Por Mino Carta, na revista CartaCapital:
Em 1964, a casa-grande teve de chamar o Exército para dar o golpe. Hoje, basta chamar o Cunha. Os fatos que se interpõem entre a derrubada de João Goulart e a atual tentativa de derrubar Dilma Rousseff explicam paradoxalmente a diferença entre os executores do passado e do presente. Ao fim da ditadura, o Brasil pretendeu apresentar-se ao mundo como país de democracia reencontrada, e houve quem acreditasse, aqui e lá fora, que era para valer. E é à sombra de um simulacro que se movem as personagens do novo enredo.
Bem ou mal, alguns agiram com empenho e sinceridade. No caso, cito de saída Ulysses Guimarães, que seria o primeiro presidente eleito da dita redemocratização não tivesse sido derrotada a campanha das Diretas Já. Sobrou-lhe o consolo de comandar a elaboração da nova Carta, finalmente concluída em 1988. Há falhas inegáveis naquele processo desenrolado durante o governo Sarney, a começar pelo fato de que aquele Congresso não foi Constituinte exclusiva. Mas era infinitamente melhor do que esse a encenar o espantoso espetáculo em cartaz.
Democracia incipiente, manquitolante, tanto mais em um país de desequilíbrio social insuportável, onde anualmente morrem assassinados mais de 60 mil cidadãos, na maioria sem consciência da cidadania. E ainda nos assustamos com o terrorismo e as guerras que assolam diversos cantos do mundo... Terror e guerra moram aqui mesmo, com suas formas peculiares, típicas da terra da casa-grande e da senzala. Cunha age ao sabor de tecnicalidades introduzidas por uma grotesca pretensão democrática em pleno vigor da Idade Média.
Difícil classificar o espetáculo profundamente brasileiro que somos obrigados a assistir conforme os usuais padrões teatrais, rico, denso, de todo modo, a levar ao palco personagens vivas e os fantasmas de antanho, gerações e gerações. Quem sabe mistura de tragédia, ópera-bufa, farsa, teatrinho dos Pupi sicilianos com patrocínio mafioso. Obra em vários atos, de desfecho incerto, embora desfraldada a posição das forças em confronto.
Ao chamar Cunha e visar o impeachment, arma-se a frente ferozmente disposta a rasgar de vez a Constituição de 88 e a enterrar o nosso penoso arremedo de democracia. As razões do pedido de impedimento são inconsistentes, é do conhecimento até do mundo mineral, a ser claro, aliás, que os formuladores das motivações jurídicas não atingiram o estágio do quartzo ou do feldspato. É que alardeamos ser o que não somos. Em países democráticos, a trama tecida a partir das demandas da casa-grande seria impossível.
Qual é o papel do vice-presidente Michel Temer? Um Judas, um Iago? Não parece. Sabe, apenas, da simpatia de que goza nos ambientes graúdos e levanta o braço para dizer “estou aqui”. Para tanto, com gesto obsoleto (romântico?) em tempos de redes sociais, escreve uma carta. Aproveita-se do descaso que em diversas ocasiões lhe reservou Dilma e se dispõe, sem demitir a expressão sonsa, a oferecer colaboração a Eduardo Cunha, sinuosa, poderosa porém. Um Talleyrand de arrabalde. Resultados imediatos já os obteve, com a demissão de Leonardo Picciani da liderança do PMDB na Câmara, enquanto o partido se recompõe em torno do seu tradicional oportunismo.
Atenção, Aécio Neves surge na ribalta e faz objeções à participação de Temer: em lugar de apontar as mazelas petistas, observa o tucano, parte para queixumes fisiológicos. Surpresa? Nem um pouco: se houver impeachment, e Temer for presidente, será candidato à reeleição em 2018 e Aécio mira na mesma data. E se ao cabo prevalecer a razão, e Dilma sair incólume do ataque da insensatez, que será de Temer? Soltem a imaginação, ao cogitar das alternativas.
Quanto a Cunha, o grande operador, já deveria estar cassado, a amargar o julgamento do STF. Ah, sim, a Justiça... Em qual país civilizado e democrático um Cunha poderia arcar com o rol que o momento lhe atribui diante da indiferença de muitos e a aprovação, até eufórica, de outros tantos?
Do outro lado, existem belos exemplos de resistência. Vem, por exemplo, de Ciro Gomes, a evocar Leonel Brizola em defesa de Jango, ou de 16 governadores, ou de grandes juristas que não hesitam em identificar impeachment como golpe, ou de inúmeros cidadãos anônimos prontos a expor sua revolta. Dilma ao dizer, em nome do governo, “nós não cometemos delitos”, como se aos adversários quisesse amparar-se em provas de mazelas imperdoáveis para sustentar o impeachment, não percebe que a intenção não é provar coisa alguma, e simplesmente enxotar do Planalto sua legítima inquilina, à revelia da Constituição.
