Por Ignácio Ramonet, no site Outras Palavras:
Qual o desenho do novo cenário mundial? Quais são suas principais características? Que dinâmicas estão determinando o funcionamento real de nosso planeta? Que características dominarão nos próximos 15 anos, daqui a 2030?
Para analisar este novo cenário e prever seu futuro imediato, vamos utilizar a bússola da geopolítica, uma disciplina que nos permite compreender o jogo geral das potências e avaliar os principais riscos e perigos. Para antecipar, como um tabuleiro de xadrez, os movimentos de cada potência adversária.
E o que nos diz esta bússula?
1. O declínio do Ocidente
A principal constatação é o declínio do Ocidente. Pela primeira vez desde o século 15, os países ocidentais estão perdendo poder frente a ascensão das novas potências emergentes. Começa a fase final de um ciclo de cinco séculos de dominação ocidental do mundo. A liderança internacional dos EUA viu-se ameaçada pelo surgimento de novos polos de poder (China, Rússia e Índia) em escala internacional. A “degradação estratégica” dos EUA já começou. O “século americano” parece chegar ao seu fim, enquanto o “sonho europeu” desaparece.
Embora os EUA sigam sendo uma das principais potenciais planetárias, estão perdendo sua hegemonia econômica para a China. E já não exercerão mais sua “hegemonia militar solitária” como fizeram desde o fim da Guerra Fria (1989). Estamos caminhando para um mundo multipolar em que os novos atores (China, Rússia e Índia) têm vocação para construir sólidos polos regionais e a disputar a supremacia internacional com Washington e seus aliados históricos (Reino Unido, França, Alemanha e Japão).
Na terceira linha aparece uma série de potenciais intermediarias, com demografias em alta e fortes taxas de crescimento econômico, convertendo-se também em polos hegemônicos regionais e com tendência a se transformar, daqui a 15 anos, em um grupo de influência planetária (Indonésia, Brasil, Vietnã, Turquia, Nigéria, Etiópia).
Para ter uma ideia da importância e da rapidez da degradação ocidental que se avizinha, basta observar essas cifras: a participação dos países ocidentais na economia mundial vai passar de 56% hoje para 25% em 2030… Ou seja, em menos de 15 anos o Ocidente perderá mais da metade de sua preponderância econômica. Uma das principais consequências será que os EUA e seus aliados não terão mais os meios financeiros para assumir o policiamento do mundo… De tal modo que está mudança estrutural poderá debilitar o Ocidente duplamente.
2. A incontível emergência da China
O mundo está “desocidentalizando” e é cada vez mais multipolar. Destaca-se, mais uma vez, o papel da China que emerge, a principio, como uma grande potência no coração do século 21 — apesar de estar longe de representar ainda uma autêntica rivalidade com Washington. Por um lado, a estabilidade de Pequim não está garantida porque coexistem em seu seio o capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. A tensão entre essas duas dinâmicas causará, cedo ou tarde, uma ruptura que poderá debilitar sua potência.
De qualquer maneira, hoje, em 2016, os EUA seguem exercendo uma indiscutivél dominação hegemônica sobre o planeta. Tanto no terreno militar (fundamental), quanto em vários outros setores cada vez mais determinantes: em particular, na tecnologia (internet) e no soft power (cultura de massas). Isso não quer dizer que a China não tenha realizado também avanços prodigiosos nos últimos anos. Nunca na história, um país cresceu tanto em tão pouco tempo.
No momento, enquanto declina o poder dos EUA, a ascenção da China é incontível. Já é a segunda potência econômica do mundo (à frente do Japão e Alemanha).
Para Washington, a Ásia é agora a zona prioritária desde que o presidente Barack Obama decidiu a reorientação estratégica de sua política externa. Os EUA buscam frear a expansão da China, cercando-a com bases militares e apoiando seus aliados locais tradicionais: Japão, Coréria do Sul, Taiwan e Filipinas. É significativo que a primeira viagem de Obama, depois da sua reeleição em 2012, tenha sido para Birmânia, Camboja e Tailândia, três países da Associação de Nações da Ásia do Sudeste (ASEAN), uma organização que reúne os aliados de Washington na região, cujos membros têm problemas de limites maritimos com Pequim.
Os mares da China tornaram-se as zonas com maior potencial de conflito armado da área Ásia-Pacífico. Há tensões entre Pequim e Tóquio, a propósito da soberania sobre as ilhas Senkaku (Diaoyú para os chineses). Também a disputa com Vietnã e Filipinas sobre a propriedade das ilhas Spratly está subindo o tom perigosamente. A China está modernizando toda sua marinha em alta velocidade. Em 2012, lançou seu primeiro porta-aviões, o Lioning, e está construindo um segundo, com a intenção de intimidar a Casa Branca. Pequim suporta cada vez menos a presença militar dos EUA na Ásia. Entre estes dois gigantes, esta se instalando uma perigosa “desconfiança estratégica” que, sem nenhuma dúvida, poderá marcar a política internacional nesta reginão até 2030.
3. O terrorismo jihadista
Outras das ameaças globais indicadas por nossa bússula é o terrorismo iahadista praticado ontem pela Al-Qaeda e hoje pelo Estado Islâmico (ISIS). As principais causas do terrorismo atual têm de ser buscadas nos desastrosos erros e crimes cometidos pelas potências que invadiram o Iraque em 2003 — além das intervenções caóticas na Líbia (2011) e na Síria (2014).
No Oriente Médio segue situado no atual foco de desestabilização do mundo. Em particular, em torno da inextricável guerra civil na Síria. O que está claro é que, neste país, as grandes potências ocidentais (EUA, Reino Unido, França), aliadas aos Estados que mais difundem pelo mundo a concepção mais arcaica e retrógrada do islã (Árabia Saudita, Qatar e Turquia), decidiram apoiar (com dinheiro, armas e instruções) a insurgência islamista sunista. Os EUA constituíram nesta região um amplo “exército sunita” com o objetivo de derrubar Bashar Al-Assad e prejudicar um grande aliado regional de Teerã. Entretanto, o governo de Assad, com o apoio da Rússia e do Irã, resistiu e segue consolidando-se. O resultado de tantos erros é o terrorismo jihadista atual que multiplica os atentados odiosos contra civis inocentes na Europa e nos EUA.
