Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
Logo depois da divulgação do documento “Por um Brasil justo e democrático”, abriu-se uma ampla discussão a respeito das mudanças necessárias no rumo da política econômica, tal como ela vem sendo capitaneada pelo Ministério da Fazenda. Com a confirmação das consequências sociais e econômicas bastante negativas que estão sendo reveladas pelo austericídio em marcha, a base política do governo vem sendo pressionada por amplos setores da sociedade, que clamam por alterações.
Assim, criou-se uma certa expectativa em torno da publicação de um documento que estaria sendo preparado pela direção do PMDB, com o objetivo também de criticar a política econômica oficial e sugerir alternativas de rota a seguir. Tendo em vista o passado desenvolvimentista de diversas proposições do partido, chegou-se a cogitar que algo de positivo poderia ser apresentado à sociedade. Afinal, trata-se de uma agremiação que já fora presidida por figuras como Ulysses Guimarães e que tivera como quadro formulador personalidades como o renomado economista Celso Furtado.
No entanto, a leitura do texto “Uma ponte para o futuro” conduz o leitor a uma enorme frustração. O resultado final evidencia a captura das principais instâncias peemedebistas pelo discurso conservador e neoliberal, onde as posições de recém-filiados como Henrique Meirelles e Katia Abreu parecem ter se consolidado e afastado qualquer “ameaça” de heresia progressista. Fez-se questão de apagar qualquer referência ao honrado passado do partido, onde o desenvolvimentismo se fazia presente em boa parte das proposições dele emanadas.
O balanço que se pode fazer do diagnóstico e das sugestões que a Fundação Ulysses Guimarães exibe em suas páginas na internet é decepcionante. Os primeiros parágrafos ainda permitem ao leitor mais otimista manter uma chama de esperança. Ali estão esboçados alguns raciocínios que podem enganar pelo que aparentam:
“Este programa destina-se a preservar a economia brasileira e tornar viável o seu desenvolvimento, devolvendo ao Estado a capacidade de executar políticas sociais que combatam efetivamente a pobreza e criem oportunidades para todos.”
No entanto, a sequência do programa revela que as palavras chave como desenvolvimento, políticas sociais ou pobreza estão ali apenas para edulcorar o conteúdo de retrocesso que se revelará nas demais páginas, que tratam de forma mais essencial das propostas para a crise atual do Brasil.
Ao reconhecer as dificuldades que o nosso País passou a enfrentar nos últimos tempos, o texto comunga das razões que os representantes do financismo costumam apresentar para o quadro que vivemos. Tratar-se-ia de uma condução equivocada que o governo havia adotado nos anos anteriores, quando optou por uma saída desenvolvimentista para recuperar a crescimento com inclusão e com redução das desigualdades. Assim, em razão dos erros da política econômica que havia decidido por reduzir as margens de ganhos dos bancos e orientado uma retomada pelo aquecimento do mercado interno, o discurso ortodoxo alerta para a necessidade de purgar sofrimento para superar a crise. O documento do PMDB não faz por menos:
“Nosso desajuste fiscal chegou a um ponto crítico. Sua solução será muito dura para o conjunto da população, terá que conter medidas de emergência, mas principalmente reformas estruturais.”
O texto faz eco à avaliação catastrofista repercutida pelos grandes meios de comunicação, segundo a qual estaríamos todos à beira do abismo. A suposta irresponsabilidade fiscal das fases anteriores da Presidente Dilma teria revelado uma tendência inescapável de nossa verdadeira situação. A estrutura de nossa capacidade arrecadatória não consegue mais fazer frente às exigências impostas pelo modelo de direitos sociais expressos na Constituição de 1988. De acordo com tal visão, esse ensaio de Estado de Bem Estar Social não passaria de um sonho irresponsável de uma noite de verão. Agora, o momento seria de desconstrução desse arcabouço de proteção social.
Ao limitar a solução do equacionamento de receitas e despesas ao plano da aritmética rasteira e simplista, o documento conclama às mudanças constitucionais redutoras de conquistas e de direitos históricos, todos de amparo e acolhimento da grande maioria da população brasileira. E assim, não tenta nem dourar a pílula no anúncio da sentença:
“Para isso é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação,”
Não satisfeita com as propostas de eliminação de direitos como o SUS e de acesso à educação pública e universal, a proposição evolui em direção ao núcleo duro da vitoriosa política de inclusão da última década, representado pela política de valorização do salário mínimo e da estratégia de ampliação e fortalecimento da previdência social.
“Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais. (...) Além disso, é indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício ao valor do salário mínimo”
O caminho escolhido para tanto é adotar a conhecida receita do “mais-do-mesmo”, com a obediência cega e surda à cartilha de Joaquim Levy para alcançar o crescimento: cortar, cortar e cortar. Ao comungar da crença de que a busca do superávit primário é o modo mágico de solucionar a crise e alcançar o paraíso, o texto repete os chavões das editorias de economia e finanças:
“O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB.”
