Reproduzo artigo de João Brant, Jonas Valente e Eloísa Machado, publicado na coluna Tendências/Debates da Folha de S.Paulo:
No meio da Copa do Mundo de 2006, quando ainda achávamos que o Brasil bateria a França e iria rumo ao hexa, o governo federal publicou o decreto nº 5.820, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital. Na mesma semana, duas decepções: o Brasil foi eliminado da Copa e decidiu abrir mão das possibilidades que a TV digital trazia para democratizar as comunicações. Quatro anos depois, temos chance de superar as duas coisas, pelo menos em parte. Uma depende de Dunga e dos 23 jogadores.
A outra depende do Supremo Tribunal Federal, que tem em sua pauta a Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pelo PSOL em 2007. A Adin contesta o fato de o decreto ter entregue, por meio de consignação, mais um canal para os atuais concessionários de TV.
O argumento da Adin foi reforçado pelas entidades Intervozes, Conectas e Pro Bono, que entraram como "amici curiae" na ação e veem aí duas inconstitucionalidades. Para compreendê-las, é preciso saber que a TV digital não é apenas uma evolução da TV analógica.
Além de melhorar a qualidade de áudio e vídeo das transmissões, a digitalização cria uma nova plataforma, viabilizando interatividade (colocando a TV em diálogo com a internet), recepção portátil (em celulares e pequenos aparelhos) e multiprogramação, ou seja, a transmissão de até 8 programações usando o mesmo canal.
Esse novo serviço deveria ser regulamentado e passar pelo processo de novas concessões, respeitando os artigos 175 e 223 da Constituição Federal, que preveem, inclusive, a apreciação das outorgas pelo Congresso Nacional.
Além de passar por cima desse procedimento, o decreto, ao entregar às emissoras o mesmo espaço que já ocupavam no espectro analógico (6 MHz), deixa de promover o pluralismo e a ampliação da liberdade de expressão, preceitos fundamentais de nossa Constituição.
A proibição a monopólios e oligopólios em rádio e TV, expressa no artigo 220, deveria ser uma diretriz para o ato que instituiu a TV digital.
Mas o decreto deixou de observá-la e privilegiou as atuais concessionárias, que já configuram um oligopólio de fato - as quatro emissoras líderes concentram 83,3% da audiência e 97,2% da receita publicitária. No caso da televisão, esse não é apenas um problema econômico, mas uma ameaça à democracia.
A TV digital poderia significar verdadeira revolução democrática, mas o modelo adotado no Brasil aprofunda as desigualdades, com a manutenção da concentração e ausência de competição. A continuar assim, nem deveríamos falar em TV digital - é a velha TV analógica transmitida em outra tecnologia.
Alguns dirão que, dois anos após o início das transmissões, qualquer tentativa de reconfigurar esse cenário irá afetar investimentos milionários feitos pelas emissoras. Há, na verdade, várias saídas para aproveitá-los. O mais importante, porém, é compreender que está em jogo a possibilidade de ampliar a liberdade de expressão e fortalecer a democracia. E liberdade de expressão e democracia não podem ser reféns de fatos consumados.
Ainda mais quando estes são flagrantemente inconstitucionais.
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