Algumas capitais ocidentais seguem pensando que a potência militar maciça é suficiente para derrotar o terrorismo. Mas a história militar mostra exemplos abundantes de grandes potências incapazes de derrotar adversários mais débeis. Basta recordar os fracassos norteamericanos no Vietnã em 1975, e na Somália em 1994. Em um combate assimétrico, aquele que pode mais, não ganha necessariamente. O historiador Eric Hobsbawn nos recorda que “Na Irlanda do Norte, durante certa de 30 anos, o poder britânico se mostrou incapaz de derrotar um exercito minúsculo como o IRA. Certamente o IRA não venceu, porém nem por isso, foi vencido”.
Os conflitos do novo tipo, quando uma potência enfrenta o débil ou o louco, são mais fáceis de começar do que de terminar. E o emprego maciço de meio militares pesados não necessariamente permite alcançar os objetivos buscados.
A luta contra o terrorismo também está justificando, em matéria de governança e de política doméstica, todas as medidas autoritárias e todo os excessos, inclusive uma versão moderna do “autoritarismo democrático” que tem como alvo, além das organizações terroristas, todos os manifestantes que se opõem às políticas globalizadoras e neoliberais.
4. Há crises para muito tempo…
Outras constatação importante: os países ricos seguem padecendo de consequencias do terremoto econômico-financeiro que foi a crise de 2008. Pela primeira vez, a União Europeia, (e o “Brexit” confirma), vê ameaçada sua coesão e até sua existência. Na Europa, a crise econômica durará ao menos mais uma década, até pelo menos 2025.
Há crise, em qualquer setor, quando algum mecanismo deixa de atuar, começa a ceder e acaba rompendo-se. Essa ruptura impede que o conjunto da maquinaria siga funcionando. É o que aconteceu com a economia mundial desde o estouro da crise das sub-primes em 2007-2008.
As consequencias sociais desse cataclismo econômico foram brutalmente inéditas: 23 milhões de desempregados na União Europeia e mais de 80 milhões de pobres… Os jovens, em particular, são as principais vítimas; gerações sem futuro. Mas as classes médias também estão assustadas porque o modelo neoliberal de crescimento abandonou-as à margem do caminho.
A velocidade da economia financeira de hoje é de relampago, enquanto que a velocidade da política, em comparação, é de caracol. Resulta que fica cada vez mais difícil conciliar tempo econômico e tempo político. E também crises globais e governos nacionais. Tudo isto provoca, nos cidadãos, frustração e angústia.
A crise global produz perdedores e ganhadores. Os ganhadores encontram-se, essencialmente, na Ásia e nos países emergentes, que não têm uma visão tão pessismista da situação, como os europeus. Também há muitos ganhadores no interior dos países ocidentais, cujas sociedades econtram-se fraturadas pela desigualdade entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.
Na realidade, não estamos suportando uma crise, mas uma série de crises, uma soma de crises mescladas tão intimamente umas às outras que não conseguimos distinguir entre causas e efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas das outras, e assim até formar um verdadeiro sistema de crises. Ou seja, enfrentamos uma autêntica crise sistêmica do mundo ocidental, que afeta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a identidade, a guerra, o clima, o meio ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação, a juventude etc.
Do ponto de vista antropológico, essas crises estão sendo traduzidas por um aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem em estado de ansiedade e incerteza. Voltam os grandes pânicos ante ameaças indeterminadas, como podem ser a perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais, a insegurança generalizada… Tudo isso constitui um desafio para as democracias. Porque esse terror transforma-se às vezes em ódio e em repúdio. Em vários países europeus, e também nos EUA, ele dirige-se hoje contra o estrangeiro, o imigrante, latinos, ciganos, subsaharianos, “sem visto”, e etc. Crecem os partidos xenofóbicos e de extrema direita.
5. Decepção e desencanto
É preciso entender que, desde a crise financeira de 2008 (de que ainda não saimos), nada é igual em nenhum lugar. Os cidadãos estão profundamente desencantados. A própria democracia, como modelo, perdeu credibilidade. Os sistemas políticos foram sacudidos pela raiz. Na Europa, por exemplo, os grandes partidos tradicionais estã em crise. E em toda parte percebemos o crescimento de formações de extrema direita (na França, na Áustria e nos países nórdicos) ou de partidos antisistema e anticorrupção (Itália, Espanha). A paisagem política parece radicalmente transformada.
Esse fenômeno chegou aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda populista de direita devastadora, então encarnada pelo Tea Party. A ascensão do multimilionário Donald Trump na corrida pela Casa Branca prolonga essa onda e se constitui numa revolução eleitoral que nenhum analista soube prever. Ainda que sobreviva, aparentemente, a velha bicefalia entre democratas e republicanos, a ascensão de um candidato tão heterodoxo como Trump constitui um verdadeiro terremoto. Seu estilo direto, popularesco, e sua mensagem maniqueísta e reducionista, com apelo aos baixos instintos de certos setores da sociedade, conferiram-lhe um caráter de autenticidade aos olhos do setor mais decepcionado dos eleitores de direita.
A esse respeito, o candidato republicano soube interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião das bases”. Melhor que todos, percebeu a fratura cada vez maior entre as elites políticas, econômicas, intelectuais e midiáticas, por um lado, e a base do eleitorado conservador, por outro. Seu discurso violentamente antiburocracia de Washington, antimídia e anti-Wall Street seduz, em particular, os eleitores brancos, pouco cultos e empobrecidos pelos efeitos da globalização econômica.
6. Terremotos e mais terremotos
Poderíamos dizer que outra grande característica do novo cenário global são os terremotos. Terremotos financeiros, monetários, das bolsas; terremotos climáticos, energéticos, tecnológicos, sociais, geopolíticos como o restabelecimento de relações entre Cuba e Estados Unidos, ou, em outro sentido, o recente golpe de Estado institucional no Brasil contra a presidenta Dilma Rousseff. Terremotos eleitorais como a recente vitória do “não” na Colômbia aos Acordos de Paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as FARC; ou o recente “Brexit” no Reino Unidos, ou o êxito da extrema direita na Áustria, ou a derrota de Angela Merkel em várias eleições parciais na Alemanha. Ou o enorme terremoto que poderia constituir, efetivamente, a eventual vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos.
