponta Eva Golinger, “a campanha de agressão contra Cuba está mais intensa hoje do que nunca. E neste ano de 2010, a USAID maneja um orçamento de mais de US$ 20 milhões para financiar grupos dentro e fora de Cuba que promovam a agenda de Washington. CubaNet segue sendo um dos principais atores na guerra suja contra Cuba”. Daria para acrescentar: mas não é o único. Basta acompanhar a cobertura da “grande mídia” brasileira sobre o tema.
Abaixo a planilha dos “investimentos” da USAID para os “blogueiros independentes” de Cuba:
1999: US$ 98 mil;
2000: US$ 245 mil;
2001: US$ 260 mil;
2002: US$ 230 mil;
2003: US$ 500 mil;
2005: US$ 330 mil;
2006: US$ 300 mil;
2007: US$ 360 mil;
Total: US$ 2.323 milhões.
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A farta documentação, que veio à tona devido à Lei de Acesso à Informação (FOIA), revela que a USAID, agência ianque famosa por interferir nos assuntos internos de várias nações, inverteu mais de US$ 2,3 milhões para disseminar “propaganda suja” contra Cuba nos últimos anos. Ela inclui os contratos originais entre a USAID e a organização CubaNet, formada por “blogueiros” raivosos contra o regime cubano. Criada em 1999, ela tem sede em Miami e hoje recebe o grosso dos recursos da USAID e também da NED (National Endowment for Democracy).
“A estreita relação de controle”
“Os documentos demonstram um padrão de financiamento que aumenta a cada ano no esforço de promover informações distorcidas sobre Cuba – tudo com a intenção de provocar uma ‘transição à democracia’ ou ‘cambio de regime’ na ilha caribenha. Há cinqüenta anos, Washington executa uma guerra suja contra Cuba. Um componente dessa agressão é o uso dos meios de comunicação para manipular e distorcer a realidade cubana junto à opinião pública internacional e, ao mesmo tempo, infiltrar e disseminar informações falsas dentro de Cuba”, explica Golinger.
Até recentemente, os maiores inversões eram destinadas à Rádio e TV Marti, também sediados nos EUA. Diante do fracasso destes meios, o império ianque passou a investir mais na internet. O dinheiro é utilizado para “assalariar” jornalistas e manter sítios e blogs. “Embora não seja mais segredo que a CubaNet recebe financiamento e diretrizes de Washington, os documentos agora desclassificados da USAID demonstram a estreita relação de controle que esta agência mantém sobre esta organização propagandística”, afirma a pesquisadora.
Que dá dinheiro cobra a fatura
A cláusula 16 de um dos contratos com a CubaNet, intitulada “os entendimentos de participação substancial”, confirma a ingerência. “Se entende e se acorda que a USAID manterá participação substancial durante a execução do Acordo de Cooperação da seguinte maneira: Pessoal chave: O assessor principal da USAI para Cuba aprovará com antecipação a seleção de qualquer chefia ou subalternos. Plano de monitoramento e avaliação: O assessor principal da USAID para Cuba aprovará os planos para avaliar e monitorar o progresso dos objetivos do programa durante o transcurso do Acordo de Cooperação”. Em síntese: o governo ianque manda na CubaNet.
A pesquisa de onze documentos recentes evidencia o aumento do financiamento anual dos EUA à CubaNet. “Também revelam outros dados sobre a natureza do programa. O documento de 19 de abril de 2005 autoriza o envio de ‘fundos privados’ ‘avançar nos objetivos do acordo’. Devido às restrições do Departamento do Tesouro sobre o envio de dólares a Cuba, os ‘fundos privados’ seriam camuflados com a autorização que já têm as agências estadunidenses para financiar o programa CubaNet”, explica Golinger, que acrescenta uma informação estarrecedora:
Planilha da ingerência imperialista
“O mesmo documento revela que CubaNet não realiza apenas seu trabalho dentro de Cuba, mas também ‘continua publicando reportagens e promovendo sua disseminação nos meios massivos dos Estados Unidos e na imprensa mundial’. É proibido por lei nos EUA disseminar propaganda financiada pelo governo e utilizá-la como ‘informação nos meios de comunicação’. Não obstante, o documento desclassificado evidencia que a USAID age em plena violação da lei”.
Como aponta Eva Golinger, “a campanha de agressão contra Cuba está mais intensa hoje do que nunca. E neste ano de 2010, a USAID maneja um orçamento de mais de US$ 20 milhões para financiar grupos dentro e fora de Cuba que promovam a agenda de Washington. CubaNet segue sendo um dos principais atores na guerra suja contra Cuba”. Daria para acrescentar: mas não é o único. Basta acompanhar a cobertura da “grande mídia” brasileira sobre o tema.
Abaixo a planilha dos “investimentos” da USAID para os “blogueiros independentes” de Cuba:
1999: US$ 98 mil;
2000: US$ 245 mil;
2001: US$ 260 mil;
2002: US$ 230 mil;
2003: US$ 500 mil;
2005: US$ 330 mil;
2006: US$ 300 mil;
2007: US$ 360 mil;
Total: US$ 2.323 milhões.
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segunda-feira, 24 de maio de 2010
EUA vão fechar a embaixada no Brasil?