Ao evitar qualquer menção ao incômodo debate a respeito da carga de juros e serviços da dívida pública sobre as despesas da União, o PMDB avança e também recusa a alternativa de redução da taxa de juros para a retomada do crescimento. Assim, cabe-nos sentar e esperar pacientemente que a elevação ainda maior da SELIC propicie que a inflação volte ao patamar de 4,5% ao ano. Afinal, eles repetem o blá-blá-blá dos que se incomodam com a retirada de quaisquer privilégios do rentismo parasita:
“Qualquer voluntarismo na questão dos juros é o caminho certo para o desastre. Tentativas anteriores de baixar a taxa básica, sem amparo nos fundamentos, fracassaram e cobraram o seu preço.”
Não contentes até aqui, os autores avançam no leito da redução do espaço do Estado na economia e propõem o aprofundamento do processo de privatização. Apontam um conjunto amplo de setores de serviços públicos e de infraestrutura a serem transferidos para o capital privado. De forma surpreendente, propõem inclusive o fim do modelo de partilha de extração de petróleo, prejudicando a Petrobrás e abrindo o caminho para a entrada ainda maior das multinacionais. E o fazem sem mencionar nenhuma proposta efetiva de alteração de nossa estrutura tributária que alivie o seu nível atual de regressividade e imponha a contribuição efetiva aos setores de maior renda e patrimônio de nossa sociedade.
“Executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência;”
Ao mencionar rapidamente também a política de relações exteriores, o documento avança proposições perigosas e levianas de inversão completa de prioridades. Assim, adota um discurso nada ingênuo do “liberalismo aberturista”, sugerindo a retomada da agenda perdida com os Estados Unidos, ainda que às custas de um sacrifício do abandono da integração regional com os parceiros do Hemisfério Sul:
“Realizar a inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, com maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as áreas econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – com ou sem a companhia do Mercosul”
Para finalizar de forma triste e irresponsável, o programa defende com todas as letras a agenda empresarial de supressão de direitos dos trabalhadores, ao propor a eliminação das garantias previstas na CLT em favor de acordos assinados no plano local. Imagina-se qual não será o poder de coerção e chantagem do grande capital sobre os sindicatos em uma conjuntura de aprofundamento da recessão, do desemprego e dos salários. A lei, ora a lei.
“Na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos;”
Assim percebe-se que o documento caminha, a bem da verdade, na direção oposta ao título que a ele foi conferido. Trata-se de um enorme retrocesso, uma autêntica ponte para o passado. Enquanto o Brasil procura fugir da experiência fracassada do austericídio, da hegemonia do liberalismo financista e da privatização, o PMDB insiste nessa agenda que só produziu injustiça e desigualdade.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Logo depois da divulgação do documento “Por um Brasil justo e democrático”, abriu-se uma ampla discussão a respeito das mudanças necessárias no rumo da política econômica, tal como ela vem sendo capitaneada pelo Ministério da Fazenda. Com a confirmação das consequências sociais e econômicas bastante negativas que estão sendo reveladas pelo austericídio em marcha, a base política do governo vem sendo pressionada por amplos setores da sociedade, que clamam por alterações.
Assim, criou-se uma certa expectativa em torno da publicação de um documento que estaria sendo preparado pela direção do PMDB, com o objetivo também de criticar a política econômica oficial e sugerir alternativas de rota a seguir. Tendo em vista o passado desenvolvimentista de diversas proposições do partido, chegou-se a cogitar que algo de positivo poderia ser apresentado à sociedade. Afinal, trata-se de uma agremiação que já fora presidida por figuras como Ulysses Guimarães e que tivera como quadro formulador personalidades como o renomado economista Celso Furtado.
No entanto, a leitura do texto “Uma ponte para o futuro” conduz o leitor a uma enorme frustração. O resultado final evidencia a captura das principais instâncias peemedebistas pelo discurso conservador e neoliberal, onde as posições de recém-filiados como Henrique Meirelles e Katia Abreu parecem ter se consolidado e afastado qualquer “ameaça” de heresia progressista. Fez-se questão de apagar qualquer referência ao honrado passado do partido, onde o desenvolvimentismo se fazia presente em boa parte das proposições dele emanadas.
O balanço que se pode fazer do diagnóstico e das sugestões que a Fundação Ulysses Guimarães exibe em suas páginas na internet é decepcionante. Os primeiros parágrafos ainda permitem ao leitor mais otimista manter uma chama de esperança. Ali estão esboçados alguns raciocínios que podem enganar pelo que aparentam:
“Este programa destina-se a preservar a economia brasileira e tornar viável o seu desenvolvimento, devolvendo ao Estado a capacidade de executar políticas sociais que combatam efetivamente a pobreza e criem oportunidades para todos.”
No entanto, a sequência do programa revela que as palavras chave como desenvolvimento, políticas sociais ou pobreza estão ali apenas para edulcorar o conteúdo de retrocesso que se revelará nas demais páginas, que tratam de forma mais essencial das propostas para a crise atual do Brasil.
