Reproduzo importante e polêmico artigo do professor Marcos Dantas, publicado no sítio do Partido dos Trabalhadores (PT):
Em muito boa hora, há quase um mês, o professor Marco Aurélio Garcia, assessor especial do presidente Lula, deu uma declaração segundo a qual os canais a cabo estrangeiros são “quase tão importantes” quanto a IV Frota para o exercício de dominação por parte do Império. Pequena retificação: são mais importantes. A dominação política e cultural do “esterco” (palavra de Garcia) por eles despejado em nossa sociedade é muito mais difícil de ser enfrentada e combatida do que uma eventual dominação direta e explícita que a IV Frota por hipótese ameaçaria.
Nossos valores éticos, nossa visão de mundo, nossa posição diante da vida, nossos sonhos e projetos, nossos compromissos com o próximo e com a sociedade, nossa crença na nossa Nação, tudo isso resulta de nosso ambiente familiar, das relações de amizade, da educação formal e informal e, em grande medida, daquilo que nos alegra ou nos entristece, que nos emociona ou motiva, que passa-mos a crer ou descrer a partir do que lemos ou vemos em livros, jornais, revistas e, hoje em dia, numa dimensão impensável quando o autor dessas linhas era criança, em canais de TV e portais de internet.
Grande parte das nossas referências cotidianas apóia-se no que vemos e ouvimos na televisão. Grande parte da formação psicológica, mental e intelectual de crianças e jovens brasileiros, hoje, finca raízes, para o resto de suas vidas, nos seriados de TV, desenhos animados, filmes que lhes penetram as retinas após horas fixadas ante alguma tela de televisão ou de computador.
Risco de grande retrocesso
Salvo engano, esta terá sido a primeira vez que um integrante do núcleo presidencial manifestou-se tão explicitamente sobre a penetração cultural e ideológica, vulgar, colonizadora, hedonista e consumista, promovida pelos canais pagos de TV, quase todos estadunidenses, em nosso país.
Ou seja, o governo falou. Considerando que há mais de dois anos tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 29 (PL-29) que, visando dar novo ordenamento à regulamentação da TV por assinatura, tomou, a partir de substitutivo apresentado pelo deputado federal Jorge Bittar (PT-RJ), exatamente um rumo que vai ao encontro das preocupações de Marco Aurélio Garcia, tal manifestação pode estar sinalizando uma nova postura, mais atenta e ativa, do governo, na tramitação daquele projeto.
Sim, porque até agora, embora se saiba que, em conversas de gabinete ou pela ação direta, mas discreta, de alguns dos seus altos dirigentes, a Casa Civil e o MinC tenham muito ajudado a construir os avanços contidos na PL-29, o governo enquanto tal vinha preferindo deixar que o processo parlamentar seguisse o seu curso próprio, a nele fazer sentir a sua força, como o faz sempre que lhe convém.
Pois o processo parlamentar, que muito avançara nas comissões de mérito, especialmente na de Ciência, Tecnologia e Comunicação, está ameaçado de sofrer um grande retrocesso. Na Comissão de Constituição e Justiça, alguns deputados levantaram fortes questionamentos à constitucionalidade da PL-29, brandindo argumentos que, até agora, passavam despercebidos. Em poucas palavras, esses deputados lembram que, pela Constituição, somente as atividades de radiodifusão podem sofrer algum tipo de controle público quanto à licença para prestar o serviço e quanto aos conteúdos por ela fornecidos. Tais controles não se aplicariam às telecomunicações, uma atividade prestada em “regime privado”, logo, por extensão ao novo “serviço de acesso condicionado” que a PL-29 pre-tende criar.
Urgência da reforma na Constituição
De fato, a PL-29, desde suas primeiras versões, deixa claro que ela não se aplica à radiodifusão, assim tentando se ajustar à Constituição. Também define, como a anterior Lei do Cabo definia, o serviço de televisão por assinatura como um serviço de telecomunicações. E aqui começam os problemas, problemas estes derivados do fato elementar de que, em toda essa discussão, estar-se buscando contornar a questão central da inadequação da nossa própria Constituição ao processo tecnológico, econômico e político denominado “convergência de mídias”.
Simplesmente, quando a Constituição tratou de radiodifusão como um segmento particular das telecomunicações sobre o qual caberia aplicar regras mais específicas e exclusivas, não existia a TV por assinatura, nem as comunicações móveis “celulares”, nem internet, nem TV digital... Ao que parece, a partir da intervenção da CCJ, os legisladores e o próprio governo não mais poderão se iludir: precisamos de uma legislação que englobe todo o processo convergente, começando por uma reforma na própria Constituição.
Em termos corretamente teóricos, provavelmente corretos também juridicamente e certamente consuetudinários, regular sobre telecomunicações exclui considerar a produção ou veiculação de conte-údos relacionados a entretenimento, jornalismo, educação, cultura etc. Telecomunicações se definem como atividades neutras relativamente àquilo que é comunicado pelos seus sistemas. Dito mais claramente: a receita e o lucro resultam da oferta de um serviço que permite a transmissão física de um sinal, não importando o conteúdo significativo, logo político-cultural, desse sinal. Uma operadora de telecomunicações é uma mera transportadora de sinal.
As operadoras e o pedágio
No entanto, basta olhar qualquer publicidade de operadora de comunicações móveis “celulares” para perceber que o negócio delas já deixou de ser o transporte do sinal. Elas vendem práticas sociais, acesso à internet, inclusive, em alguns pacotes, canais de televisão. A receita e lucro dessas operadoras dependem de conteúdo. Da mesma forma, a receita e lucro de uma operadora de televisão por assinatura depende de... programação de televisão.