Reproduzo o engraçadíssimo texto de João Peres, publicado no blog Nota de Rodapé. Não deixe de ler a nota de esclarecimento ao final do artigo:
A Casa Branca comunicou nesta quinta-feira, 20, que irá fechar a sua representação diplomática no Brasil. A medida foi adotada durante reunião de mais de três horas entre a chefe do Departamento de Estado, Hillary Clinton, e o embaixador no Brasil, Thomas Shannon.
O encontro, segundo a reportagem apurou, ocorreu sob forte tensão e com acusações de Hillary a Shannon. Hillary teria chegado a dizer que Shannon se comportou feito “uma mocinha comunista” durante a negociação do acordo na área nuclear entre Brasil, Irã e Turquia. “Você não é um patriota. A América (sic) paga seu salário para ficar aí, no meio dessa horda de subdesenvolvidos, sem fazer nada”, teria afirmado a dama-de-ferro durante o encontro em Washington.
Shannon, na saída da reunião, confirmou o fechamento da embaixada e dos consulados dos Estados Unidos em território brasileiro e ressaltou que o acordo Brasil-Irã teve papel fundamental na decisão, mas negou que tenha sido ríspido o tom da conversa com Hillary.
A conclusão, segundo disse o embaixador, é de que já não faz sentido ter representações diplomáticas em um país no qual os Estados Unidos estão amplamente representados. “Você viu como a Globo, a Folha e o Estadão se comportaram durante essa história do acordo? Afirmando que a proposta do Brasil nem era tudo isso e que o Irã é um baita mentiroso? Nem um comunicado do Departamento de Estado seria tão favorável aos interesses da Casa Branca. Logo, perdeu sentido que eu continue por aqui. Vou ter de procurar outro emprego. Pior que de editorialista não dá: o Brasil está cheio”, afirmou, claramente abatido, aos jornalistas presentes à saída do encontro.
Serviço
A partir de 1º de junho, os brasileiros que desejarem tirar passaporte ou gozar de qualquer outro serviço diplomático devem se dirigir aos seguintes lugares:
- Folha de S.Paulo;
- O Estado de S.Paulo;
- O Globo;
- Qualquer emissora da Rede Globo em território nacional.
João Peres é jornalista e colunista do Nota de Rodapé. Este texto é uma crônica, portanto, aos que acham que é verdadeira a notícia, a piada irônica teve o efeito desejado.
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A Casa Branca comunicou nesta quinta-feira, 20, que irá fechar a sua representação diplomática no Brasil. A medida foi adotada durante reunião de mais de três horas entre a chefe do Departamento de Estado, Hillary Clinton, e o embaixador no Brasil, Thomas Shannon.
O encontro, segundo a reportagem apurou, ocorreu sob forte tensão e com acusações de Hillary a Shannon. Hillary teria chegado a dizer que Shannon se comportou feito “uma mocinha comunista” durante a negociação do acordo na área nuclear entre Brasil, Irã e Turquia. “Você não é um patriota. A América (sic) paga seu salário para ficar aí, no meio dessa horda de subdesenvolvidos, sem fazer nada”, teria afirmado a dama-de-ferro durante o encontro em Washington.
Shannon, na saída da reunião, confirmou o fechamento da embaixada e dos consulados dos Estados Unidos em território brasileiro e ressaltou que o acordo Brasil-Irã teve papel fundamental na decisão, mas negou que tenha sido ríspido o tom da conversa com Hillary.
A conclusão, segundo disse o embaixador, é de que já não faz sentido ter representações diplomáticas em um país no qual os Estados Unidos estão amplamente representados. “Você viu como a Globo, a Folha e o Estadão se comportaram durante essa história do acordo? Afirmando que a proposta do Brasil nem era tudo isso e que o Irã é um baita mentiroso? Nem um comunicado do Departamento de Estado seria tão favorável aos interesses da Casa Branca. Logo, perdeu sentido que eu continue por aqui. Vou ter de procurar outro emprego. Pior que de editorialista não dá: o Brasil está cheio”, afirmou, claramente abatido, aos jornalistas presentes à saída do encontro.
Serviço
A partir de 1º de junho, os brasileiros que desejarem tirar passaporte ou gozar de qualquer outro serviço diplomático devem se dirigir aos seguintes lugares:
- Folha de S.Paulo;
- O Estado de S.Paulo;
- O Globo;
- Qualquer emissora da Rede Globo em território nacional.
João Peres é jornalista e colunista do Nota de Rodapé. Este texto é uma crônica, portanto, aos que acham que é verdadeira a notícia, a piada irônica teve o efeito desejado.
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A “virada” do Datafolha: crime eleitoral?
A nova pesquisa do Datafolha, divulgada neste final de semana, não deve ter causado desarranjo apenas no comando da campanha demotucana. Ela criou graves desajustes na direção do próprio instituto, comandado pela famíglia Frias, que também é proprietária do jornal FSP (Folha Serra Presidente). Em abril, quando todos os outros institutos confirmavam o crescimento de Dilma Rousseff e o empate técnico com José Serra, o Data-da-Folha surpreendeu ao indicar o aumento da distancia – da boca do jacaré, no jargão do setor – entre o tucano e a petista (12 pontos).
Em cerca de um mês, aqueles doze pontos de diferença simplesmente sumiram – num verdadeiro “fenômeno sísmico”, segundo a ironia do blogueiro Paulo Henrique Amorim. Agora, segundo o suspeito instituto, os dois candidatos estão empatados em 37% – Serra despencou cinco pontos e Dilma subiu sete. Diante destes números “impressionantes”, o diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, sacou uma desculpa risível. “O principal fato que pode ser apontado como responsável por essa alta da candidata é o programa partidário de TV que o PT apresentou recentemente”.