Acontecimentos imprevistos irrompem com força sem que ninguém, ou quase ninguém, os tenha visto chegando. Há uma falta de visibilidade geral. Se governar é prever, vivemos uma evidente crise de governança geral. Em muitos países, o Estado que protegia os cidadãos deixou de existir. Há uma crise da democracia representativa: “Não nos representam!”, diziam os “indignados”. As pessoas reivindicam que a autoridade política volte a assumir seu papel condutor na sociedade. Insiste-se na necessidade de reinventar a política e de que o poder político ponha fim ao poder econômico e financeiro dos mercados.
7. Internet, ciber-espionagem e ciber-defesa
O novo cenário global também se caracteriza pela multiplicidade de rupturas estratégicas, cujo significado às vezes não compreendemos. Hoje, a internet é o vetor da maioria das mudanças. Quase todas as crises recentes têm alguma relação com as novas tecnologias da comunicação e da informação, com a desmaterialização e a digitalização generalizadas, e com a explosão inédita das redes sociais. Mais que uma tecnoloia, a Internet é pois um ator fundamental da crise. Basta recordar o papel de WikiLeaks, Facebook, Twitter e das demais redes sociais na aceleraçao da informação e da conectividade social pelo mundo.
Daqui a 2030, no novo cenário, algumas das maiores coletividades do planeta já não serão países, mas comunidades congregadas e vinculadas entre si pela internet e pelas redes sociais. Por exemplo, ‘Facebooklandia’: mais de um bilhão de usuários… Ou ‘Twitterlandia’, mais de 800 milhões… Sua influência, no jogo da geopolítica mundial, poderia revelar-se decisiva. Hoje, as estruturas de poder se borram graças ao acesso universal à rede e ao uso de novas ferramentas digitais.
Por outro lado, pela estreita cumplicidade que algumas grandes potências estabeleceram com as grandes empresas privadas que dominam as indústrias de informática e de telecomunicações, a capacidade em termos de espionagem de massas cresceu também de forma exponencial. As mega empresas como Google, Apple, Microsoft, Amazon e mais recentemente Facebook estabeleceram laços estreitos com o aparato do Estado em Washington, especialmente com os responsáveis pela política exterior. Essa relação converteu-se numa evidência. Compartilham as mesmas ideias politicas e têm idêntica visão de mundo. Em última instância, os estreitos vínculos e a visão comum do mundo, por exemplo, do Google e do governo estadunidense estão a serviço dos objetivos da política externa dos Estados Unidos.
Essa aliança sem precedentes (Estado + aparato militar de segurança + empresas gigantes da Web) – criou um verdadeiro império da vigilância, cujo objetivo claro e concreto é colocar a internet sob escuta, toda a internet e todos os internautas, como denunciaram Julian Assange e Edward Snowden.
O ciberespaço converteu-se numa espécie de quinto elemento. O filósofo grego Empédocles sustentava que nosso mundo estava formado por uma combinação de quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Mas o surgimento da Internet, com seu misterioso “interespaço” superposto ao nosso, formado por bilhões de intercâmbios digitais de todo tipo, por seu roaming, seu streaming e seu clouding, engendrou um novo universo, de certo modo quântico, que vem completar a realidade do nosso mundo contemporâneo como se fosse um autêntico quinto elemento.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que cada um dos quatro elementos tradicionais constitui, historicamente, um campo de batalha, um lugar de confronto. E que os Estados tiveram de desenvolver componentes específicos das forças armadas para cada um desses elementos: para a terra, o exército; para o ar, a aeronáutica; para a água, a Marinha; e, com caráter mais singular, para o fogo, os bombeiros, ou “soldados do fogo”. De modo natural, todas as grandes potências estão acrescentando hoje, aos três exércitos tradicionais e aos combatentes do fogo, um novo exército, cujo ecosistema é o quinto elemento: o ciberexército, encarregado da ciberdefesa, que tem suas próprias estruturas orgânicas, seu Estado maior, seus cibersoldados e suas próprias armas: supercomputadores preparados para defender as ciberfronteiras e travar a ciberguerra digital no âmbito da Internet.
8. Uma mutação do capitalismo: a economia colaborativa
Trinta anos depois da expansão maciça da Web, os hábitos de consumo também estão mudando. Impõe-se pouco a pouco a ideia de que a opção mais inteligente é usar algo em comum, e não necessariamente comprando-o. Isso significa abandonar, pouco a pouco, uma economia baseada na submissão dos consumidores e no antagonismo ou na competição entre os produtores — e passar a uma economia que estimula a colaboração e o intercâmbio entre os usuários de bens e serviços. Tudo isso causa uma verdadeira revolução no seio do capitalismo, que está operando uma nova mutação, diante de nossos olhos.
É um momento irresistível. Milhares de plataformas digitais de intercambio de produtos e serviços estão se expandindo com muita rapidez. A quantidade de bens e serviços que podem ser alugados ou trocados mediante plataformas online, sejam pagas ou gratuitas (como a Wikipedia), é ja literalmente infinita.
Em nível planetário, essa economia colaborativa cresce atualmente entre 15% e 17% ao ano. Com alguns exemplos de crescimentos absolutamente espetaculares. Por exemplo o Uber, o aplicativo digital que conecta passageiros com motoristas, em apenas cinco anos de existência já vale 68 bilhões de dólares e opera em 132 países. O Airbnb, a plataforma online de hospedagem para particulares surgida em 2008 e que já encontrou cama para mais de 40 milhões de viajantes, vale hoje na Bolsa (sem ser proprietária de uma única habitação) mais de 30 bilhões de dólares, ou seja, mais que os grande grupos Hilton, Marriott ou Hyatt.
A esse respeito, outro traço fundamental que está mudando – e que foi nada menos que a base da sociedade de consumo –, é o sentido de propriedade, o desejo de posse. Adquirir, compar, ter, possuir eram os verbos que melhor traduziam a ambição essencial de uma época em que o ter definia o ser. Acumular “coisas” (casas, carros, geladeiras, televisores, móveis, roupa, relógios, livros, quadros, telefones etc) constituía, para muitas pessoas, a principal razão da existência. Parecia que, desde o início dos tempos, o sentido materialista de posse era inerente ao ser humano.