Numa analogia simples, para ainda melhor entender, a operadora de telecomunicações funcionaria como um concessionário privado de estradas de rodagem: retira os seus ganhos do que puder cobrar pelo tráfego de veículos, para isto precisando assegurar as melhores e mais livres condições possíveis de tráfego. Se, porém, o concessionário da estrada de rodagem passa também a oferecer, por exemplo, um serviço de transporte interurbano por ônibus, ou de transporte de carga por caminhão, ele começa a extrapolar a sua função social e econômica. No jargão das comunicações, ele estaria também oferecendo “conteúdo”. Claro que, ao fazer isto, a lei pode permiti-lo ou não. Ou, quem sabe?, vai fazê-lo devido a um vazio legal... Na verdade, é o que acontece, hoje, na norma legal brasileira para as comunicações.
Quando a Constituição foi redigida, em 1988, não se podia antecipar essa hipótese. A única tecnologia disponível para o transporte a longa distância de conteúdos jornalísticos ou culturais por meio de sinais eletromagnéticos, era a radiodifusão hertziana atmosférica. Excluída esta, só a velha imprensa de Gutenberg, na forma de jornais, livros e revistas, ainda assim, no caso de longa distância, somente se por avião ou caminhão...
O enorme poder da radiodifusão
O poder da radiodifusão atmosférica para transmitir a longa distância e em tempo real eventos jornalísticos e culturais, fez dela um poderoso instrumento de mudança social, para o bem ou para o mal. É diferente da imprensa escrita que, devido aos custos de distribuição, atua sobretudo localmente, ou, se mais amplamente, pode apenas gerar mudanças quase metastáveis. Desde os seus primórdios, o problema político-cultural da radiodifusão não se reduzia à engenharia do sinal, mas a seus impactos na formação das mentalidades, na arregimentação ideológica, na produção de consu-mo, nos rumos da mudança social, em fim. Numa palavra, conteúdo. Por isto mesmo, a radiodifusão sempre foi muito controlada, não raro estatizada, inclusive em países liberal-democráticos, como o Reino Unido dos anos 1930-1960 (a BBC estatal deteve o monopólio da radiodifusão, de 1926 a 1954).
A Constituição brasileira tão somente abrigou esse modelo tradicional. Ocorre que, de lá para cá, esse poder – esse exato poder – da radiodifusão estendeu-se a outras plataformas tecnológicas: o cabo, o satélite, o celular.
Conseqüentemente, todo o modelo de negócios mudou radicalmente. Nas freqüências usadas pela radiodifusão tradicional cabem poucos canais de TV e uma centena de emissoras de rádio. Mas nas freqüências – sim, também são freqüências hertzianas – usadas pelas transmissões por cabo, satélite ou celular cabem centenas de canais de TV, muitos outros de rádio, além, também, de serviços interativos, logo, internet, num salto quantitativo que dá outra qualidade às condições do próprio negócio.
Por um lado, continuamos falando de conteúdos – e tudo o que isso implica em termos de mudança social, agenciamento cultural, interesse nacional. Exatamente como sempre o foi na radiodifusão. Por outro lado, estamos falando da incorporação às freqüências antes estreitas da radiodifusão de uma amplíssima gama de novas freqüências e, com elas, novos recursos econômicos e políticos. Onde, antes, tínhamos umas tantas emissoras de TV ou rádio, agora temos centenas de canais de televisão, rádio ou internet que, simplesmente, para funcionarem, sequer precisam, até agora, de alguma licença do Estado – enquanto que os canais de TV ou rádio atmosféricos continuam a necessitar, para funcionarem, de alguma licença do Estado. E se submeterem às suas regras.
Ora, nada diferencia, em seus impactos políticos e culturais, essas centenas de novos canais, dos antigos poucos canais atmosféricos tradicionais. Por que então não submetê-los também às mesmas regras? É legítimo pretender que o constitucionalista, ao se preocupar com as finalidades educativas, culturais, éticas, etc., da radiodifusão, poderia, por simples extensão, visar também toda e qualquer comunicação social eletrônica, não importando por qual plataforma. Apenas, estas outras eram então inexistentes. Foi por assim entender, em coerência com o espírito da Constituição, que os relatores Bittar e, depois, Lustosa, produziram, na comissão de C&TCI, o inovador projeto que viria a ser enviado à CCJ.
Um passo na inclusão social
Depois da manifestação de Marco Aurélio Garcia, é de se esperar que o governo venha a dar atenção oficial à PL-29. Para isso, tem inclusive o total respaldo político da Iª Conferência Nacional de Comunicação. São muitas as propostas aprovadas, algumas delas por consenso (isto é, com o voto também dos empresários) que pedem isonomia de tratamento entre a TV aberta e a fechada, nos termos da Constituição. Aliás, algumas pedem até que as cotas para conteúdos nacionais e regionais atinjam 50% dos pacotes ou da programação de canais. Vá lá que, hoje, 50% será um certo exagero, mesmo porque não temos produção audiovis ual para tanto.
Mas com o fomento de recursos públicos (também demandado pela Confecom) e com garantia mínima de cotas, tudo baixo os princípios do capítulo dos artigos 220 a 223 da Constituição, o Brasil estará aproveitando a oportunidade aberta por essa completa refundação da comunicação social que vem a ser a “convergência de mídia” para avançar mais um passo na inclusão social e afirmação de soberania nacional, ao abrir centenas de canais para a nossa poderosa, rica, diversificada, multifacetada cultura. Resta esperar que os parlamentares respeitem o espírito da Constituição e, enquanto não a reformam de vez, saibam preservá-lo no que já se demonstrou ser possível na proposta contida na PL-29.
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