Desculpa esfarrapada e cinismo
Talvez temendo pelo seu emprego, Paulino evitou comentar possíveis “erros” – ou manipulações – na pesquisa anterior, tão favorável ao demotucano num momento crucial para consolidação dos apoios a sua candidatura. Na ocasião, vários especialistas em pesquisas denunciaram mudanças metodológicas que beneficiaram Serra – como a maior coleta de dados em bairros e cidades das elites brasileiras e sua redução nas regiões Norte e Nordeste. Encurralado, o Datafolha deflagrou uma guerra de baixarias contra os outros institutos para tentar salvar a sua pele.
A desculpa apresentada agora para justificar o “fenômeno sísmico” também é furada. Afinal, no mesmo período da pesquisa, o DEM também expôs seu candidato no horário gratuito de rádio e televisão. Além disso, o governo de São Paulo promove um intenso bombardeio de propaganda sobre o “paraíso” da administração tucana no estado. Já a mídia golpista não cessa sua artilharia contra o governo Lula – inclusive opondo-se ao acordo Brasil-Irã – e mantém a total blindagem sobre José Serra. O “Zé Alagão”, por exemplo, até sumiu das telinhas no período das enchentes.
A crise de identidade demotucana
A nova pesquisa Datafolha, agora mais próxima da realidade, revela as dificuldades da oposição neoliberal-conservadora. A fantasia do “Serrinha paz e amor” não colou. A bruxaria marqueteira, que tentava vender a imagem do tucano como “continuador” do governo Lula, não surtiu efeito. Se a aparição de Dilma Rousseff num único programa já causou este “fenômeno sísmico”, segundo a desculpa esfarrapada de Mauro Paulino, imagine quando tiver início a propaganda eleitoral de rádio e TV, em agosto. A candidata será ainda mais identificada com o presidente Lula!
Como observa o sítio Carta Maior, o “cavalo-de-pau” do Datafolha “reflete a crise de identidade na candidatura Serra. O patético figurino do candidato ‘cordial progressista’ tentado nos últimos meses derreteu pelo artificialismo abusivo que nenhum gênio do marketing pode contornar... Só o Datafolha ainda não havia mensurado esse vazio, mas agora não dava mais para esconder. As coisas então ficam assim: ou a mídia muda totalmente seu discurso golpista e adere ao ‘lulismo’ de Serra; ou Serra sai do armário e se junta ao udenismo anti-Lula do diretório midiático”.
Ajuste no discurso para a guerra
Tudo indica que vingará a segunda alternativa. Já na reunião do diretório nacional do PPS, José Serra promoveu ajustes no seu discurso, abandonando sua pele de cordeiro. Ele fez duros ataques ao governo Lula, num discurso terrorista sobre a existência do “bolchevismo sem utopias”. Sem ter mais como esconder, Serra também defendeu as privatizações do reinado de FHC, atacando o “patrimonialismo selvagem” do atual governo. Para alegria da mídia golpista, o tucano assume o figurino do brucutu neoliberal e sinaliza que a campanha tende para baixaria, nua e crua.
Diante desta tendência belicista, o Movimento dos Sem Mídia (MSM), liderado pelo blogueiro Eduardo Guimarães, acertou em cheio ao ingressar com representação junto à Justiça Eleitoral solicitando a fiscalização dos institutos de pesquisa. No caso do Datafolha, há fortes indícios de que ele já cometeu um grave crime eleitoral. Nada justifica seu recente “fenômeno sísmico”. Novas manipulações podem estar em orquestração, principalmente para o momento em que a campanha entrar na sua fase mais decisiva. Qualquer ingenuidade, vacilo ou tibieza poderá ser fatal.
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Em cerca de um mês, aqueles doze pontos de diferença simplesmente sumiram – num verdadeiro “fenômeno sísmico”, segundo a ironia do blogueiro Paulo Henrique Amorim. Agora, segundo o suspeito instituto, os dois candidatos estão empatados em 37% – Serra despencou cinco pontos e Dilma subiu sete. Diante destes números “impressionantes”, o diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, sacou uma desculpa risível. “O principal fato que pode ser apontado como responsável por essa alta da candidata é o programa partidário de TV que o PT apresentou recentemente”.
Desculpa esfarrapada e cinismo
Talvez temendo pelo seu emprego, Paulino evitou comentar possíveis “erros” – ou manipulações – na pesquisa anterior, tão favorável ao demotucano num momento crucial para consolidação dos apoios a sua candidatura. Na ocasião, vários especialistas em pesquisas denunciaram mudanças metodológicas que beneficiaram Serra – como a maior coleta de dados em bairros e cidades das elites brasileiras e sua redução nas regiões Norte e Nordeste. Encurralado, o Datafolha deflagrou uma guerra de baixarias contra os outros institutos para tentar salvar a sua pele.
A desculpa apresentada agora para justificar o “fenômeno sísmico” também é furada. Afinal, no mesmo período da pesquisa, o DEM também expôs seu candidato no horário gratuito de rádio e televisão. Além disso, o governo de São Paulo promove um intenso bombardeio de propaganda sobre o “paraíso” da administração tucana no estado. Já a mídia golpista não cessa sua artilharia contra o governo Lula – inclusive opondo-se ao acordo Brasil-Irã – e mantém a total blindagem sobre José Serra. O “Zé Alagão”, por exemplo, até sumiu das telinhas no período das enchentes.