A economia colaborativa constitui assim um modelo baseado no intercâmbio e no compartilhamento de bens e serviços por meio do uso de plataformas digitais. Inspira-se nas utopias de compartilhamento e de valores não mercantis como a ajuda mútua ou a convivialidade, e também do espírito de gratuidade, mito fundador da internet. Sua ideia principal é: “o meu é seu”, ou seja, compartilhar em vez de possuir. E o conceito básico é a troca. Trata-se de conectar, por via digital, as pessoas que buscam “algo” com as pessoas que o oferecem. As empresas mais conhecidas desse setor são: Uber, Airbnb, Netflix, Blabacar etc.
Muitos indícios levam a pensar que estamos assistindo ao ocaso da 2ª revolução industrial, baseada no uso maciço de energias fósseis e em telecomunicações centralizadas. E vemos a emergência de uma economia colaborativa que obriga, como já dissemos, o sistema capitalista a mudar.
Por outro lado, num contexto em que as mudanças climáticas tornaram-se a principal ameaça para a sobrevivência da humanidade, os cidadãos não desconhecem os perigos ecológicos inerentes ao modelo de hiperprodução e de hiperconsumo globaliado. Aí também a economia colaborativa oferece soluções menos agressivas para o planeta.
Num momento como o atual, de forte desconfiança com relação ao modelo neoliberal e às elites políticas, financeiras, midiáticas e bancárias, a economia colaborativa parece aportar respostas a muitos cidadãos em busca de sentido e de ética responsável. Exalta valores de ajuda mútua e desejo de compartilhamento. São critérios que, em outros momentos, foram argamassa de teorias comunitárias e de ambições socialistas. Mas que hoje são – e ninguém duvide – o novo rosto de um capitalismo mutante, desejoso de afastar-se da selvageria amarga de seu recente período ultraliberal.
Nossa bússula também nos indica a aparição de tensões entre os cidadãos e alguns governos em dinâmicas que vários sociólogos qualificam de “pós-políticas” ou “pós-democráticas”… Por um lado, a generalização do acesso à Internet e a universalização do uso das novas tecnologias estão permitindo à cidadania alcançar altas cotas de liberdade e desafiar seus representantes políticos (como durante a crise dos “indignados”). Mas essas mesmas ferramentas eletrônicas proporcionam aos governos, como já vimos, uma capacidade sem precedentes para vigiar seus cidadãos.
9. Ameaças não militares
“A tecnologia – assinala um informe recente da CIA – continuará sendo o grande nivelador, e os futuros magnatas da internet, como poderia ser o caso do Google e do Facebook, possuem montanhas de base de dados, e manejam em tempo real muito mais informação que qualquer governo”. Por isso, a CIA recomenda ao governo dos EUA que faça frente a essa ameaça eventual das grandes corporações de internet, ativando o Special Collection Service, um serviço de inteligência ultrasecreto – administrado em conjunto pela NSA (National Security Agency) e o SCE (Service Cryptologic Elements) das Forças Armadas – especializado na captação clandestina de informações de origem eletromagnética. O perigo de que um grupo de empresas privadas controle toda essa massa de dados reside, principalmente, em que poderia condicionar o comportamento em grande escala da população mundial e inclusive das entidades governamentais. Também se teme que o terrorismo jihadista seja substituído por um ciberterrorismo ainda mais impactante.
A CIA leva a sério esse novo tipo de ameaça porque, afinal, o declínio dos Estados Unidos não foi provocado por uma causa externa, mas por uma crise interna: a quebra econômica ocorrida a partir de 2007-2008. O informe insiste em que a geopolitica de hoje deve interessar-se por novos fenômenos que não possuem, forçosamente, um caráter militar. Pois ainda que as ameaças militares não tenham desaparecido, alguns dos principais perigos que nossas sociedades correm hoje são de ordem não militar: mudanças climáticas, mutação tecnológica, conflitos econômicos, crime organizado, guerras eletrônicas, esgotamento dos recursos naturais…
Sobre esse último aspecto, é importante saber que um dos recursos que está se esgotando mais aceleradamente é a água doce. Em 2030, 60% da população mundial terá problemas de abastecimento de água, dando lugar ao surgimento de “conflitos hídricos”… Em contraste, no que diz respeito aos combustíveis fósseis, a exploração de petróleo e de gás de xisto está alcançando niveis excepcionais, graças às novas técnicas de fraturação hidráulica. Os Estados Unidos já são quase autosuficientes em gás, e em 2030 poderão sê-lo em petróleo, cujos custos de produção tendem a baratear. Além disso, encorajam a relocalização de suas indústrias. Mas se os EUA – principal importador atual de combustíveis fósseis – deixarm de importar petróleo, pode-se prever a queda do preço do barril. Quais serão então as consequências para os grandes países exportadores?
10. Rumo ao triunfo das cidades e das classes médias
No mundo a que nos dirigimos, 60% das pessoas viverão nas cidades, pela primeira vez na história da humanidade. E, como consequência da redução acelerada da pobreza, as classes médias serão dominantes e triplicarão, passando de 1 para 3 bilhões de pessoas. Isso que, em si, é uma revoluçao colossal, acarretará como consequência, entre outros efeitos, uma mudança geral dos hábitos culinários e, em particular, um aumento do consumo de carne em escala planetária – o que agravará a crise ambiental.
Em 2030, os habitantes do planeta seremos 8,5 bilhões, mas o aumento demográfico cessará em todos os continentes, menos na África, com o consequente envelhecimento geral da população mundial. Em troca, o vinculo entre o ser humano e as tecnologias protéticas acelerará o surgimento de novas gerações de robôs e a aparição de “superhomens” capazes de proezas físicas e intelectuais inéditas.
Muito raramente o futuro é previsível. Nem por isso, deve-se deixar imaginá-lo, em termos de prospectiva. Isso nos prepara para agir diante de diversas circunstâncias possíveis, das quais só uma se realizará. Para isso, a geopolítica é uma ferramenta extremamente útil. Ajuda-nos a tomar consciência das rápidas evoluções em curso e a refletir sobre a possibilidade, para cada um de nós, de intervir e apontar o rumo. Para tratar de construir um futuro mais justo, mais ecológico, menos desigual e mais solidário.