Ao reconhecer as dificuldades que o nosso País passou a enfrentar nos últimos tempos, o texto comunga das razões que os representantes do financismo costumam apresentar para o quadro que vivemos. Tratar-se-ia de uma condução equivocada que o governo havia adotado nos anos anteriores, quando optou por uma saída desenvolvimentista para recuperar a crescimento com inclusão e com redução das desigualdades. Assim, em razão dos erros da política econômica que havia decidido por reduzir as margens de ganhos dos bancos e orientado uma retomada pelo aquecimento do mercado interno, o discurso ortodoxo alerta para a necessidade de purgar sofrimento para superar a crise. O documento do PMDB não faz por menos:
“Nosso desajuste fiscal chegou a um ponto crítico. Sua solução será muito dura para o conjunto da população, terá que conter medidas de emergência, mas principalmente reformas estruturais.”
O texto faz eco à avaliação catastrofista repercutida pelos grandes meios de comunicação, segundo a qual estaríamos todos à beira do abismo. A suposta irresponsabilidade fiscal das fases anteriores da Presidente Dilma teria revelado uma tendência inescapável de nossa verdadeira situação. A estrutura de nossa capacidade arrecadatória não consegue mais fazer frente às exigências impostas pelo modelo de direitos sociais expressos na Constituição de 1988. De acordo com tal visão, esse ensaio de Estado de Bem Estar Social não passaria de um sonho irresponsável de uma noite de verão. Agora, o momento seria de desconstrução desse arcabouço de proteção social.
Ao limitar a solução do equacionamento de receitas e despesas ao plano da aritmética rasteira e simplista, o documento conclama às mudanças constitucionais redutoras de conquistas e de direitos históricos, todos de amparo e acolhimento da grande maioria da população brasileira. E assim, não tenta nem dourar a pílula no anúncio da sentença:
“Para isso é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação,”
Não satisfeita com as propostas de eliminação de direitos como o SUS e de acesso à educação pública e universal, a proposição evolui em direção ao núcleo duro da vitoriosa política de inclusão da última década, representado pela política de valorização do salário mínimo e da estratégia de ampliação e fortalecimento da previdência social.
“Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais. (...) Além disso, é indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício ao valor do salário mínimo”
O caminho escolhido para tanto é adotar a conhecida receita do “mais-do-mesmo”, com a obediência cega e surda à cartilha de Joaquim Levy para alcançar o crescimento: cortar, cortar e cortar. Ao comungar da crença de que a busca do superávit primário é o modo mágico de solucionar a crise e alcançar o paraíso, o texto repete os chavões das editorias de economia e finanças:
“O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB.”
Ao evitar qualquer menção ao incômodo debate a respeito da carga de juros e serviços da dívida pública sobre as despesas da União, o PMDB avança e também recusa a alternativa de redução da taxa de juros para a retomada do crescimento. Assim, cabe-nos sentar e esperar pacientemente que a elevação ainda maior da SELIC propicie que a inflação volte ao patamar de 4,5% ao ano. Afinal, eles repetem o blá-blá-blá dos que se incomodam com a retirada de quaisquer privilégios do rentismo parasita:
“Qualquer voluntarismo na questão dos juros é o caminho certo para o desastre. Tentativas anteriores de baixar a taxa básica, sem amparo nos fundamentos, fracassaram e cobraram o seu preço.”
Não contentes até aqui, os autores avançam no leito da redução do espaço do Estado na economia e propõem o aprofundamento do processo de privatização. Apontam um conjunto amplo de setores de serviços públicos e de infraestrutura a serem transferidos para o capital privado. De forma surpreendente, propõem inclusive o fim do modelo de partilha de extração de petróleo, prejudicando a Petrobrás e abrindo o caminho para a entrada ainda maior das multinacionais. E o fazem sem mencionar nenhuma proposta efetiva de alteração de nossa estrutura tributária que alivie o seu nível atual de regressividade e imponha a contribuição efetiva aos setores de maior renda e patrimônio de nossa sociedade.
“Executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência;”
Ao mencionar rapidamente também a política de relações exteriores, o documento avança proposições perigosas e levianas de inversão completa de prioridades. Assim, adota um discurso nada ingênuo do “liberalismo aberturista”, sugerindo a retomada da agenda perdida com os Estados Unidos, ainda que às custas de um sacrifício do abandono da integração regional com os parceiros do Hemisfério Sul:
“Realizar a inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, com maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as áreas econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – com ou sem a companhia do Mercosul”
Para finalizar de forma triste e irresponsável, o programa defende com todas as letras a agenda empresarial de supressão de direitos dos trabalhadores, ao propor a eliminação das garantias previstas na CLT em favor de acordos assinados no plano local. Imagina-se qual não será o poder de coerção e chantagem do grande capital sobre os sindicatos em uma conjuntura de aprofundamento da recessão, do desemprego e dos salários. A lei, ora a lei.
“Na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos;”
Assim percebe-se que o documento caminha, a bem da verdade, na direção oposta ao título que a ele foi conferido. Trata-se de um enorme retrocesso, uma autêntica ponte para o passado. Enquanto o Brasil procura fugir da experiência fracassada do austericídio, da hegemonia do liberalismo financista e da privatização, o PMDB insiste nessa agenda que só produziu injustiça e desigualdade.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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