A crise de identidade demotucana
A nova pesquisa Datafolha, agora mais próxima da realidade, revela as dificuldades da oposição neoliberal-conservadora. A fantasia do “Serrinha paz e amor” não colou. A bruxaria marqueteira, que tentava vender a imagem do tucano como “continuador” do governo Lula, não surtiu efeito. Se a aparição de Dilma Rousseff num único programa já causou este “fenômeno sísmico”, segundo a desculpa esfarrapada de Mauro Paulino, imagine quando tiver início a propaganda eleitoral de rádio e TV, em agosto. A candidata será ainda mais identificada com o presidente Lula!
Como observa o sítio Carta Maior, o “cavalo-de-pau” do Datafolha “reflete a crise de identidade na candidatura Serra. O patético figurino do candidato ‘cordial progressista’ tentado nos últimos meses derreteu pelo artificialismo abusivo que nenhum gênio do marketing pode contornar... Só o Datafolha ainda não havia mensurado esse vazio, mas agora não dava mais para esconder. As coisas então ficam assim: ou a mídia muda totalmente seu discurso golpista e adere ao ‘lulismo’ de Serra; ou Serra sai do armário e se junta ao udenismo anti-Lula do diretório midiático”.
Ajuste no discurso para a guerra
Tudo indica que vingará a segunda alternativa. Já na reunião do diretório nacional do PPS, José Serra promoveu ajustes no seu discurso, abandonando sua pele de cordeiro. Ele fez duros ataques ao governo Lula, num discurso terrorista sobre a existência do “bolchevismo sem utopias”. Sem ter mais como esconder, Serra também defendeu as privatizações do reinado de FHC, atacando o “patrimonialismo selvagem” do atual governo. Para alegria da mídia golpista, o tucano assume o figurino do brucutu neoliberal e sinaliza que a campanha tende para baixaria, nua e crua.
Diante desta tendência belicista, o Movimento dos Sem Mídia (MSM), liderado pelo blogueiro Eduardo Guimarães, acertou em cheio ao ingressar com representação junto à Justiça Eleitoral solicitando a fiscalização dos institutos de pesquisa. No caso do Datafolha, há fortes indícios de que ele já cometeu um grave crime eleitoral. Nada justifica seu recente “fenômeno sísmico”. Novas manipulações podem estar em orquestração, principalmente para o momento em que a campanha entrar na sua fase mais decisiva. Qualquer ingenuidade, vacilo ou tibieza poderá ser fatal.
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domingo, 23 de maio de 2010
A dor da gente não sai no jornal
Reproduzo artigo de Beto Almeida, presidente da TV Cidade Livre de Brasília, publicado no sítio Carta Maior:
O verso da canção de Luiz Reis e Haroldo Barbosa, gravada pelo Chico, me socorre diante do elevadíssimo grau de anti-jornalismo a que alcança hoje a imprensa brasileira, merecendo certamente a crítica de Lula logo ao chegar de sua gira internacional. A mídia nativa torce abertamente pelo fracasso da iniciativa do Brasil junto ao Irã. Prefere novas sanções, a lógica do castigo, o que cria perigosos riscos de desdobrar-se em guerra, em destruição e morte como se vê agora mesmo no Iraque. A mídia americana torceu fervorosamente pela invasão militar aquele país. Chegou a mentir sobre a existência de armas de destruição em massa.. Depois, o jornal New York Times pediu desculpas aos leitores pela desinformação, mas aí já havia mais de um milhão de iraquianos mortos. A mídia brasileira vai pela mesma linha? Se as potências mundiais resolverem aplicar uma sanção contra o programa nuclear brasileiro a partir de pretexto de que aqui também se constrói uma bomba, o que já foi insinuado, a mídia brasileira ficará contra o Brasil e o seu povo?
Recuperemos alguns momentos na nossa história para saber como nossa imprensa, agora mídia, tem se colocado. Nos momentos de crise, episódios dramáticos, encruzilhadas históricas, momentos de decisão, vamos constatar que freqüentemente esta mídia, aquela que é majoritariamente representante dos interesses dominantes na sociedade, esteve divorciada de soluções nacionais, opondo-se raivosamente aos interesses populares, descumprindo descaradamente sua auto-proclamada vocação democrática, assumindo, repetidas vezes, o viés golpista, oligárquico e anti-nacional.
Ela se opôs quando o país conquistava uma legislação de defesa dos direitos trabalhistas e, coerente com esta vocação oligárquica, até hoje estes mesmos segmentos midiáticos, - agora modernizados pela eletrônica, mas não nos padrões civilizatórios - continuam a conspirar e a pretender a destruição da CLT implantada na Era Vargas. Antes da CLT era comum patrões espancarem seus empregados.... Há pouco vimos o brutal assassinato de uma jovem jornalista cometido pelo diretor de um destes grandes jornais oligárquicos simplesmente porque ela teve a “ousadia” de terminar o namoro. Esta mentalidade desdobra-se muitas vezes em linha editorial eivada de ódio social contra o povo. E qual não deve ser a dose deste ódio contra um retirante Lula quando ele “ousa” cruzar não apenas os mares e os continentes - com a agilidade que o moderno avião permite - mas, também cruzar e questionar com coragem os padrões de uma diplomacia convencional, conservadora e hipócrita que não apenas se conforma mas também cultiva sanções e guerras, desprezando a priori o diálogo entre os povos?
