Por Mino Carta, na revista CartaCapital:
Um filme intitulado Sem Evidências enfeitou a programação de uma HBO a cabo na noite de domingo, 17 de abril de 2016. Mergulhei no enredo ao mudar ao acaso um canal para outro, enquanto a Câmara Federal rasgava impavidamente a Constituição para condenar a presidenta Dilma Rousseff sem provas do crime que lhe atribuía.
O filme é uma implacável metáfora do que acabava de acontecer diante dos olhos de milhões em êxtase e uns poucos vexados entre o fígado e a alma. História verdadeira, a do filme, remonta a 1993, quando três crianças de uma cidadezinha do Arkansas são estupradas e assassinadas e as autoridades locais escolhem de antemão os culpados, três jovens tidos como praticantes de rituais satânicos.
O mais velho, de 18 anos, veste-se de preto, tem cabelos compridos, lida com desembaraço com a língua e a ironia e não esconde sua curiosidade por demonologia. Outro, de 17 anos, padece de disfunções mentais. O terceiro, de 16 anos, é tímido e indefeso.
Todos se dizem inocentes, mas os donos do poder tomaram sua irrevogável decisão antes do processo, enfim realizado para sacramentar a decisão adrede tomada. Para tanto a polícia local colabora ativamente e transforma suposições em verdade factual, os promotores cometem irregularidades sem conta na instrução da demanda judicial e contam com um juiz desbragadamente parcial.
Os líderes da comunidade cuidam de elevar a 100 graus a ira popular. Conclusão: o mais velho dos réus é condenado à morte, os outros dois à prisão perpétua. Somente 18 anos depois, a Suprema Corte do Arkansas revê as sentenças, uma delas, à cadeira elétrica ainda não consumada, e recoloca os condenados em liberdade.
Ocorreu-me uma dúvida: quem programou Sem Evidências para o mesmo momento em que, sem evidências, a Câmara Federal condenava a presidenta legítima agiu de caso pensado ou conforme pauta definida com larga antecedência? Se sabia o que fazia, ofereceu a quantos sabem o que fazem uma parábola do episódio a se desenrolar, no mesmo instante, nesta nossa republiqueta tão parecida com uma cidadezinha do Arkansas.
Muitas dúvidas mais me assaltam. E ao sabor de dúvidas teço considerações. E pergunto aos meus atônitos botões se os discursos que ecoaram na Câmara Federal na noite de 17 de abril foram pronunciados, em aterradora maioria, por idiotas ou por hipócritas, excelentes nos dois casos? Ou seria por idiotas hipócritas, magníficos na simbiose? Não espero por resposta, não se faz necessária.
E em relação aos que ouvem e aprovam, em qual categoria catalogá-los? Idiotas ou hipócritas, simplesmente, ou habilitados a mesclar ambas as qualidades negativas? O espetáculo que conseguimos oferecer ao mundo exorbita na prova, esta sim indiscutível, de nossa condição de republiqueta das bananas.
Os autores do golpe, além de imitadores de ações idênticas levadas a cabo em 2006 em Honduras e em 2012 no Paraguai, alegam motivações que confiam cegamente na ignorância e na parvoíce da nação. Pasmem: e acertam, e levam, como CartaCapital temia na sua edição passada.
Somos o que somos, e é doloroso aceitar mais esta inegável evidência. Um paiseco do tamanho de um continente, destinado pela natureza para ser um paraíso terrestre, fica entregue à sua própria desgraça, algo assim como um suicídio coletivo.
Com a contribuição decisiva do evangelismo galopante, cada vez mais espalhado, a mostrar sua inevitável aliança à política do poder pelo poder, empenhada em promover boçalidade demente e a enterrar qualquer esperança de democracia.
Não faltarão os céticos, prontos a sustentar que democracia cabe no baú das velharias. Certo é que o golpe de 2016, a mostrar a nossa imaturidade para qualquer tentativa democrática e a fragilidade de quanto foi construída depois da saída do general Figueiredo pela porta dos fundos do Planalto, é muito pior, infinitamente mais assustador, do que o de 1964.
