quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O coronelismo eletrônico no Brasil (9)

A ausência de regras contrárias à monopolização decorre da influência da mídia, que agenda a pauta política, sataniza os adversários e atemoriza os críticos, e também da promiscuidade nas relações com o poder público. Na lógica patrimonialista vigente no país, instituiu-se um tipo coronelismo eletrônico que atrela setores do Executivo e Legislativo às redes de comunicação. Apesar de a Constituição proibir quem estiver no “exercício de mandato eletivo” de ocupar funções de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio e TV, esta distorção se alastrou no país, tornando ainda mais difícil o regramento do setor. A mídia está incrustada no poder.

O finado Antônio Carlos Magalhães, ministro das Comunicações do governo José Sarney, foi um poderoso empresário do setor. A TV Bahia, retransmissora da TV Globo, não era, formalmente, do senador ACM, mas a gerente da emissora era Arlete Maron, mulher do parlamentar, e os seus filhos e netos detêm o grosso das ações da empresa [12]. O próprio ex-presidente José Sarney é forte na área de comunicação. Ele não é dono da TV Mirante, também afiliada da Rede Globo, mas os seus três filhos são sócios da empresa. Mesmo o ministro das Comunicações do governo Lula, Hélio Costa, tem vínculos com o setor, como acionista de canais de rádio e televisão em Barbacena, interior de Minas Gerais, e como ex-funcionário graduado da TV Globo.

“O vínculo entre radiodifusão e política é um fenômeno fortemente arraigado na cultura e prática política brasileira que perpassa os tempos da ditadura e os tempos da democracia” [13]. Nos dias finais do regime militar, o general João Batista Figueiredo assinou 91 decretos de concessões de canais de radiodifusão. Já José Sarney, o primeiro presidente civil pós-ditadura, bancou 1.028 outorgas. Dos agraciados, 92,3% (84 constituintes) retribuíram sua “gentileza” aprovando o presidencialismo e 90,1% (82) votaram na ampliação do mandato para cinco anos. “Na era FHC, foram autorizadas 1.848 licenças de RTV, repetidoras de televisão, sendo que 268 para entidades ou empresas controladas por 87 políticos, todos favoráveis à emenda da reeleição” [14].

Esta relação promíscua persiste até hoje. Pesquisa realizada em 2005 comprova que 40 geradoras filiadas à TV Globo (39,6% do total), 128 de todas as emissoras de TV (36,6%) e 1.765 de todas as retransmissoras de televisão do país (18,03%) eram controladas, direta ou indiretamente, por políticos. Outro estudo revela que um terço dos senadores e mais de 10% dos deputados federais eleitos para o quadriênio 2007-2010 controlam concessões de radiodifusão. Dos 76 deputados da atual Comissão de Ciência e Tecnologia, que discute os projetos do setor, 16 participam direta ou indiretamente do capital de alguma empresa da área de comunicação. Foi constituída, inclusive, uma Frente Parlamentar da Radiodifusão, que é composta por 171 deputados e 15 senadores.

Através deste poderoso lobby, os “barões da mídia” conseguem novas concessões, reforçando as teias da propriedade cruzada, além de fartos subsídios dos poderes públicos. No reinado de FHC, iludidas com a paridade dólar-real e animadas com o pretenso potencial da TV paga, as empresas do setor foram beneficiadas pelos recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Na seqüência, quase todas afundaram na crise, principalmente a TV Globo. Já no governo Lula, elas tentaram emplacar um programa especial do BNDES, o Pró-Mídia, que foi barrado pelo ex-presidente do órgão, Carlos Lessa – não por acaso, um dos alvos prediletos das emissoras de TV e dos jornalões [15]. Apesar da derrota parcial, as poderosas empresas do setor continuam mamando nos cofres do Estado, apesar do discurso contra os “gastos públicos” [16].

Os desafios da convergência digital

Como se nota, há no Brasil uma autêntica ditadura da mídia, com longa história de concentração, ramificações em todos os recantos da República e enorme capacidade de atuação. Este poder, no entanto, não é imbatível. Ele sofre crescentes questionamentos da sociedade e também padece de inúmeras contradições internas. Os avanços tecnológicos no setor, com o processo acelerado de convergência digital, afetam o status quo nesta área estratégica. Sem maior alarde, está em curso no submundo do capital um violento confronto entre as empresas de radiodifusão, “nacionais”, e as poderosas operadoras de telefonia, a maioria de capital estrangeiro.

