Por Victor Farinelli, no site Carta Maior:
No ano de 2003, o Chile criou sua segunda Comissão da Verdade. Diante da carência de informações consideradas na primeira versão – a chamada Comissão Rettig, de 1991 – foi realizada essa segunda, que ficou conhecida como Comissão Valech, já que foi organizada pelo arcebispo Sergio Valech, da Paróquia da Solidariedade.
Porém, o resultado final da Comissão gerou uma certa polêmica, já que o informe final serviu somente para identificar mais algumas vítimas do terrorismo de Estado, mas não para identificar os autores dos crimes. Isso aconteceu porque os militares entrevistados exigiram sigilo para poder entregar a informação sobre operações secretas, o paradeiro dos corpos, entre outras coisas. Foi imposto, dessa forma, os mesmos 50 anos de silêncio que o governador Geraldo Alckmin colocou sobre os documentos públicos da administração paulista.
Há quem assegure que, no caso chileno, o próprio Augusto Pinochet teria ameaçado colegas sobre a possibilidade de alguns segredos serem revelados – embora ele mesmo não tenha sido entrevistado. Atualmente, a desclassificação dos segredos da Comissão Valech é um dos temas mais importantes da agenda política chilena, e a principal demanda dos organismos de direitos humanos no país.
Em dezembro de 2015, a Corte de Apelações de Santiago anunciou decisão favorável a Fabíola Valenzuela, filha de opositores assassinados durante a ditadura, que pedia a desclassificação das informações do Informe Valech referente ao caso dos seus pais. A decisão ainda não foi cumprida, mas caso se torne efetiva, pode abrir um precedente para que outros casos semelhantes apareçam, criando um caminho legal para que se derrube o segredo instaurado pelo então presidente chileno Ricardo Lagos – um socialista muito amigo de tucanos como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, dois que viveram exilados no Chile durante parte da ditadura brasileira.
Em entrevista recente para um diário local, o ex-presidente Lagos defendeu o sigilo da Comissão Valech, dizendo que o secretismo era a única forma de fazer com que alguns militares entregassem a informação a respeito dos crimes cometidos na ditadura. Basicamente, teria sido uma troca de informação por impunidade, já que o mais importante entre as revelações que ficaram trancadas atrás do sigilo é a identidade de quem cometeu os crimes. Uma postura que reacendeu a mesma polêmica de treze anos atrás: há quem defenda isso como a única forma de se chegar à verdade, e inclusive parentes de vítimas que estão agradecidos pelo simples fato saber o que aconteceu realmente com seus entes queridos, e há quem condene o segredo e veja nele uma espécie de capitulação, de se entregar aos interesses dos que cometeram os crimes em troca de migalhas.
Quando se vê o noticiário sobre o sigilo imposto por Alckmin aos documentos da administração paulista, não se entende muito qual foi a troca neste caso. Nesta semana pós-carnavalesca, o governador paulista decretou sigilo sobre 22 documentos relativos à Secretaria de Segurança Pública, que variam de 15 a 100 anos, dependendo do caso. Também foi imposto sigilo sobre documentos relativos à Secretaria de Transportes Metropolitanos, incluindo “ações que se encontram sob segredo de Justiça”, relacionados ao Metrô e à CPTM, e alguns deles também podem ficarão inacessíveis por até um século. Um despacho do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo afirmou que a medida pode configurar uma afronta à Lei de Acesso à Informação.
Não existe polêmica, por duas razões absurdamente contraditórias: ninguém sabe quem é que ganha com o sigilo, ainda mais num mundo onde cada vez se exige mais transparência na política, e embora seja claramente inaceitável, o fato de a imprensa passar batido pelo tema, omitindo também o debate sobre o caso, leva a que poucas pessoas entendam ou reajam ao que acontece – isso talvez seja mais poderoso para garantir o sigilo que o próprio decreto em si.
Existem mortos por trás dos documentos ocultados por Alckmin? Operações policiais para eliminar pessoas nas periferias? Existe dinheiro público desviado dos contratos do Metrô e de outras empresas estatais paulistas? Seriam as mesmas informações que a Justiça da Suíça está buscando em suas investigações contra as empresas de lá? Que setor da população ganha e o que ganha não sabendo o que o governo estabelece nos contratos do transporte público e em operações de segurança supostamente relativos ao crime organizado e à administração prisional no Estado?
Até mesmo a pergunta sobre “o que garante que a medida não está encobrindo crimes” mostra o burlesco da medida do tucano, quando comparado com o caso chileno, onde se sabia que o sigilo era uma garantia de impunidade, mas se adotava em função de um suposto benefício em favor da verdade. Porém, no caso paulista, não se sabe nada, não há uma justificativa convincente sobre a medida e tampouco esforço em explicar – talvez porque seja desnecessário, graças à parcimônia da mídia a respeito do caso.
Uma pergunta, tão ou mais inevitável e pertinente que as anteriores, seria: se não há motivo para tanto, como não suspeitar que isso tenha, como único objetivo, a ocultação de crimes? Existem formas de se evitar essa pergunta, e a melhor delas seria o governador desistir do decreto e permitir o acesso a essas informações, e que exista imprensa disposta e capaz de fazê-lo.
Outra forma seria alguma pessoa ou entidade pública tomar uma iniciativa como a da chilena Fabíola Valenzuela, e se a Justiça de São Paulo for capaz de chegar a uma decisão tão corajosa, colocando fim a um sigilo que não tem razão de ser. Ainda assim, seria um processo que, como o de Fabíola, poderia durar anos, e cujo cumprimento poderia tardar mesmo depois da decisão tomada.