Abril de 64 não traiu a tradição, como sempre desfechado pela casa-grande para sustar no nascedouro um processo capaz de conduzir à demolição da senzala. Teve, paradoxalmente, o condão de excitar alguns espíritos nativos a formas de resistência e cultivar esperanças.
Hoje temos de constatar que ainda pagamos por aquele 1º de abril e que a chamada redemocratização foi uma farsa. Ainda é pouco em comparação com o preço a pagar pelo golpe de abril de 2016. Nada é previsível se não há como se apoiar naquela deplorável tradição. Sobram diversas, assombrosas incógnitas.
Se o assunto é a imprevisibilidade, não cabem incertezas, é óbvio, quanto à composição de um governo Temer. Candidatos óbvios, a rendição à vontade de Tio Sam, genuflexão ao deus mercado em proveito do desequilíbrio social e da punição do trabalho, o loteamento de bens brasileiros, a começar pela entrega do pré-sal às famigeradas Sete Irmãs.
Mas é nesta moldura que a névoa se alastra, bem como as dúvidas. Por exemplo. Como e quando acaba a Lava Jato? Sergio Moro prestou-se ao jogo, mas ainda se prestará? E que desfecho fica reservado para Eduardo Cunha? E para o calendário eleitoral? E o povo sofrerá com a resignação de sempre?
Acabamos de adentrar uma zona de intensa nebulosidade, talvez de inesperadas turbulências, e dentro dela nada nos reporta ao passado. Em uma situação nunca dantes navegada, claro está apenas e tão somente que a crise, muito mais profunda do que simplesmente econômica, mas antes social, política, moral, mental em um país à deriva, não se oferece a mais pálida possibilidade de arrefecimento, muito pelo contrário.
O golpe em andamento contém e expressa um trágico engodo, como o verbo dos conspiradores, dos arautos da casa-grande, dos falsos pastores de almas. O complô visava Lula como candidato em 2018, com o intuito de abater Dilma pelo caminho, e o obstáculo principal por ora permanece. A maior incógnita na crista das ondas é agora a sorte do favorito das próximas eleições. Apontam os barômetros para a instabilidade total.
Um filme intitulado Sem Evidências enfeitou a programação de uma HBO a cabo na noite de domingo, 17 de abril de 2016. Mergulhei no enredo ao mudar ao acaso um canal para outro, enquanto a Câmara Federal rasgava impavidamente a Constituição para condenar a presidenta Dilma Rousseff sem provas do crime que lhe atribuía.
O filme é uma implacável metáfora do que acabava de acontecer diante dos olhos de milhões em êxtase e uns poucos vexados entre o fígado e a alma. História verdadeira, a do filme, remonta a 1993, quando três crianças de uma cidadezinha do Arkansas são estupradas e assassinadas e as autoridades locais escolhem de antemão os culpados, três jovens tidos como praticantes de rituais satânicos.
O mais velho, de 18 anos, veste-se de preto, tem cabelos compridos, lida com desembaraço com a língua e a ironia e não esconde sua curiosidade por demonologia. Outro, de 17 anos, padece de disfunções mentais. O terceiro, de 16 anos, é tímido e indefeso.
Todos se dizem inocentes, mas os donos do poder tomaram sua irrevogável decisão antes do processo, enfim realizado para sacramentar a decisão adrede tomada. Para tanto a polícia local colabora ativamente e transforma suposições em verdade factual, os promotores cometem irregularidades sem conta na instrução da demanda judicial e contam com um juiz desbragadamente parcial.
Os líderes da comunidade cuidam de elevar a 100 graus a ira popular. Conclusão: o mais velho dos réus é condenado à morte, os outros dois à prisão perpétua. Somente 18 anos depois, a Suprema Corte do Arkansas revê as sentenças, uma delas, à cadeira elétrica ainda não consumada, e recoloca os condenados em liberdade.
Ocorreu-me uma dúvida: quem programou Sem Evidências para o mesmo momento em que, sem evidências, a Câmara Federal condenava a presidenta legítima agiu de caso pensado ou conforme pauta definida com larga antecedência? Se sabia o que fazia, ofereceu a quantos sabem o que fazem uma parábola do episódio a se desenrolar, no mesmo instante, nesta nossa republiqueta tão parecida com uma cidadezinha do Arkansas.