Se lá atrás, estes barões da imprensa foram capazes de festejar, escondidos e amedrontados, a morte de Vargas porque ela significaria o fracasso de uma política de industrialização de um país agrário, do estabelecimento de direitos trabalhistas e previdenciários, como não estarão agora os herdeiros destes barões a torcer para a derrota generalizada das iniciativas de Lula? Sobretudo quando Lula já bradou em momentos mais complexos que não se suicidaria como Vargas, não renunciaria como Jânio e não sairia do País como Jango!
Noticiaram: o Brasil não tem petróleo!!!
Para se medir até onde poderá chegar este anti-jornalismo, basta citar apenas um exemplo histórico: praticamente toda a imprensa fez campanha contra Vargas quando ele criava a Petrobrás. Essa mesma imprensa noticiava reiteradamente que não havia petróleo no Brasil, conforme diziam os relatórios de espertíssimos técnicos norte-americanos. Pode-se medir o tamanho da desinformação, do anti-jornalismo, pelo tamanho dos trilionários poços de petróleo pré-sal recém descobertos!
Pelo grau de precariedade jornalística, pode-se medir também que as elites jornalistas criticadas na fala presidencial estariam engrossando ainda mais, com a vassalagem de sempre, o coro da mídia internacional que percebeu claramente que na sua dialética de retirante Lula contraria interesses da indústria bélica, patrocinadora da lógica das sanções pelo Conselho de Segurança da ONU, avesso ao diálogo. Provavelmente veremos que em certos segmentos da mídia internacional aquele espaço editorial que reconheceu em Lula um mandatário com iniciativas para enfrentar a fome e a miséria, para integrar os povos e também para promover soluções democráticas, poderá passar a ser ocupado, também, com críticas a um presidente que “afronta a segurança e a paz internacional”, tradução esperta que dão para os interesses imperialistas, sobretudo do comércio internacional de armas. No dia em que Lula desembarcava no Irã a manchete do Estadão era “Farc tem acampamento na Amazônia”. Ou seja, Lula “tolerante com o terrorismo” lá e cá, era a mensagem subliminar.
Armas: lucros em cheque
Quando a Princesa Diana libertou-se do ambiente arrogante e despótico da realeza britânica e passou a fazer campanha contra a instalação de minas terrestres instaladas em Angola e outros países - e que ainda matarão ou mutilarão inocentes por décadas - logo a grande mídia sustentada por anunciantes ligados à indústria bélica tratou de estampar como controvertidos alguns de seus aspectos pessoais, suas pretensões pacíficas "inconseqüentes" e ,inclusive, o ”inaceitável” namoro com um árabe, peça que compunha a novelinha midiática para a destruição de sua imagem.. Estes poderosos interesses bélicos poderão insinuar que Lula estaria “passando dos limites”... Mas, até o Obama, em carta a Lula recomendou o acordo com o Irã. Agora foi enquadrado. O fantasma de Kennedy, ronda...
Por isso mesmo, é preciso ver o outro lado da crítica de Lula à imprensa. E talvez isto signifique encorajar as forças progressistas a uma reflexão que está presente nos esforços para realizar a Conferência Nacional de Comunicação, para aplicar o que ali se decidiu, mas, nem sempre encontra a capacidade para organizar as forças sociais que podem preencher a lacuna gigantesca que fere de morte a cidadania brasileira: a inexistência de um grande jornal popular, de massas, capaz de um jornalismo que promova os interesses nacionais, que encontre o seu lugar como ferramenta criativa e necessária para a construção de um Brasil verdadeiramente Nação!
Última Hora
Voltemos nossos olhos novamente para nossa própria experiência histórica. Já tivemos o jornal Última Hora, popular, nacionalista, capaz de refletir os interesses das classes trabalhadoras diuturnamente atacados pelo conjunto da imprensa oligárquica. Era um respiro democrático! Havia a polarização, a diversidade opinativa e política. Hoje há uma asfixia midiática anti-democrática. Não há sequer a controvérsia! E aquele jornal, que chegou a ter duas edições diárias, circulação nacional massiva, foi uma iniciativa encorajada por Vargas. Quando em 1954 a mídia conservadora comemorou a morte de Vargas, o Última Hora chorou e resistiu ao lado do povo que saiu às ruas. Quando em 1964, esta mesma mídia oligárquica suplicou e colaborou com o golpe de estado, o Última Hora resistia e defendia a democracia.
Jornalismo estratégico
Dentro da visão estratégica de um país que pretende desempenhar legitimamente um papel importante e protagonista no jogo do poder internacional - e era assim na Era Vargas e é assim novamente agora com Lula - nós, como povo brasileiro e como Nação, não podemos deixar de lado esta questão que continua a nos desafiar. Vários passos importantes foram dados, entre eles a conquista simbolizada na criação da TV Brasil. E mais ainda agora quando na próxima segunda-feira será lançada a TV Brasil Internacional, inicialmente para dialogar com os quase três milhões de brasileiros espalhados mundo afora. A iniciativa, louvável, trará com mais realismo a necessidade do Brasil também dialogar com outros povos já que pretende atuar para que as relações internacionais sejam democratizadas, reequilibradas e marcadas pela cooperação.
