Reproduzo entrevista concedida ao jornalista Laurent Etre, publicada no jornal L`Humanité:
Sarkozy rompeu unilateralmente o contrato moral que tinha feito com os franceses, acusa Ignacio Ramonet, presidente da Associação Memória das Lutas. Para ele, "seria necessária uma jornada europeia de ação".
Na sua opinião, o que representa a amplitude da mobilização pela defesa das aposentações?
Pouco a pouco, todos vão ganhando consciência de que o projeto governamental vai atingi-los e que, num sentido, isto vai pagar-se em anos de vida. Para além disso, há um mal-estar social mais global, que não se pôde exprimir desde que se desencadeou a crise, financeira e depois econômica, em 2008. Observamos igualmente a rejeição de um certo modo de governo, feito de arrogância, de soberba, de auto-suficiência. Do que se pode chamar de “espírito de Fouquet”, que foi ilustrado recentemente pelo caso Woerth.
O poder obstina-se a negar o envolvimento de um ministro num caso que o liga a milionários, a classes extremamente favorecidas. A população começa a ficar farta. E tenho a impressão que, à medida em que se sucedem as jornadas de protesto, cada cidadão toma consciência de que pode associar-se ao movimento. Assim, este vai ganhando amplitude. Progressivamente, o movimento traduz o mal-estar de cada um.
Nicolas Sarkozy estimou que o dossiê reformas estava fechado. Que fazer diante de uma tal surdez?
No plano da legalidade parlamentar, o espaço de tempo é relativamente curto porque se estima que de hoje até quinta o Senado acabará por votar esta lei, que voltará então à Assembleia. E daqui a uma dezena de dias, do ponto de vista desta legalidade parlamentar, o caso estará fechado. Mas em democracia, há também outras legitimidades. Vemos assim exprimir-se, neste momento, a legitimidade social, aliás reconhecida pela Constituição através do direito de greve e do direito de manifestação.
Mesmo que o poder se mantenha surdo, esta legitimidade é maioritária no país, como mostram todas as sondagens. Seria imprudente por parte do governo teimar em não levar em conta senão uma única legitimidade e não reconhecer as outras, perfeitamente legais em democracia. Além disso, ninguém ignora que o presidente da República afirmou, no seu programa presidencial, que não tocaria na reforma aos 60 anos. Ele rompeu unilateralmente o contrato moral que tinha feito com os franceses. Por isso, temos o direito de invocar ainda uma outra legitimidade, a da democracia participativa: já que o presidente muda o seu programa, deve submetê-lo aos eleitores. É por isso que há quem peça, a meu ver com razão, a realização de um referendo.
Outros movimentos desenvolvem-se na Europa, atualmente, num grande número de países, contra os planos de austeridade. A sequência do braço-de-ferro em França vai ocorrer do lado das mobilizações à escala europeia?
Há manifestações muito importantes num grande número de países, na Espanha, em Portugal, na Itália, na Romênia... Na Grécia, houve seis greves gerais. Logo, realmente, seria necessária uma jornada europeia de ação. Acrescento a isso que alguns dos países onde os protestos estão sendo mais fortes são governados pela social-democracia. Por isso, muitos cidadãos se perguntam se a social-democracia, quando está no poder, acaba por aceitar ela própria as diretivas do Fundo Monetário Internacional, ele mesmo dirigido por um social-democrata. Há, consequentemente, uma hipoteca, que os sociais-democratas devem levantar. Em relação a isto, só podemos alegrar-nos de que, na França, o PS anuncie que, se voltar ao poder, restabelecerá a idade legal de 60 anos. Mesmo que não descarte a possibilidade de fazer uma reforma do sistema de reformas.
Em que sentido podemos dizer que a questão das reformas é um assunto de civilização?
Construímos sociedades mais avançadas, mais civilizadas, na medida em que criamos sistemas de reforma que permitissem eliminar um dos grandes terrores do Ocidente, a angústia dos velhos. Hoje, é isso que está sob ameaça. Todos sabem que a questão das reformas implica o conjunto das famílias, consequentemente a sociedade, portanto a civilização. É preciso sublinhar que, em certos países, uma das medidas que a esquerda implanta, quando chega ao poder, é precisamente a redução da idade de ida para a reforma. A Bolívia de Evo Morales reduziu-a de 65 para 58 anos! Isso corresponde a uma aspiração profunda das populações.
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