Para analisar este novo cenário e prever seu futuro imediato, vamos utilizar a bússola da geopolítica, uma disciplina que nos permite compreender o jogo geral das potências e avaliar os principais riscos e perigos. Para antecipar, como um tabuleiro de xadrez, os movimentos de cada potência adversária.
E o que nos diz esta bússula?
1. O declínio do Ocidente
A principal constatação é o declínio do Ocidente. Pela primeira vez desde o século 15, os países ocidentais estão perdendo poder frente a ascensão das novas potências emergentes. Começa a fase final de um ciclo de cinco séculos de dominação ocidental do mundo. A liderança internacional dos EUA viu-se ameaçada pelo surgimento de novos polos de poder (China, Rússia e Índia) em escala internacional. A “degradação estratégica” dos EUA já começou. O “século americano” parece chegar ao seu fim, enquanto o “sonho europeu” desaparece.
Embora os EUA sigam sendo uma das principais potenciais planetárias, estão perdendo sua hegemonia econômica para a China. E já não exercerão mais sua “hegemonia militar solitária” como fizeram desde o fim da Guerra Fria (1989). Estamos caminhando para um mundo multipolar em que os novos atores (China, Rússia e Índia) têm vocação para construir sólidos polos regionais e a disputar a supremacia internacional com Washington e seus aliados históricos (Reino Unido, França, Alemanha e Japão).
Na terceira linha aparece uma série de potenciais intermediarias, com demografias em alta e fortes taxas de crescimento econômico, convertendo-se também em polos hegemônicos regionais e com tendência a se transformar, daqui a 15 anos, em um grupo de influência planetária (Indonésia, Brasil, Vietnã, Turquia, Nigéria, Etiópia).
Para ter uma ideia da importância e da rapidez da degradação ocidental que se avizinha, basta observar essas cifras: a participação dos países ocidentais na economia mundial vai passar de 56% hoje para 25% em 2030… Ou seja, em menos de 15 anos o Ocidente perderá mais da metade de sua preponderância econômica. Uma das principais consequências será que os EUA e seus aliados não terão mais os meios financeiros para assumir o policiamento do mundo… De tal modo que está mudança estrutural poderá debilitar o Ocidente duplamente.
2. A incontível emergência da China
O mundo está “desocidentalizando” e é cada vez mais multipolar. Destaca-se, mais uma vez, o papel da China que emerge, a principio, como uma grande potência no coração do século 21 — apesar de estar longe de representar ainda uma autêntica rivalidade com Washington. Por um lado, a estabilidade de Pequim não está garantida porque coexistem em seu seio o capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. A tensão entre essas duas dinâmicas causará, cedo ou tarde, uma ruptura que poderá debilitar sua potência.
De qualquer maneira, hoje, em 2016, os EUA seguem exercendo uma indiscutivél dominação hegemônica sobre o planeta. Tanto no terreno militar (fundamental), quanto em vários outros setores cada vez mais determinantes: em particular, na tecnologia (internet) e no soft power (cultura de massas). Isso não quer dizer que a China não tenha realizado também avanços prodigiosos nos últimos anos. Nunca na história, um país cresceu tanto em tão pouco tempo.
No momento, enquanto declina o poder dos EUA, a ascenção da China é incontível. Já é a segunda potência econômica do mundo (à frente do Japão e Alemanha).
Para Washington, a Ásia é agora a zona prioritária desde que o presidente Barack Obama decidiu a reorientação estratégica de sua política externa. Os EUA buscam frear a expansão da China, cercando-a com bases militares e apoiando seus aliados locais tradicionais: Japão, Coréria do Sul, Taiwan e Filipinas. É significativo que a primeira viagem de Obama, depois da sua reeleição em 2012, tenha sido para Birmânia, Camboja e Tailândia, três países da Associação de Nações da Ásia do Sudeste (ASEAN), uma organização que reúne os aliados de Washington na região, cujos membros têm problemas de limites maritimos com Pequim.
Os mares da China tornaram-se as zonas com maior potencial de conflito armado da área Ásia-Pacífico. Há tensões entre Pequim e Tóquio, a propósito da soberania sobre as ilhas Senkaku (Diaoyú para os chineses). Também a disputa com Vietnã e Filipinas sobre a propriedade das ilhas Spratly está subindo o tom perigosamente. A China está modernizando toda sua marinha em alta velocidade. Em 2012, lançou seu primeiro porta-aviões, o Lioning, e está construindo um segundo, com a intenção de intimidar a Casa Branca. Pequim suporta cada vez menos a presença militar dos EUA na Ásia. Entre estes dois gigantes, esta se instalando uma perigosa “desconfiança estratégica” que, sem nenhuma dúvida, poderá marcar a política internacional nesta reginão até 2030.
3. O terrorismo jihadista
Outras das ameaças globais indicadas por nossa bússula é o terrorismo iahadista praticado ontem pela Al-Qaeda e hoje pelo Estado Islâmico (ISIS). As principais causas do terrorismo atual têm de ser buscadas nos desastrosos erros e crimes cometidos pelas potências que invadiram o Iraque em 2003 — além das intervenções caóticas na Líbia (2011) e na Síria (2014).
No Oriente Médio segue situado no atual foco de desestabilização do mundo. Em particular, em torno da inextricável guerra civil na Síria. O que está claro é que, neste país, as grandes potências ocidentais (EUA, Reino Unido, França), aliadas aos Estados que mais difundem pelo mundo a concepção mais arcaica e retrógrada do islã (Árabia Saudita, Qatar e Turquia), decidiram apoiar (com dinheiro, armas e instruções) a insurgência islamista sunista. Os EUA constituíram nesta região um amplo “exército sunita” com o objetivo de derrubar Bashar Al-Assad e prejudicar um grande aliado regional de Teerã. Entretanto, o governo de Assad, com o apoio da Rússia e do Irã, resistiu e segue consolidando-se. O resultado de tantos erros é o terrorismo jihadista atual que multiplica os atentados odiosos contra civis inocentes na Europa e nos EUA.