Vale lembrar que a Rádio Nacional, também criada na Era Vargas, chegou a ser a quarta mais potente emissora do mundo, além de ter programação em quatro idiomas, alcançando vários continentes e tendo em seu corpo de redatores brasileiros como Nestor de Hollanda, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Cecília Meirelles etc. A TV Brasil Internacional tem uma herança em que se apoiar e tem um caminho que pode recuperar para levar a mensagem de uma nação brasileira que se empenha por um mundo mais justo e baseado na cooperação, não nas sanções.
Será que as forças progressistas não deveriam encarar de fato esta tarefa da construção de um jornal popular, nacional, de ampla circulação, fazendo jornalismo na verdadeira acepção da palavra e recuperando para o jornalismo a missão de bem público e de ferramenta civilizatória hoje ignorada em boa medida pela mídia hegemônica no Brasil?
Será que estas forças que foram capazes de articular, se organizar, para resistir à ditadura, enfrentar o neoliberalismo e se fortalecer para chegar à presidência - um feito de proporções históricas numa sociedade com os arraigados esquemas dos donos do poder - não teria também a capacidade de construir um jornal e de praticar um jornalismo público, civilizador, humanista? Não se trata de estimular aqui nada contra as iniciativas para democratizar a informação no espaço digital. Trata-se de complementar, de articular, até porque com toda a importância e o grande efeito que comprovamos na internet, tuitar não esgota a necessidade de fazer jornalismo. Não se deve pretender apenas repercutir, contestar, confrontar a unanimidade conservadora da mídia hegemônica e seu anti-jornalismo em vias de deterioração acelerada.
Surra midiática diária
Há iniciativas importantes, a realização da Confecom é uma delas, a TV Brasil já citada, a recriação da Telebrás estatal, aliás, uma clara aplicação de decisão tomada na Confecom, são outras. Surgiram a Altercom, o Barão de Itararé, o Mídia Livre, todos os blogs e portais, os jornais e revistas alternativas, as TVs e rádios comunitárias etc mas, ainda assim, estamos em boa medida dispersos, desarmados no campo da comunicação e os interesses nacionais, populares, democráticos, levam várias surras por dia, todos os dias.
Vemos que algumas das forças que se articularam para levar Lula á presidência também poderiam coordenar-se para que milhões de brasileiros pudessem entrar também na Era de Guttemberg, ao mesmo tempo em que este seria, obviamente, um jornal também digital. Um jornal que permitisse chegar aos grotões, urbanos ou não, um instrumento para a discussão, a mobilização, a ação e a organização política nas mãos de uma militância carente de ações organizadas que já teve no passado.. Será que a união de certos fundos de pensão (tão lucrativos), centrais sindicais, empresários vinculados ao mercado interno não poderia enfrentar esta tarefa que sempre volta à baila?.
Há dois anos foi aprovado num congresso do PT a prioridade para a criação de um jornal de massas, mas não se realizou. Hoje, na Argentina há um Página 12, no México, há o La Jornada, na Bolívia, o jornal Cambio, criado por Evo Morales e que já é o de maior tiragem no país, com apenas 7 meses de nascido, rivalizando com o jornal conservador La Razón, que tem 70 anos. Na Venezuela, nasceu o Correio do Orenoco, está em todas as bancas, ainda que o governo tenha fortalecido a mídia pública de rádio e TV, sem contar que Hugo Chávez tem mais de 300 mil seguidores no twitter, que usa com entusiasmo. Aqui, desde o desaparecimento do Última Hora, estamos sem um jornal de ampla circulação e com capacidade de sustentar uma visão jornalística dos interesses nacionais e populares. É uma grande lacuna.
E nós?
Assim, a bronca de Lula nesta elite de jornalistas que se posiciona claramente contra o sucesso das iniciativas que visam levar o Brasil a ter um papel construtivo no mundo, sendo correta, será que não deveria também servir para provocar uma reflexão, certamente autocrítica, nas forças populares? O jornalismo ou o anti-jornalismo das elites cumpre o triste papel que lhes reserva a subordinação a interesses anti-nacionais. Mas, onde está o jornal das forças progressistas?
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O verso da canção de Luiz Reis e Haroldo Barbosa, gravada pelo Chico, me socorre diante do elevadíssimo grau de anti-jornalismo a que alcança hoje a imprensa brasileira, merecendo certamente a crítica de Lula logo ao chegar de sua gira internacional. A mídia nativa torce abertamente pelo fracasso da iniciativa do Brasil junto ao Irã. Prefere novas sanções, a lógica do castigo, o que cria perigosos riscos de desdobrar-se em guerra, em destruição e morte como se vê agora mesmo no Iraque. A mídia americana torceu fervorosamente pela invasão militar aquele país. Chegou a mentir sobre a existência de armas de destruição em massa.. Depois, o jornal New York Times pediu desculpas aos leitores pela desinformação, mas aí já havia mais de um milhão de iraquianos mortos. A mídia brasileira vai pela mesma linha? Se as potências mundiais resolverem aplicar uma sanção contra o programa nuclear brasileiro a partir de pretexto de que aqui também se constrói uma bomba, o que já foi insinuado, a mídia brasileira ficará contra o Brasil e o seu povo?