Muitas dúvidas mais me assaltam. E ao sabor de dúvidas teço considerações. E pergunto aos meus atônitos botões se os discursos que ecoaram na Câmara Federal na noite de 17 de abril foram pronunciados, em aterradora maioria, por idiotas ou por hipócritas, excelentes nos dois casos? Ou seria por idiotas hipócritas, magníficos na simbiose? Não espero por resposta, não se faz necessária.
E em relação aos que ouvem e aprovam, em qual categoria catalogá-los? Idiotas ou hipócritas, simplesmente, ou habilitados a mesclar ambas as qualidades negativas? O espetáculo que conseguimos oferecer ao mundo exorbita na prova, esta sim indiscutível, de nossa condição de republiqueta das bananas.
Os autores do golpe, além de imitadores de ações idênticas levadas a cabo em 2006 em Honduras e em 2012 no Paraguai, alegam motivações que confiam cegamente na ignorância e na parvoíce da nação. Pasmem: e acertam, e levam, como CartaCapital temia na sua edição passada.
Somos o que somos, e é doloroso aceitar mais esta inegável evidência. Um paiseco do tamanho de um continente, destinado pela natureza para ser um paraíso terrestre, fica entregue à sua própria desgraça, algo assim como um suicídio coletivo.
Com a contribuição decisiva do evangelismo galopante, cada vez mais espalhado, a mostrar sua inevitável aliança à política do poder pelo poder, empenhada em promover boçalidade demente e a enterrar qualquer esperança de democracia.
Não faltarão os céticos, prontos a sustentar que democracia cabe no baú das velharias. Certo é que o golpe de 2016, a mostrar a nossa imaturidade para qualquer tentativa democrática e a fragilidade de quanto foi construída depois da saída do general Figueiredo pela porta dos fundos do Planalto, é muito pior, infinitamente mais assustador, do que o de 1964.
Abril de 64 não traiu a tradição, como sempre desfechado pela casa-grande para sustar no nascedouro um processo capaz de conduzir à demolição da senzala. Teve, paradoxalmente, o condão de excitar alguns espíritos nativos a formas de resistência e cultivar esperanças.
Hoje temos de constatar que ainda pagamos por aquele 1º de abril e que a chamada redemocratização foi uma farsa. Ainda é pouco em comparação com o preço a pagar pelo golpe de abril de 2016. Nada é previsível se não há como se apoiar naquela deplorável tradição. Sobram diversas, assombrosas incógnitas.
Se o assunto é a imprevisibilidade, não cabem incertezas, é óbvio, quanto à composição de um governo Temer. Candidatos óbvios, a rendição à vontade de Tio Sam, genuflexão ao deus mercado em proveito do desequilíbrio social e da punição do trabalho, o loteamento de bens brasileiros, a começar pela entrega do pré-sal às famigeradas Sete Irmãs.
Mas é nesta moldura que a névoa se alastra, bem como as dúvidas. Por exemplo. Como e quando acaba a Lava Jato? Sergio Moro prestou-se ao jogo, mas ainda se prestará? E que desfecho fica reservado para Eduardo Cunha? E para o calendário eleitoral? E o povo sofrerá com a resignação de sempre?
Acabamos de adentrar uma zona de intensa nebulosidade, talvez de inesperadas turbulências, e dentro dela nada nos reporta ao passado. Em uma situação nunca dantes navegada, claro está apenas e tão somente que a crise, muito mais profunda do que simplesmente econômica, mas antes social, política, moral, mental em um país à deriva, não se oferece a mais pálida possibilidade de arrefecimento, muito pelo contrário.
O golpe em andamento contém e expressa um trágico engodo, como o verbo dos conspiradores, dos arautos da casa-grande, dos falsos pastores de almas. O complô visava Lula como candidato em 2018, com o intuito de abater Dilma pelo caminho, e o obstáculo principal por ora permanece. A maior incógnita na crista das ondas é agora a sorte do favorito das próximas eleições. Apontam os barômetros para a instabilidade total.
1 comentários:
Não seriam bafômetros?
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