Algumas capitais ocidentais seguem pensando que a potência militar maciça é suficiente para derrotar o terrorismo. Mas a história militar mostra exemplos abundantes de grandes potências incapazes de derrotar adversários mais débeis. Basta recordar os fracassos norteamericanos no Vietnã em 1975, e na Somália em 1994. Em um combate assimétrico, aquele que pode mais, não ganha necessariamente. O historiador Eric Hobsbawn nos recorda que “Na Irlanda do Norte, durante certa de 30 anos, o poder britânico se mostrou incapaz de derrotar um exercito minúsculo como o IRA. Certamente o IRA não venceu, porém nem por isso, foi vencido”.
Os conflitos do novo tipo, quando uma potência enfrenta o débil ou o louco, são mais fáceis de começar do que de terminar. E o emprego maciço de meio militares pesados não necessariamente permite alcançar os objetivos buscados.
A luta contra o terrorismo também está justificando, em matéria de governança e de política doméstica, todas as medidas autoritárias e todo os excessos, inclusive uma versão moderna do “autoritarismo democrático” que tem como alvo, além das organizações terroristas, todos os manifestantes que se opõem às políticas globalizadoras e neoliberais.
4. Há crises para muito tempo…
Outras constatação importante: os países ricos seguem padecendo de consequencias do terremoto econômico-financeiro que foi a crise de 2008. Pela primeira vez, a União Europeia, (e o “Brexit” confirma), vê ameaçada sua coesão e até sua existência. Na Europa, a crise econômica durará ao menos mais uma década, até pelo menos 2025.
Há crise, em qualquer setor, quando algum mecanismo deixa de atuar, começa a ceder e acaba rompendo-se. Essa ruptura impede que o conjunto da maquinaria siga funcionando. É o que aconteceu com a economia mundial desde o estouro da crise das sub-primes em 2007-2008.
As consequencias sociais desse cataclismo econômico foram brutalmente inéditas: 23 milhões de desempregados na União Europeia e mais de 80 milhões de pobres… Os jovens, em particular, são as principais vítimas; gerações sem futuro. Mas as classes médias também estão assustadas porque o modelo neoliberal de crescimento abandonou-as à margem do caminho.
A velocidade da economia financeira de hoje é de relampago, enquanto que a velocidade da política, em comparação, é de caracol. Resulta que fica cada vez mais difícil conciliar tempo econômico e tempo político. E também crises globais e governos nacionais. Tudo isto provoca, nos cidadãos, frustração e angústia.
A crise global produz perdedores e ganhadores. Os ganhadores encontram-se, essencialmente, na Ásia e nos países emergentes, que não têm uma visão tão pessismista da situação, como os europeus. Também há muitos ganhadores no interior dos países ocidentais, cujas sociedades econtram-se fraturadas pela desigualdade entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.
Na realidade, não estamos suportando uma crise, mas uma série de crises, uma soma de crises mescladas tão intimamente umas às outras que não conseguimos distinguir entre causas e efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas das outras, e assim até formar um verdadeiro sistema de crises. Ou seja, enfrentamos uma autêntica crise sistêmica do mundo ocidental, que afeta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a identidade, a guerra, o clima, o meio ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação, a juventude etc.
Do ponto de vista antropológico, essas crises estão sendo traduzidas por um aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem em estado de ansiedade e incerteza. Voltam os grandes pânicos ante ameaças indeterminadas, como podem ser a perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais, a insegurança generalizada… Tudo isso constitui um desafio para as democracias. Porque esse terror transforma-se às vezes em ódio e em repúdio. Em vários países europeus, e também nos EUA, ele dirige-se hoje contra o estrangeiro, o imigrante, latinos, ciganos, subsaharianos, “sem visto”, e etc. Crecem os partidos xenofóbicos e de extrema direita.
5. Decepção e desencanto
É preciso entender que, desde a crise financeira de 2008 (de que ainda não saimos), nada é igual em nenhum lugar. Os cidadãos estão profundamente desencantados. A própria democracia, como modelo, perdeu credibilidade. Os sistemas políticos foram sacudidos pela raiz. Na Europa, por exemplo, os grandes partidos tradicionais estã em crise. E em toda parte percebemos o crescimento de formações de extrema direita (na França, na Áustria e nos países nórdicos) ou de partidos antisistema e anticorrupção (Itália, Espanha). A paisagem política parece radicalmente transformada.
Esse fenômeno chegou aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda populista de direita devastadora, então encarnada pelo Tea Party. A ascensão do multimilionário Donald Trump na corrida pela Casa Branca prolonga essa onda e se constitui numa revolução eleitoral que nenhum analista soube prever. Ainda que sobreviva, aparentemente, a velha bicefalia entre democratas e republicanos, a ascensão de um candidato tão heterodoxo como Trump constitui um verdadeiro terremoto. Seu estilo direto, popularesco, e sua mensagem maniqueísta e reducionista, com apelo aos baixos instintos de certos setores da sociedade, conferiram-lhe um caráter de autenticidade aos olhos do setor mais decepcionado dos eleitores de direita.
A esse respeito, o candidato republicano soube interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião das bases”. Melhor que todos, percebeu a fratura cada vez maior entre as elites políticas, econômicas, intelectuais e midiáticas, por um lado, e a base do eleitorado conservador, por outro. Seu discurso violentamente antiburocracia de Washington, antimídia e anti-Wall Street seduz, em particular, os eleitores brancos, pouco cultos e empobrecidos pelos efeitos da globalização econômica.
6. Terremotos e mais terremotos
Poderíamos dizer que outra grande característica do novo cenário global são os terremotos. Terremotos financeiros, monetários, das bolsas; terremotos climáticos, energéticos, tecnológicos, sociais, geopolíticos como o restabelecimento de relações entre Cuba e Estados Unidos, ou, em outro sentido, o recente golpe de Estado institucional no Brasil contra a presidenta Dilma Rousseff. Terremotos eleitorais como a recente vitória do “não” na Colômbia aos Acordos de Paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as FARC; ou o recente “Brexit” no Reino Unidos, ou o êxito da extrema direita na Áustria, ou a derrota de Angela Merkel em várias eleições parciais na Alemanha. Ou o enorme terremoto que poderia constituir, efetivamente, a eventual vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos.
