Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
A imprensa de modo geral, e os jornais brasileiros em particular, devem deixar esmorecer, nos próximos dias, o noticiário sobre o novo papa. No sábado (16/3), com exceção do Estado de S.Paulo, os principais diários de circulação nacional já dedicavam as manchetes à antecipação da campanha presidencial de 2014, com a esperada louvação de um candidato oposicionista e as habituais críticas ao governo. Já é um mantra recitado dia sim, dia não, e parte do que os jornais consideram sua missão crítica.
Sobre os eventos de Roma, a imprensa tratava de agasalhar a versão oficial de que o cardeal Jorge Mario Bergoglio nunca teve ligações com a ditadura militar argentina. O papa Francisco estaria, portanto, livre de prestar contas de seu passado.
No domingo (17), os jornais se dividiam entre as tarefas de encaminhar o debate diretamente para o campo religioso, com a Folha de S.Paulo tendo um surpreendente ataque de pieguice, a afirmar em título na primeira página que “papa deseja uma igreja pobre e para os pobres”.
O Estado de S. Paulo também deixava para trás as explicações sobre o passado de Bergoglio com uma espécie de justificativa na manchete: “Papa diz que natureza da Igreja é espiritual, não política”.
Apenas o Globo, numa manobra que claramente tenta mesclar o campo político ao campo religioso, afirma em grandes letras que “novo papa muda jogo do poder na América do Sul”.
Mais do que uma ousadia editorial, trata-se da manifestação de um desejo, aquilo que em inglês se chamaria wishful thinking: a imprensa deseja que o novo papa, por ser argentino e opositor declarado da política econômica que predomina na região, venha a liderar as forças conservadoras que se opõem ao prosseguimento dos projetos de promoção social que vêm mudando o perfil da maioria dos países da América Latina.
Nesse esforço, o leitor distraído não há de notar que certas expressões que antigamente os esquerdistas usavam para se referir à caridade religiosa são de repente viradas do avesso: agora as políticas sociais que tiram milhões da miséria é que são “assistencialistas” e “clientelistas” e seus autores são chamados de “populistas”.
O escândalo ficou no ar
Na segunda-feira (18/3), os jornais consolidam a acomodação do tema no campo religioso e absorvem a estratégia de comunicação da igreja, ao mostrar um Francisco simples, afável e popular, quebrando protocolos e se deixando tocar pelos fiéis como um astro pop que desce do palco.
Também se podem registrar as tentativas de resgate da credibilidade por parte de alguns analistas que deixaram a desejar durante o período de adivinhações sobre o nome do sucessor de Bento 16. Em um texto, Francisco é o papa que vai reformar a igreja, em outro é o jesuíta que vai conciliar a religião com a ciência, num terceiro ele aparece como o disciplinador feroz que irá investigar e punir os casos de abuso sexual cometidos por sacerdotes católicos.
Enquanto se dissipa o fenomenal entusiasmo da imprensa pela igreja, nascido do ato inédito, em tempos modernos, da renúncia de um papa, também se acumulam os resíduos de uma cobertura feita à base de declarações, mitos e chutes de todas as distâncias. Como se o Espírito Santo, depois de haver soprado sobre os vates da imprensa, decidisse recolher-se ao seu lugar na Santíssima Trindade.
Assim como não foram capazes de sequer se aproximar da hipótese de o cardeal Bergoglio vir a ser eleito papa, os vaticanistas reconhecidos e os “especialistas” instantâneos ungidos apressadamente para a viagem a Roma voltam à tarefa de rastrear novos assuntos, depois de terem levantado tanta poeira.
Por exemplo, desde que surgiu o boato de que o papa Bento 16 havia recebido um dossiê contendo denúncias escandalosas sobre integrantes da cúria romana, os jornais agasalharam a informação como sendo absolutamente verdadeira, estimulando fantasias dignas dos mais grotescos filmes pornográficos. Corre pela internet, eventualmente com o timbre de jornalistas, a teoria segundo a qual Ratzinger foi chantageado a renunciar para evitar a publicação de imagens altamente corrosivas envolvendo cardeais em saunas e encontros sexuais. Mas nunca foi apresentada ao público uma linha sequer de tal dossiê, ou revelado qualquer detalhe por fonte idônea que lhe emprestasse alguma credibilidade.
Da mesma forma, a imprensa vem dando curso à enxurrada de denúncias sobre pedofilia na igreja católica, sem considerar que todo pedófilo procura atividades que o coloquem em contato com potenciais vítimas – seja em paróquias, em escolas infantis ou em grupos de escoteiros.
Confrontar as estatísticas de casos de pedofilia envolvendo padres católicos com os números de outros grupos, como o de pastores evangélicos, pais-de-santo, monitores de acampamentos e assistentes sociais, seria o mínimo de cuidado para oferecer ao público uma noção mais realista do problema.