Vale a pena tirar os olhos do palco, para encarar a plateia. Quantos ali acreditam que o impedimento equivale a salvar o País em meio a um ciclone causado exclusivamente pelo PT e seus dois presidentes? Quantos esquecem o que representou para o Brasil a Presidência de Lula, e também a de Dilma, ao menos nos três primeiros anos? Quantos ignoram que a maioria das acusações desfechadas pela Lava Jato precisam ser provadas, bem ao contrário dos trambiques de Cunha? Quantos caem no engodo urdido diariamente pela mídia nativa, alinhada como sempre de um lado só, compactamente a favor doimpeachment e, portanto, dedicada a promover o arbítrio, a irresponsabilidade, a ignorância?
A esperança há de ser oposta àquela destes espectadores, que o impedimento naufrague e Dilma permaneça onde está. Ainda há tempo para impedir o desastre final. Ainda há tempo para dar outro rumo à política econômica, embora seja evidente que a crise não se deve apenas aos erros do governo. Pesam também os efeitos da Lava Jato, as tempestades a varrer o mundo e as debilidades do Brasil, até hoje exportador de commodities.
O País viveu dois momentos bastante promissores: a década de 50 e o tempo do governo Lula, reconhecidos como tais em todo o planeta. O golpe de 64 não foi precipitado pelo risco de cubanização de uma terra tão pouco parecida com a ilha do Caribe, e sim pela perspectiva do surgimento de um autêntico proletariado, capaz de tornar-se mola do progresso e da contemporaneidade, como se dera bem antes na Europa. O ingresso na cena de um operariado consciente da sua força representaria uma mudança insuportável para os tradicionais donos do poder.
Hoje para a casa-grande é indispensável impedir a permanência do PT no comando. Por mais decepcionante que tenha sido o comportamento do partido depois da eleição de 2002, há decisões que um governo petista jamais tomaria. Com o golpe, fica aberto o caminho da privatização da Petrobras, incluída a negociação do pré-sal com as Sete Irmãs, e do retorno à condição de satélite de Washington.
Em 1964, a casa-grande teve de chamar o Exército para dar o golpe. Hoje, basta chamar o Cunha. Os fatos que se interpõem entre a derrubada de João Goulart e a atual tentativa de derrubar Dilma Rousseff explicam paradoxalmente a diferença entre os executores do passado e do presente. Ao fim da ditadura, o Brasil pretendeu apresentar-se ao mundo como país de democracia reencontrada, e houve quem acreditasse, aqui e lá fora, que era para valer. E é à sombra de um simulacro que se movem as personagens do novo enredo.
Bem ou mal, alguns agiram com empenho e sinceridade. No caso, cito de saída Ulysses Guimarães, que seria o primeiro presidente eleito da dita redemocratização não tivesse sido derrotada a campanha das Diretas Já. Sobrou-lhe o consolo de comandar a elaboração da nova Carta, finalmente concluída em 1988. Há falhas inegáveis naquele processo desenrolado durante o governo Sarney, a começar pelo fato de que aquele Congresso não foi Constituinte exclusiva. Mas era infinitamente melhor do que esse a encenar o espantoso espetáculo em cartaz.
Democracia incipiente, manquitolante, tanto mais em um país de desequilíbrio social insuportável, onde anualmente morrem assassinados mais de 60 mil cidadãos, na maioria sem consciência da cidadania. E ainda nos assustamos com o terrorismo e as guerras que assolam diversos cantos do mundo... Terror e guerra moram aqui mesmo, com suas formas peculiares, típicas da terra da casa-grande e da senzala. Cunha age ao sabor de tecnicalidades introduzidas por uma grotesca pretensão democrática em pleno vigor da Idade Média.
Difícil classificar o espetáculo profundamente brasileiro que somos obrigados a assistir conforme os usuais padrões teatrais, rico, denso, de todo modo, a levar ao palco personagens vivas e os fantasmas de antanho, gerações e gerações. Quem sabe mistura de tragédia, ópera-bufa, farsa, teatrinho dos Pupi sicilianos com patrocínio mafioso. Obra em vários atos, de desfecho incerto, embora desfraldada a posição das forças em confronto.