Acontecimentos imprevistos irrompem com força sem que ninguém, ou quase ninguém, os tenha visto chegando. Há uma falta de visibilidade geral. Se governar é prever, vivemos uma evidente crise de governança geral. Em muitos países, o Estado que protegia os cidadãos deixou de existir. Há uma crise da democracia representativa: “Não nos representam!”, diziam os “indignados”. As pessoas reivindicam que a autoridade política volte a assumir seu papel condutor na sociedade. Insiste-se na necessidade de reinventar a política e de que o poder político ponha fim ao poder econômico e financeiro dos mercados.
7. Internet, ciber-espionagem e ciber-defesa
O novo cenário global também se caracteriza pela multiplicidade de rupturas estratégicas, cujo significado às vezes não compreendemos. Hoje, a internet é o vetor da maioria das mudanças. Quase todas as crises recentes têm alguma relação com as novas tecnologias da comunicação e da informação, com a desmaterialização e a digitalização generalizadas, e com a explosão inédita das redes sociais. Mais que uma tecnoloia, a Internet é pois um ator fundamental da crise. Basta recordar o papel de WikiLeaks, Facebook, Twitter e das demais redes sociais na aceleraçao da informação e da conectividade social pelo mundo.
Daqui a 2030, no novo cenário, algumas das maiores coletividades do planeta já não serão países, mas comunidades congregadas e vinculadas entre si pela internet e pelas redes sociais. Por exemplo, ‘Facebooklandia’: mais de um bilhão de usuários… Ou ‘Twitterlandia’, mais de 800 milhões… Sua influência, no jogo da geopolítica mundial, poderia revelar-se decisiva. Hoje, as estruturas de poder se borram graças ao acesso universal à rede e ao uso de novas ferramentas digitais.
Por outro lado, pela estreita cumplicidade que algumas grandes potências estabeleceram com as grandes empresas privadas que dominam as indústrias de informática e de telecomunicações, a capacidade em termos de espionagem de massas cresceu também de forma exponencial. As mega empresas como Google, Apple, Microsoft, Amazon e mais recentemente Facebook estabeleceram laços estreitos com o aparato do Estado em Washington, especialmente com os responsáveis pela política exterior. Essa relação converteu-se numa evidência. Compartilham as mesmas ideias politicas e têm idêntica visão de mundo. Em última instância, os estreitos vínculos e a visão comum do mundo, por exemplo, do Google e do governo estadunidense estão a serviço dos objetivos da política externa dos Estados Unidos.
Essa aliança sem precedentes (Estado + aparato militar de segurança + empresas gigantes da Web) – criou um verdadeiro império da vigilância, cujo objetivo claro e concreto é colocar a internet sob escuta, toda a internet e todos os internautas, como denunciaram Julian Assange e Edward Snowden.
O ciberespaço converteu-se numa espécie de quinto elemento. O filósofo grego Empédocles sustentava que nosso mundo estava formado por uma combinação de quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Mas o surgimento da Internet, com seu misterioso “interespaço” superposto ao nosso, formado por bilhões de intercâmbios digitais de todo tipo, por seu roaming, seu streaming e seu clouding, engendrou um novo universo, de certo modo quântico, que vem completar a realidade do nosso mundo contemporâneo como se fosse um autêntico quinto elemento.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que cada um dos quatro elementos tradicionais constitui, historicamente, um campo de batalha, um lugar de confronto. E que os Estados tiveram de desenvolver componentes específicos das forças armadas para cada um desses elementos: para a terra, o exército; para o ar, a aeronáutica; para a água, a Marinha; e, com caráter mais singular, para o fogo, os bombeiros, ou “soldados do fogo”. De modo natural, todas as grandes potências estão acrescentando hoje, aos três exércitos tradicionais e aos combatentes do fogo, um novo exército, cujo ecosistema é o quinto elemento: o ciberexército, encarregado da ciberdefesa, que tem suas próprias estruturas orgânicas, seu Estado maior, seus cibersoldados e suas próprias armas: supercomputadores preparados para defender as ciberfronteiras e travar a ciberguerra digital no âmbito da Internet.
8. Uma mutação do capitalismo: a economia colaborativa
Trinta anos depois da expansão maciça da Web, os hábitos de consumo também estão mudando. Impõe-se pouco a pouco a ideia de que a opção mais inteligente é usar algo em comum, e não necessariamente comprando-o. Isso significa abandonar, pouco a pouco, uma economia baseada na submissão dos consumidores e no antagonismo ou na competição entre os produtores — e passar a uma economia que estimula a colaboração e o intercâmbio entre os usuários de bens e serviços. Tudo isso causa uma verdadeira revolução no seio do capitalismo, que está operando uma nova mutação, diante de nossos olhos.
É um momento irresistível. Milhares de plataformas digitais de intercambio de produtos e serviços estão se expandindo com muita rapidez. A quantidade de bens e serviços que podem ser alugados ou trocados mediante plataformas online, sejam pagas ou gratuitas (como a Wikipedia), é ja literalmente infinita.
Em nível planetário, essa economia colaborativa cresce atualmente entre 15% e 17% ao ano. Com alguns exemplos de crescimentos absolutamente espetaculares. Por exemplo o Uber, o aplicativo digital que conecta passageiros com motoristas, em apenas cinco anos de existência já vale 68 bilhões de dólares e opera em 132 países. O Airbnb, a plataforma online de hospedagem para particulares surgida em 2008 e que já encontrou cama para mais de 40 milhões de viajantes, vale hoje na Bolsa (sem ser proprietária de uma única habitação) mais de 30 bilhões de dólares, ou seja, mais que os grande grupos Hilton, Marriott ou Hyatt.
A esse respeito, outro traço fundamental que está mudando – e que foi nada menos que a base da sociedade de consumo –, é o sentido de propriedade, o desejo de posse. Adquirir, compar, ter, possuir eram os verbos que melhor traduziam a ambição essencial de uma época em que o ter definia o ser. Acumular “coisas” (casas, carros, geladeiras, televisores, móveis, roupa, relógios, livros, quadros, telefones etc) constituía, para muitas pessoas, a principal razão da existência. Parecia que, desde o início dos tempos, o sentido materialista de posse era inerente ao ser humano.