Mas a cobertura fenomenal sobre a mudança no Vaticano se esvai sem que a imprensa tenha ido além da superfície.
Sobre os eventos de Roma, a imprensa tratava de agasalhar a versão oficial de que o cardeal Jorge Mario Bergoglio nunca teve ligações com a ditadura militar argentina. O papa Francisco estaria, portanto, livre de prestar contas de seu passado.
No domingo (17), os jornais se dividiam entre as tarefas de encaminhar o debate diretamente para o campo religioso, com a Folha de S.Paulo tendo um surpreendente ataque de pieguice, a afirmar em título na primeira página que “papa deseja uma igreja pobre e para os pobres”.
O Estado de S. Paulo também deixava para trás as explicações sobre o passado de Bergoglio com uma espécie de justificativa na manchete: “Papa diz que natureza da Igreja é espiritual, não política”.
Apenas o Globo, numa manobra que claramente tenta mesclar o campo político ao campo religioso, afirma em grandes letras que “novo papa muda jogo do poder na América do Sul”.
Mais do que uma ousadia editorial, trata-se da manifestação de um desejo, aquilo que em inglês se chamaria wishful thinking: a imprensa deseja que o novo papa, por ser argentino e opositor declarado da política econômica que predomina na região, venha a liderar as forças conservadoras que se opõem ao prosseguimento dos projetos de promoção social que vêm mudando o perfil da maioria dos países da América Latina.
Nesse esforço, o leitor distraído não há de notar que certas expressões que antigamente os esquerdistas usavam para se referir à caridade religiosa são de repente viradas do avesso: agora as políticas sociais que tiram milhões da miséria é que são “assistencialistas” e “clientelistas” e seus autores são chamados de “populistas”.
O escândalo ficou no ar
Na segunda-feira (18/3), os jornais consolidam a acomodação do tema no campo religioso e absorvem a estratégia de comunicação da igreja, ao mostrar um Francisco simples, afável e popular, quebrando protocolos e se deixando tocar pelos fiéis como um astro pop que desce do palco.
Também se podem registrar as tentativas de resgate da credibilidade por parte de alguns analistas que deixaram a desejar durante o período de adivinhações sobre o nome do sucessor de Bento 16. Em um texto, Francisco é o papa que vai reformar a igreja, em outro é o jesuíta que vai conciliar a religião com a ciência, num terceiro ele aparece como o disciplinador feroz que irá investigar e punir os casos de abuso sexual cometidos por sacerdotes católicos.
Enquanto se dissipa o fenomenal entusiasmo da imprensa pela igreja, nascido do ato inédito, em tempos modernos, da renúncia de um papa, também se acumulam os resíduos de uma cobertura feita à base de declarações, mitos e chutes de todas as distâncias. Como se o Espírito Santo, depois de haver soprado sobre os vates da imprensa, decidisse recolher-se ao seu lugar na Santíssima Trindade.
Assim como não foram capazes de sequer se aproximar da hipótese de o cardeal Bergoglio vir a ser eleito papa, os vaticanistas reconhecidos e os “especialistas” instantâneos ungidos apressadamente para a viagem a Roma voltam à tarefa de rastrear novos assuntos, depois de terem levantado tanta poeira.
Por exemplo, desde que surgiu o boato de que o papa Bento 16 havia recebido um dossiê contendo denúncias escandalosas sobre integrantes da cúria romana, os jornais agasalharam a informação como sendo absolutamente verdadeira, estimulando fantasias dignas dos mais grotescos filmes pornográficos. Corre pela internet, eventualmente com o timbre de jornalistas, a teoria segundo a qual Ratzinger foi chantageado a renunciar para evitar a publicação de imagens altamente corrosivas envolvendo cardeais em saunas e encontros sexuais. Mas nunca foi apresentada ao público uma linha sequer de tal dossiê, ou revelado qualquer detalhe por fonte idônea que lhe emprestasse alguma credibilidade.
Da mesma forma, a imprensa vem dando curso à enxurrada de denúncias sobre pedofilia na igreja católica, sem considerar que todo pedófilo procura atividades que o coloquem em contato com potenciais vítimas – seja em paróquias, em escolas infantis ou em grupos de escoteiros.
Confrontar as estatísticas de casos de pedofilia envolvendo padres católicos com os números de outros grupos, como o de pastores evangélicos, pais-de-santo, monitores de acampamentos e assistentes sociais, seria o mínimo de cuidado para oferecer ao público uma noção mais realista do problema.
Mas a cobertura fenomenal sobre a mudança no Vaticano se esvai sem que a imprensa tenha ido além da superfície.
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