No ano de 2003, o Chile criou sua segunda Comissão da Verdade. Diante da carência de informações consideradas na primeira versão – a chamada Comissão Rettig, de 1991 – foi realizada essa segunda, que ficou conhecida como Comissão Valech, já que foi organizada pelo arcebispo Sergio Valech, da Paróquia da Solidariedade.
Porém, o resultado final da Comissão gerou uma certa polêmica, já que o informe final serviu somente para identificar mais algumas vítimas do terrorismo de Estado, mas não para identificar os autores dos crimes. Isso aconteceu porque os militares entrevistados exigiram sigilo para poder entregar a informação sobre operações secretas, o paradeiro dos corpos, entre outras coisas. Foi imposto, dessa forma, os mesmos 50 anos de silêncio que o governador Geraldo Alckmin colocou sobre os documentos públicos da administração paulista.
Há quem assegure que, no caso chileno, o próprio Augusto Pinochet teria ameaçado colegas sobre a possibilidade de alguns segredos serem revelados – embora ele mesmo não tenha sido entrevistado. Atualmente, a desclassificação dos segredos da Comissão Valech é um dos temas mais importantes da agenda política chilena, e a principal demanda dos organismos de direitos humanos no país.
Em dezembro de 2015, a Corte de Apelações de Santiago anunciou decisão favorável a Fabíola Valenzuela, filha de opositores assassinados durante a ditadura, que pedia a desclassificação das informações do Informe Valech referente ao caso dos seus pais. A decisão ainda não foi cumprida, mas caso se torne efetiva, pode abrir um precedente para que outros casos semelhantes apareçam, criando um caminho legal para que se derrube o segredo instaurado pelo então presidente chileno Ricardo Lagos – um socialista muito amigo de tucanos como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, dois que viveram exilados no Chile durante parte da ditadura brasileira.
Em entrevista recente para um diário local, o ex-presidente Lagos defendeu o sigilo da Comissão Valech, dizendo que o secretismo era a única forma de fazer com que alguns militares entregassem a informação a respeito dos crimes cometidos na ditadura. Basicamente, teria sido uma troca de informação por impunidade, já que o mais importante entre as revelações que ficaram trancadas atrás do sigilo é a identidade de quem cometeu os crimes. Uma postura que reacendeu a mesma polêmica de treze anos atrás: há quem defenda isso como a única forma de se chegar à verdade, e inclusive parentes de vítimas que estão agradecidos pelo simples fato saber o que aconteceu realmente com seus entes queridos, e há quem condene o segredo e veja nele uma espécie de capitulação, de se entregar aos interesses dos que cometeram os crimes em troca de migalhas.
Quando se vê o noticiário sobre o sigilo imposto por Alckmin aos documentos da administração paulista, não se entende muito qual foi a troca neste caso. Nesta semana pós-carnavalesca, o governador paulista decretou sigilo sobre 22 documentos relativos à Secretaria de Segurança Pública, que variam de 15 a 100 anos, dependendo do caso. Também foi imposto sigilo sobre documentos relativos à Secretaria de Transportes Metropolitanos, incluindo “ações que se encontram sob segredo de Justiça”, relacionados ao Metrô e à CPTM, e alguns deles também podem ficarão inacessíveis por até um século. Um despacho do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo afirmou que a medida pode configurar uma afronta à Lei de Acesso à Informação.
Não existe polêmica, por duas razões absurdamente contraditórias: ninguém sabe quem é que ganha com o sigilo, ainda mais num mundo onde cada vez se exige mais transparência na política, e embora seja claramente inaceitável, o fato de a imprensa passar batido pelo tema, omitindo também o debate sobre o caso, leva a que poucas pessoas entendam ou reajam ao que acontece – isso talvez seja mais poderoso para garantir o sigilo que o próprio decreto em si.
Existem mortos por trás dos documentos ocultados por Alckmin? Operações policiais para eliminar pessoas nas periferias? Existe dinheiro público desviado dos contratos do Metrô e de outras empresas estatais paulistas? Seriam as mesmas informações que a Justiça da Suíça está buscando em suas investigações contra as empresas de lá? Que setor da população ganha e o que ganha não sabendo o que o governo estabelece nos contratos do transporte público e em operações de segurança supostamente relativos ao crime organizado e à administração prisional no Estado?
Até mesmo a pergunta sobre “o que garante que a medida não está encobrindo crimes” mostra o burlesco da medida do tucano, quando comparado com o caso chileno, onde se sabia que o sigilo era uma garantia de impunidade, mas se adotava em função de um suposto benefício em favor da verdade. Porém, no caso paulista, não se sabe nada, não há uma justificativa convincente sobre a medida e tampouco esforço em explicar – talvez porque seja desnecessário, graças à parcimônia da mídia a respeito do caso.
Uma pergunta, tão ou mais inevitável e pertinente que as anteriores, seria: se não há motivo para tanto, como não suspeitar que isso tenha, como único objetivo, a ocultação de crimes? Existem formas de se evitar essa pergunta, e a melhor delas seria o governador desistir do decreto e permitir o acesso a essas informações, e que exista imprensa disposta e capaz de fazê-lo.
Outra forma seria alguma pessoa ou entidade pública tomar uma iniciativa como a da chilena Fabíola Valenzuela, e se a Justiça de São Paulo for capaz de chegar a uma decisão tão corajosa, colocando fim a um sigilo que não tem razão de ser. Ainda assim, seria um processo que, como o de Fabíola, poderia durar anos, e cujo cumprimento poderia tardar mesmo depois da decisão tomada.
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