“O duelo entre as emissoras de tevê e as operadoras de telefonia pela supremacia no futuro das comunicações se assemelha a uma briga entre Davi e Golias... As redes televisivas simbolizam um modelo posto em xeque pelos avanços tecnológicos. Juntas, elas movimentaram cerca de R$ 19 bilhões em 2006, cinco vezes menos que as telefônicas, cuja receita passa dos R$ 100 bilhões. Enquanto as emissoras mantêm a estrutura familiar de controle, enfrentam enormes dificuldades para captar dinheiro e assistem à chegada de novos competidores, como a internet, as operadoras pertencem a grandes grupos nacionais e estrangeiros, negociam ações nas bolsas de valores e obtêm linhas volumosas de crédito do BNDES e no mercado financeiro” [17].

Para contrabalançar o poder econômico das operadoras de telefonia, as empresas de radiodifusão contam com enorme capacidade de pressão política. A “bancada da comunicação” no parlamento é numerosa e ativa. Além disso, as redes nacionais de mídia têm presença assegurada no Palácio do Planalto, através do próprio ministro das Comunicações, e exercem forte poder de influência sobre a chamada opinião pública. Diante do poderio econômico das multinacionais, uma parcela das empresas nacionais de radiodifusão também já se associa ao capital estrangeiro, acelerando o perigoso processo de desnacionalização do setor estratégico das comunicações.

“Inabalável até a virada do século, a hegemonia exercida pelas cinco redes nacionais de televisão e seus grupos afiliados encontrou um adversário de peso viabilizado pela digitalização do setor... A entrada em cena dos grandes conglomerados mundiais de comunicação e telecomunicações, proporcionada pela alteração constitucional que permitiu o controle total ou parcial de setores por sócios estrangeiros, junto com o surgimento de novas mídias, vem transformando substancialmente o modelo de financiamento do mercado de comunicações. De uma hora para outra, as mídias tradicionais passaram a dividir o bolo publicitário com operadores de TVs pagas, provedores de internet e até guias e listas”. Em seis anos, a soma da verba investida em internet e na TV paga saltou de 1,69% para 5,07%, superando as rádios e aproximando-se das revistas [18].

Esta briga de titãs deve definir o futuro da mídia brasileira. O que está em jogo é quem comandará o lucrativo negócio das comunicações quando estiver concluído o processo de digitalização. Em poucos anos, não haverá muita diferença entre TV aberta ou a cabo, telefones fixos ou celulares e terminais de computadores. Prevendo este enorme potencial de lucros, as operadoras estrangeiras de telefonia querem produzir e distribuir conteúdos audiovisuais. Já as empresas de radiodifusão, que tanto atacaram a Constituição e pregaram a internacionalização da economia, agora afirmam que o texto constitucional proíbe a invasão das teles. O seu discurso nacionalista, em defesa da cultura brasileira, evidentemente soa falso, mas o temor com a desnacionalização é procedente.

Esta batalha está sendo travada a cada instante. Ela, inclusive, está na raiz da própria convocação da Conferência Nacional de Comunicação. Teles e empresas de radiodifusão tentarão resolver as suas pendengas, inclusive com a possibilidade de inusitadas alianças. A preocupação de ambas, porém, nada tem a ver com a urgência da democratização dos meios de comunicação. Para o capital, o que importa é o lucro. Caso as forças organizadas da sociedade, os movimentos sociais e os partidos de esquerda, não interfiram nesta contenda, teles e radiodifusores apenas dividirão o botim, reforçando a concentração e o poder de manipulação da ditadura midiática.


NOTAS


12- Leandro Fortes. “O poder que emana da tela”. Revista Carta Capital, 14/03/07.

13- Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes. “Rádios Comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)”. Revista Carta Capital, agosto de 2007.

14- Israel Fernando Bayma. “A concentração da propriedade dos meios de comunicação e o coronelismo eletrônico no Brasil”. Texto da assessoria técnica da bancada do PT, 27/11/01.

15- Tânia Caliari. “O negócio da notícia”. Revista Retrato do Brasil, setembro de 2006.

16- Hamilton Octavio de Souza. “Dinheiro público para a concentração privada”. Jornal Brasil de Fato, 07/07/07.

17- Ana Paula Sousa e Sérgio Lírio. “O ringe está pronto”. Revista Carta Capital, 14/03/07.

18- James Görgen. “Apontamentos sobre a regulação dos sistemas e mercados de comunicação no Brasil”. Democracia e regulação dos meios de comunicação de massa. Editora Fundação Getúlio Vargas, SP, 2008.


- Extraído do terceiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

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