Recuperemos alguns momentos na nossa história para saber como nossa imprensa, agora mídia, tem se colocado. Nos momentos de crise, episódios dramáticos, encruzilhadas históricas, momentos de decisão, vamos constatar que freqüentemente esta mídia, aquela que é majoritariamente representante dos interesses dominantes na sociedade, esteve divorciada de soluções nacionais, opondo-se raivosamente aos interesses populares, descumprindo descaradamente sua auto-proclamada vocação democrática, assumindo, repetidas vezes, o viés golpista, oligárquico e anti-nacional.
Ela se opôs quando o país conquistava uma legislação de defesa dos direitos trabalhistas e, coerente com esta vocação oligárquica, até hoje estes mesmos segmentos midiáticos, - agora modernizados pela eletrônica, mas não nos padrões civilizatórios - continuam a conspirar e a pretender a destruição da CLT implantada na Era Vargas. Antes da CLT era comum patrões espancarem seus empregados.... Há pouco vimos o brutal assassinato de uma jovem jornalista cometido pelo diretor de um destes grandes jornais oligárquicos simplesmente porque ela teve a “ousadia” de terminar o namoro. Esta mentalidade desdobra-se muitas vezes em linha editorial eivada de ódio social contra o povo. E qual não deve ser a dose deste ódio contra um retirante Lula quando ele “ousa” cruzar não apenas os mares e os continentes - com a agilidade que o moderno avião permite - mas, também cruzar e questionar com coragem os padrões de uma diplomacia convencional, conservadora e hipócrita que não apenas se conforma mas também cultiva sanções e guerras, desprezando a priori o diálogo entre os povos?
Se lá atrás, estes barões da imprensa foram capazes de festejar, escondidos e amedrontados, a morte de Vargas porque ela significaria o fracasso de uma política de industrialização de um país agrário, do estabelecimento de direitos trabalhistas e previdenciários, como não estarão agora os herdeiros destes barões a torcer para a derrota generalizada das iniciativas de Lula? Sobretudo quando Lula já bradou em momentos mais complexos que não se suicidaria como Vargas, não renunciaria como Jânio e não sairia do País como Jango!
Noticiaram: o Brasil não tem petróleo!!!
Para se medir até onde poderá chegar este anti-jornalismo, basta citar apenas um exemplo histórico: praticamente toda a imprensa fez campanha contra Vargas quando ele criava a Petrobrás. Essa mesma imprensa noticiava reiteradamente que não havia petróleo no Brasil, conforme diziam os relatórios de espertíssimos técnicos norte-americanos. Pode-se medir o tamanho da desinformação, do anti-jornalismo, pelo tamanho dos trilionários poços de petróleo pré-sal recém descobertos!
Pelo grau de precariedade jornalística, pode-se medir também que as elites jornalistas criticadas na fala presidencial estariam engrossando ainda mais, com a vassalagem de sempre, o coro da mídia internacional que percebeu claramente que na sua dialética de retirante Lula contraria interesses da indústria bélica, patrocinadora da lógica das sanções pelo Conselho de Segurança da ONU, avesso ao diálogo. Provavelmente veremos que em certos segmentos da mídia internacional aquele espaço editorial que reconheceu em Lula um mandatário com iniciativas para enfrentar a fome e a miséria, para integrar os povos e também para promover soluções democráticas, poderá passar a ser ocupado, também, com críticas a um presidente que “afronta a segurança e a paz internacional”, tradução esperta que dão para os interesses imperialistas, sobretudo do comércio internacional de armas. No dia em que Lula desembarcava no Irã a manchete do Estadão era “Farc tem acampamento na Amazônia”. Ou seja, Lula “tolerante com o terrorismo” lá e cá, era a mensagem subliminar.
Armas: lucros em cheque
Quando a Princesa Diana libertou-se do ambiente arrogante e despótico da realeza britânica e passou a fazer campanha contra a instalação de minas terrestres instaladas em Angola e outros países - e que ainda matarão ou mutilarão inocentes por décadas - logo a grande mídia sustentada por anunciantes ligados à indústria bélica tratou de estampar como controvertidos alguns de seus aspectos pessoais, suas pretensões pacíficas "inconseqüentes" e ,inclusive, o ”inaceitável” namoro com um árabe, peça que compunha a novelinha midiática para a destruição de sua imagem.. Estes poderosos interesses bélicos poderão insinuar que Lula estaria “passando dos limites”... Mas, até o Obama, em carta a Lula recomendou o acordo com o Irã. Agora foi enquadrado. O fantasma de Kennedy, ronda...
Por isso mesmo, é preciso ver o outro lado da crítica de Lula à imprensa. E talvez isto signifique encorajar as forças progressistas a uma reflexão que está presente nos esforços para realizar a Conferência Nacional de Comunicação, para aplicar o que ali se decidiu, mas, nem sempre encontra a capacidade para organizar as forças sociais que podem preencher a lacuna gigantesca que fere de morte a cidadania brasileira: a inexistência de um grande jornal popular, de massas, capaz de um jornalismo que promova os interesses nacionais, que encontre o seu lugar como ferramenta criativa e necessária para a construção de um Brasil verdadeiramente Nação!
