quinta-feira, 14 de junho de 2012

As memórias de uma guerra suja

Por Marcelo Semer, no blog Sem Juízo:

Recém-instalada, a Comissão da Verdade já tem um grande e inédito material para destrinchar os obscuros anos da ditadura.

Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS no Espírito Santo, assassino condenado e convertido pela fé, listou em livro-depoimento, um sem número de crimes que praticou nos anos de chumbo, indicando seus mentores, comparsas e uma grande rede de colaboradores da violência nos porões.


“Memórias de uma Guerra Suja” (Topbooks), depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, já vem causando uma enorme repercussão –menos na grande imprensa onde é sistematicamente ignorado.

Comoveu seus primeiros leitores pela perversidade: a confissão do ex-policial sobre a incineração, no forno de uma usina carioca, de vários corpos de jovens tragados pela tortura.

Se não fosse pela necessidade imperiosa de julgar atrocidades como essas, só a oportunidade das famílias dos desaparecidos de conhecer o destino de seus entes, já obrigaria a Comissão da Verdade a se debruçar imediatamente sobre tais fatos.

Alguns relatos são tão detalhados e precisos que a verdade exala de seus poros. Em outros momentos, a aparente onipresença do autor lança algumas dúvidas sobre a autenticidade.

Mas como em todo processo, um depoimento isolado jamais é suficiente para atingir a verdade.

“Memórias” é, assim, um ponto de partida, não um porto de chegada.

Comparando-se ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, a quem teria inclusive sucedido após a morte (cujas circunstâncias macabras também relata), Guerra se insere em alguns dos mais conhecidos episódios da repressão: a chacina da Lapa, a morte de Alexandre Baumgarten, o atentado frustrado ao Riocentro.

Mas sua aparente invisibilidade, eis que jamais mencionado em listas e depoimentos de militantes ou familiares de desaparecidos, pode-se dever a uma inusitada circunstância: Guerra alega que jamais torturou.

Matou e ocultou cadáveres, aos borbotões, mas quem cruzou com ele não teria ficado vivo para contar a história.

O livro não é romanceado e tampouco se enquadra no ‘new-journalism’ – há muito mais confissão do que reportagem.

Não é de fácil leitura e a urgência em publicá-lo certamente prejudicou uma montagem mais agradável. Mescla sem aviso prévio passagens em primeira e terceira pessoa, repete notas exaustivamente e obriga o leitor a um zigue-zague frequente, entre o texto e os anexos. Ainda assim é uma leitura obrigatória.

Com ela é possível entender um pouco mais de como foi construída a repressão submersa no país e qual a extensão do legado que ela nos deixou.

Guerra explica que foi a expertise que já tinha como um policial-matador que o valorizou na colaboração com a ditadura. A tática de simular resistências já era de há muito praticada pela polícia –a “vela (arma) na mão do defunto”- e foi incorporada ao cotidiano das mortes pelo Estado autoritário.

A sofisticação da repressão se deu em torno das bem articuladas comunidades de informação que reuniam militares de várias forças, agentes de várias polícias e até mesmo operadores graduados do direito –irmanados na prática dos crimes contra a humanidade. Guerra faz menção, inclusive, a uma suposta integração de procuradores da República a esta comunidade, bem como indica inúmeros de seus financiadores privados.

Algumas passagens são dignas de romance de espionagem.

O agente da CIA que proporcionava o ingresso de armas no país, os encontros de mandantes e assassinos em uma sauna, a maleta com metralhadora embutida, que atirava ao abrir.

Mas o relato que resume de forma mais contundente o fim desse processo está longe de parecer ficção.

Guerra explica o que aconteceu aos operadores da repressão quando a luta da linha-dura para sufocar a abertura foi derrotada: “Alguns que se escondiam sob falsas identidades acabaram incorporados à máquina governamental. Viraram servidores públicos. Outros tiveram sorte diferente.... o pessoal responsável pelas operações mais perigosas foi absorvido em outras organizações, a maioria relacionada à contravenção”.

O ex-policial, por exemplo, admitiu ter se abrigado no jogo do bicho após o fim do regime militar.

O relato põe por terra a recorrente ideia de que a repressão significou mais segurança e a democracia é que tem sido permissiva com o crime.

Ao revés, o recrudescimento da criminalidade é um dos mais perversos e cruéis legados da própria ditadura –desde o incremento do contrabando de armas à experiência aguda dos grupos de extermínio.

Nas palavras de Guerra, que vivenciou na pele essa transição e esteve dos dois lados do balcão:

“A decadência dos aparelhos de combate ao comunismo coincide com o crescimento de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, à formação de milícias e principalmente ao jogo do bicho. O know-how conquistado com o aparato do Estado agora serviria ao submundo do crime organizado”.

Cada vez mais se comprova que conhecer o passado é indispensável para entender o presente.

1 comentários:

Regina disse...

Acho que todos deveriam ler o livro para ter uma idéia do que realmente se passou no país.Além de todas as atrocidades relatadas, fica fácil de perceber como os militares fizeram uso da corrupção, para atingir seus objetivos. Fica fácil de ver onde a mídia fez escola e aí descobrimos o que fizeram com o país e com sua gente.

Acho que vc, Miro, deveria fazer sua resenha ou seu comentário a respeito.