Ao chamar Cunha e visar o impeachment, arma-se a frente ferozmente disposta a rasgar de vez a Constituição de 88 e a enterrar o nosso penoso arremedo de democracia. As razões do pedido de impedimento são inconsistentes, é do conhecimento até do mundo mineral, a ser claro, aliás, que os formuladores das motivações jurídicas não atingiram o estágio do quartzo ou do feldspato. É que alardeamos ser o que não somos. Em países democráticos, a trama tecida a partir das demandas da casa-grande seria impossível.
Qual é o papel do vice-presidente Michel Temer? Um Judas, um Iago? Não parece. Sabe, apenas, da simpatia de que goza nos ambientes graúdos e levanta o braço para dizer “estou aqui”. Para tanto, com gesto obsoleto (romântico?) em tempos de redes sociais, escreve uma carta. Aproveita-se do descaso que em diversas ocasiões lhe reservou Dilma e se dispõe, sem demitir a expressão sonsa, a oferecer colaboração a Eduardo Cunha, sinuosa, poderosa porém. Um Talleyrand de arrabalde. Resultados imediatos já os obteve, com a demissão de Leonardo Picciani da liderança do PMDB na Câmara, enquanto o partido se recompõe em torno do seu tradicional oportunismo.
Atenção, Aécio Neves surge na ribalta e faz objeções à participação de Temer: em lugar de apontar as mazelas petistas, observa o tucano, parte para queixumes fisiológicos. Surpresa? Nem um pouco: se houver impeachment, e Temer for presidente, será candidato à reeleição em 2018 e Aécio mira na mesma data. E se ao cabo prevalecer a razão, e Dilma sair incólume do ataque da insensatez, que será de Temer? Soltem a imaginação, ao cogitar das alternativas.
Quanto a Cunha, o grande operador, já deveria estar cassado, a amargar o julgamento do STF. Ah, sim, a Justiça... Em qual país civilizado e democrático um Cunha poderia arcar com o rol que o momento lhe atribui diante da indiferença de muitos e a aprovação, até eufórica, de outros tantos?
Do outro lado, existem belos exemplos de resistência. Vem, por exemplo, de Ciro Gomes, a evocar Leonel Brizola em defesa de Jango, ou de 16 governadores, ou de grandes juristas que não hesitam em identificar impeachment como golpe, ou de inúmeros cidadãos anônimos prontos a expor sua revolta. Dilma ao dizer, em nome do governo, “nós não cometemos delitos”, como se aos adversários quisesse amparar-se em provas de mazelas imperdoáveis para sustentar o impeachment, não percebe que a intenção não é provar coisa alguma, e simplesmente enxotar do Planalto sua legítima inquilina, à revelia da Constituição.
Vale a pena tirar os olhos do palco, para encarar a plateia. Quantos ali acreditam que o impedimento equivale a salvar o País em meio a um ciclone causado exclusivamente pelo PT e seus dois presidentes? Quantos esquecem o que representou para o Brasil a Presidência de Lula, e também a de Dilma, ao menos nos três primeiros anos? Quantos ignoram que a maioria das acusações desfechadas pela Lava Jato precisam ser provadas, bem ao contrário dos trambiques de Cunha? Quantos caem no engodo urdido diariamente pela mídia nativa, alinhada como sempre de um lado só, compactamente a favor doimpeachment e, portanto, dedicada a promover o arbítrio, a irresponsabilidade, a ignorância?
A esperança há de ser oposta àquela destes espectadores, que o impedimento naufrague e Dilma permaneça onde está. Ainda há tempo para impedir o desastre final. Ainda há tempo para dar outro rumo à política econômica, embora seja evidente que a crise não se deve apenas aos erros do governo. Pesam também os efeitos da Lava Jato, as tempestades a varrer o mundo e as debilidades do Brasil, até hoje exportador de commodities.
O País viveu dois momentos bastante promissores: a década de 50 e o tempo do governo Lula, reconhecidos como tais em todo o planeta. O golpe de 64 não foi precipitado pelo risco de cubanização de uma terra tão pouco parecida com a ilha do Caribe, e sim pela perspectiva do surgimento de um autêntico proletariado, capaz de tornar-se mola do progresso e da contemporaneidade, como se dera bem antes na Europa. O ingresso na cena de um operariado consciente da sua força representaria uma mudança insuportável para os tradicionais donos do poder.
Hoje para a casa-grande é indispensável impedir a permanência do PT no comando. Por mais decepcionante que tenha sido o comportamento do partido depois da eleição de 2002, há decisões que um governo petista jamais tomaria. Com o golpe, fica aberto o caminho da privatização da Petrobras, incluída a negociação do pré-sal com as Sete Irmãs, e do retorno à condição de satélite de Washington.
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