Última Hora
Voltemos nossos olhos novamente para nossa própria experiência histórica. Já tivemos o jornal Última Hora, popular, nacionalista, capaz de refletir os interesses das classes trabalhadoras diuturnamente atacados pelo conjunto da imprensa oligárquica. Era um respiro democrático! Havia a polarização, a diversidade opinativa e política. Hoje há uma asfixia midiática anti-democrática. Não há sequer a controvérsia! E aquele jornal, que chegou a ter duas edições diárias, circulação nacional massiva, foi uma iniciativa encorajada por Vargas. Quando em 1954 a mídia conservadora comemorou a morte de Vargas, o Última Hora chorou e resistiu ao lado do povo que saiu às ruas. Quando em 1964, esta mesma mídia oligárquica suplicou e colaborou com o golpe de estado, o Última Hora resistia e defendia a democracia.
Jornalismo estratégico
Dentro da visão estratégica de um país que pretende desempenhar legitimamente um papel importante e protagonista no jogo do poder internacional - e era assim na Era Vargas e é assim novamente agora com Lula - nós, como povo brasileiro e como Nação, não podemos deixar de lado esta questão que continua a nos desafiar. Vários passos importantes foram dados, entre eles a conquista simbolizada na criação da TV Brasil. E mais ainda agora quando na próxima segunda-feira será lançada a TV Brasil Internacional, inicialmente para dialogar com os quase três milhões de brasileiros espalhados mundo afora. A iniciativa, louvável, trará com mais realismo a necessidade do Brasil também dialogar com outros povos já que pretende atuar para que as relações internacionais sejam democratizadas, reequilibradas e marcadas pela cooperação.
Vale lembrar que a Rádio Nacional, também criada na Era Vargas, chegou a ser a quarta mais potente emissora do mundo, além de ter programação em quatro idiomas, alcançando vários continentes e tendo em seu corpo de redatores brasileiros como Nestor de Hollanda, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Cecília Meirelles etc. A TV Brasil Internacional tem uma herança em que se apoiar e tem um caminho que pode recuperar para levar a mensagem de uma nação brasileira que se empenha por um mundo mais justo e baseado na cooperação, não nas sanções.
Será que as forças progressistas não deveriam encarar de fato esta tarefa da construção de um jornal popular, nacional, de ampla circulação, fazendo jornalismo na verdadeira acepção da palavra e recuperando para o jornalismo a missão de bem público e de ferramenta civilizatória hoje ignorada em boa medida pela mídia hegemônica no Brasil?
Será que estas forças que foram capazes de articular, se organizar, para resistir à ditadura, enfrentar o neoliberalismo e se fortalecer para chegar à presidência - um feito de proporções históricas numa sociedade com os arraigados esquemas dos donos do poder - não teria também a capacidade de construir um jornal e de praticar um jornalismo público, civilizador, humanista? Não se trata de estimular aqui nada contra as iniciativas para democratizar a informação no espaço digital. Trata-se de complementar, de articular, até porque com toda a importância e o grande efeito que comprovamos na internet, tuitar não esgota a necessidade de fazer jornalismo. Não se deve pretender apenas repercutir, contestar, confrontar a unanimidade conservadora da mídia hegemônica e seu anti-jornalismo em vias de deterioração acelerada.
Surra midiática diária
Há iniciativas importantes, a realização da Confecom é uma delas, a TV Brasil já citada, a recriação da Telebrás estatal, aliás, uma clara aplicação de decisão tomada na Confecom, são outras. Surgiram a Altercom, o Barão de Itararé, o Mídia Livre, todos os blogs e portais, os jornais e revistas alternativas, as TVs e rádios comunitárias etc mas, ainda assim, estamos em boa medida dispersos, desarmados no campo da comunicação e os interesses nacionais, populares, democráticos, levam várias surras por dia, todos os dias.
Vemos que algumas das forças que se articularam para levar Lula á presidência também poderiam coordenar-se para que milhões de brasileiros pudessem entrar também na Era de Guttemberg, ao mesmo tempo em que este seria, obviamente, um jornal também digital. Um jornal que permitisse chegar aos grotões, urbanos ou não, um instrumento para a discussão, a mobilização, a ação e a organização política nas mãos de uma militância carente de ações organizadas que já teve no passado.. Será que a união de certos fundos de pensão (tão lucrativos), centrais sindicais, empresários vinculados ao mercado interno não poderia enfrentar esta tarefa que sempre volta à baila?.
Há dois anos foi aprovado num congresso do PT a prioridade para a criação de um jornal de massas, mas não se realizou. Hoje, na Argentina há um Página 12, no México, há o La Jornada, na Bolívia, o jornal Cambio, criado por Evo Morales e que já é o de maior tiragem no país, com apenas 7 meses de nascido, rivalizando com o jornal conservador La Razón, que tem 70 anos. Na Venezuela, nasceu o Correio do Orenoco, está em todas as bancas, ainda que o governo tenha fortalecido a mídia pública de rádio e TV, sem contar que Hugo Chávez tem mais de 300 mil seguidores no twitter, que usa com entusiasmo. Aqui, desde o desaparecimento do Última Hora, estamos sem um jornal de ampla circulação e com capacidade de sustentar uma visão jornalística dos interesses nacionais e populares. É uma grande lacuna.
E nós?
Assim, a bronca de Lula nesta elite de jornalistas que se posiciona claramente contra o sucesso das iniciativas que visam levar o Brasil a ter um papel construtivo no mundo, sendo correta, será que não deveria também servir para provocar uma reflexão, certamente autocrítica, nas forças populares? O jornalismo ou o anti-jornalismo das elites cumpre o triste papel que lhes reserva a subordinação a interesses anti-nacionais. Mas, onde está o jornal das forças progressistas?
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