A economia colaborativa constitui assim um modelo baseado no intercâmbio e no compartilhamento de bens e serviços por meio do uso de plataformas digitais. Inspira-se nas utopias de compartilhamento e de valores não mercantis como a ajuda mútua ou a convivialidade, e também do espírito de gratuidade, mito fundador da internet. Sua ideia principal é: “o meu é seu”, ou seja, compartilhar em vez de possuir. E o conceito básico é a troca. Trata-se de conectar, por via digital, as pessoas que buscam “algo” com as pessoas que o oferecem. As empresas mais conhecidas desse setor são: Uber, Airbnb, Netflix, Blabacar etc.
Muitos indícios levam a pensar que estamos assistindo ao ocaso da 2ª revolução industrial, baseada no uso maciço de energias fósseis e em telecomunicações centralizadas. E vemos a emergência de uma economia colaborativa que obriga, como já dissemos, o sistema capitalista a mudar.
Por outro lado, num contexto em que as mudanças climáticas tornaram-se a principal ameaça para a sobrevivência da humanidade, os cidadãos não desconhecem os perigos ecológicos inerentes ao modelo de hiperprodução e de hiperconsumo globaliado. Aí também a economia colaborativa oferece soluções menos agressivas para o planeta.
Num momento como o atual, de forte desconfiança com relação ao modelo neoliberal e às elites políticas, financeiras, midiáticas e bancárias, a economia colaborativa parece aportar respostas a muitos cidadãos em busca de sentido e de ética responsável. Exalta valores de ajuda mútua e desejo de compartilhamento. São critérios que, em outros momentos, foram argamassa de teorias comunitárias e de ambições socialistas. Mas que hoje são – e ninguém duvide – o novo rosto de um capitalismo mutante, desejoso de afastar-se da selvageria amarga de seu recente período ultraliberal.
Nossa bússula também nos indica a aparição de tensões entre os cidadãos e alguns governos em dinâmicas que vários sociólogos qualificam de “pós-políticas” ou “pós-democráticas”… Por um lado, a generalização do acesso à Internet e a universalização do uso das novas tecnologias estão permitindo à cidadania alcançar altas cotas de liberdade e desafiar seus representantes políticos (como durante a crise dos “indignados”). Mas essas mesmas ferramentas eletrônicas proporcionam aos governos, como já vimos, uma capacidade sem precedentes para vigiar seus cidadãos.
9. Ameaças não militares
“A tecnologia – assinala um informe recente da CIA – continuará sendo o grande nivelador, e os futuros magnatas da internet, como poderia ser o caso do Google e do Facebook, possuem montanhas de base de dados, e manejam em tempo real muito mais informação que qualquer governo”. Por isso, a CIA recomenda ao governo dos EUA que faça frente a essa ameaça eventual das grandes corporações de internet, ativando o Special Collection Service, um serviço de inteligência ultrasecreto – administrado em conjunto pela NSA (National Security Agency) e o SCE (Service Cryptologic Elements) das Forças Armadas – especializado na captação clandestina de informações de origem eletromagnética. O perigo de que um grupo de empresas privadas controle toda essa massa de dados reside, principalmente, em que poderia condicionar o comportamento em grande escala da população mundial e inclusive das entidades governamentais. Também se teme que o terrorismo jihadista seja substituído por um ciberterrorismo ainda mais impactante.
A CIA leva a sério esse novo tipo de ameaça porque, afinal, o declínio dos Estados Unidos não foi provocado por uma causa externa, mas por uma crise interna: a quebra econômica ocorrida a partir de 2007-2008. O informe insiste em que a geopolitica de hoje deve interessar-se por novos fenômenos que não possuem, forçosamente, um caráter militar. Pois ainda que as ameaças militares não tenham desaparecido, alguns dos principais perigos que nossas sociedades correm hoje são de ordem não militar: mudanças climáticas, mutação tecnológica, conflitos econômicos, crime organizado, guerras eletrônicas, esgotamento dos recursos naturais…
Sobre esse último aspecto, é importante saber que um dos recursos que está se esgotando mais aceleradamente é a água doce. Em 2030, 60% da população mundial terá problemas de abastecimento de água, dando lugar ao surgimento de “conflitos hídricos”… Em contraste, no que diz respeito aos combustíveis fósseis, a exploração de petróleo e de gás de xisto está alcançando niveis excepcionais, graças às novas técnicas de fraturação hidráulica. Os Estados Unidos já são quase autosuficientes em gás, e em 2030 poderão sê-lo em petróleo, cujos custos de produção tendem a baratear. Além disso, encorajam a relocalização de suas indústrias. Mas se os EUA – principal importador atual de combustíveis fósseis – deixarm de importar petróleo, pode-se prever a queda do preço do barril. Quais serão então as consequências para os grandes países exportadores?
10. Rumo ao triunfo das cidades e das classes médias
No mundo a que nos dirigimos, 60% das pessoas viverão nas cidades, pela primeira vez na história da humanidade. E, como consequência da redução acelerada da pobreza, as classes médias serão dominantes e triplicarão, passando de 1 para 3 bilhões de pessoas. Isso que, em si, é uma revoluçao colossal, acarretará como consequência, entre outros efeitos, uma mudança geral dos hábitos culinários e, em particular, um aumento do consumo de carne em escala planetária – o que agravará a crise ambiental.
Em 2030, os habitantes do planeta seremos 8,5 bilhões, mas o aumento demográfico cessará em todos os continentes, menos na África, com o consequente envelhecimento geral da população mundial. Em troca, o vinculo entre o ser humano e as tecnologias protéticas acelerará o surgimento de novas gerações de robôs e a aparição de “superhomens” capazes de proezas físicas e intelectuais inéditas.
Muito raramente o futuro é previsível. Nem por isso, deve-se deixar imaginá-lo, em termos de prospectiva. Isso nos prepara para agir diante de diversas circunstâncias possíveis, das quais só uma se realizará. Para isso, a geopolítica é uma ferramenta extremamente útil. Ajuda-nos a tomar consciência das rápidas evoluções em curso e a refletir sobre a possibilidade, para cada um de nós, de intervir e apontar o rumo. Para tratar de construir um futuro mais justo, mais ecológico, menos desigual e mais solidário.
* Tradução de Cauê Ameni e Inês Castilho.
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