Lenin Moreno |
O defunto ainda está vivo, apesar de certas notícias exageradas que circulam por aí. Mas com sérios problemas de saúde, isso é verdade. O futuro da esquerda sul-americana retornou ao topo da agenda política regional com as eleições presidenciais do Equador, que decidirão sobre a continuidade ou o encerramento do projeto político iniciado há dez anos com a posse do presidente Rafael Correa – uma das faces mais visíveis do ciclo progressista nesta parte do mundo.
Eleito três vezes seguidas à presidência, sempre por ampla maioria, Correa está constitucionalmente impedido de concorrer a um novo mandato. Indicou como candidato pela legenda governista Aliança País seu vice, Lenin Moreno, que liderou as apurações no primeiro turno, encerrado nesta quinta-feira (23), onde obteve 39,3% dos votos.
Foi um desempenho expressivo, considerando-se que se trata de um político inexperiente e pouco conhecido em comparação com Correa. Moreno ficou bem à frente do seu adversário mais próximo, o oposicionista Guillermo Lasso, mas perdeu por alguns décimos a chance de resolver a parada no primeiro turno, o que exigiria 40% do total de votos, além da necessidade de obter uma vantagem de ao menos 10% sobre o segundo colocado (que teve 28%).
A corrida presidencial será definida, no dia 2 de abril, entre Moreno e Lasso, em uma disputa que reproduz, nas suas dimensões política e ideológica, os recentes embates eleitorais travados na América do Sul ao redor do eixo esquerda x direita, como os ocorridos nos últimos três anos no Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela e outros países.
Moreno, o candidato da esquerda, é cadeirante e ativista em favor dos portadores de deficiência. Sua plataforma propõe, em essência, ampliar as conquistas sociais e econômicas da última década, um período em que o Equador cresceu a uma média anual de 4,5%, reduziu a pobreza em 28%, a extrema pobreza em 47%, e aumentou oito vezes o orçamento da saúde e cinco vezes os investimentos públicos com a educação.
Sob a liderança de Correa, o Equador afirmou sua soberania nacional ao fechar a base naval estadunidense de Manta, teve papel importante na formação da Unasul (a sede da entidade se situa nos arredores de Quito) e se juntou à Venezuela, Cuba e Bolívia no campo político da Alba – Aliança Bolivariana para as Américas. Aumentou os impostos sobre a exploração do petróleo por empresas estrangeiras e levou adiante uma auditoria sobre a dívida externa – iniciativa única no mundo inteiro – que constatou muitas irregularidades, reduziu os pagamentos e destinou a diferença para financiar projetos sociais.
Já o direitista Guillermo Lasso, integrante da tradicional oligarquia com base na cidade de Guayaquil, é um dos homens mais ricos do país. Banqueiro multimilionário, diretamente associado à adoção do dólar como moeda nacional em sua passagem anterior pelo governo em 2000, afirma que manterá os ganhos sociais do governo atual, da mesma forma que seus similares Aécio Neves e Mauricio Macri prometiam durante suas campanhas eleitorais. Se ele vencer, no entanto, é bem factível supor que repetirá o desmanche brutal das políticas progressistas atualmente em curso na Argentina e no Brasil.
Para não deixar dúvida sobre o que se pode esperar de um governo direitista no Equador, Lasso declarou em campanha que, no caso de sua vitória eleitoral, o perseguido jornalista Julian Assange deverá deixar a embaixada equatoriana em Londres, onde se encontra refugiado há cinco anos. “Nossa embaixada não é um hotel”, afirmou o candidato. “Diremos cordialmente ao sr. Assange que se retire.”
Nesse caso o principal responsável pela revelação de segredos de Estado por meio do portal Wikileaks será certamente preso pela polícia britânica, encaminhado à Justiça do seu país (a Suécia) e em seguida extraditado para os Estados Unidos, onde pode ser condenado até mesmo à morte.
Talvez a melhor frase sobre a dimensão dramática do impasse equatoriano seja a do cientista político argentino Atilio Borón, um dos pensadores marxistas mais renomados da atualidade, que comparou essa eleição à famosa Batalha de Stalingrado, na Segunda Guerra Mundial, porque do seu desenlace dependeria o futuro do Equador e de toda a América Latina.
“Uma derrota daria fôlego à direita regional e aceleraria a alteração regressiva do mapa sociopolítico sul-americano, fortalecendo os cambaleantes governos da Argentina e do Brasil”, escreveu Borón. “A vitória (da esquerda), em contraste, seria um ponto de inflexão, uma muralha contra a qual se arrebentaria a contraofensiva conservadora, refutando a tese de alguns analistas agourentos que se apressaram a decretar o ‘fim do ciclo progessista’ enquanto o finado ainda estava respirando.”
Para o segundo turno, Lasso já conta com o apoio da terceira colocada, Cynthia Viteri, uma candidata tão neoliberal quanto ele próprio e que recebeu 17% dos votos no primeiro turno. Entre os demais candidatos, destaca-se a posição de neutralidade no segundo turno adotado por Paco Moncayo, o quarto colocado, um ex-general de 76 anos com postura política social-democrata, apoiado por movimentos indígenas e por correntes e personalidades de esquerda que romperam com o “correísmo” e passaram a fazer uma oposição virulenta e sistemática ao atual presidente.
Para esses dissidentes de esquerda, não existe diferença entre os oligarcas da direita e o governo da Aliança País, ao qual acusam de agredir o meio-ambiente e os direitos dos indígenas com os projetos de mineração a céu aberto realizados em parceria com empresas estrangeiras, especialmente chinesas.
É temerária qualquer previsão sobre o resultado das urnas. Moreno mostrou força ao obter uma vantagem de mais de 1 milhão de votos (ou 12 pontos percentuais) sobre seu principal oponente. Além disso, o partido governista Aliança País conquistou a maioria absoluta na Assembleia Nacional e, de quebra, aprovou em referendo uma proposta de mudança constitucional que proíbe os equatorianos com posse de dinheiro em paraísos fiscais de exercer cargos públicos e de concorrer em eleições.
Do outro lado, a soma dos votos opositores é claramente superior à dos votos governistas, apesar da dificuldade que Lasso terá em atrair essa votação dispersa na escala necessária para derrotar seu adversário. Tratará de capitalizar a seu favor o impacto psicológico da ascensão de forças políticas de direita em outros países da região. E apoio do governo Trump à sua campanha é algo que não faltará.
O atual paradoxo equatoriano – um governo com excelente desempenho econômico e social às voltas com uma eleição dificílima – se explica, principalmente, pela redução da receita das exportações, com a queda drástica dos preços do petróleo (produto mais importante do país) nos últimos dois anos. A isso se somam os conflitos de Correa com comunidades indígenas, posturas reacionárias em certas questões polêmicas (como o seu intransigente combate à legalização do aborto) e uma agressiva campanha midiática oposicionista que conseguiu desgastar o governo federal a partir de escândalos de corrupção que envolveram funcionários públicos, a empresa petroleira Petroecuador e a construtora brasileira Odebrecht.
Como em qualquer eleição, a disputa eleitoral equatoriana se refere a temas específicos do próprio país –, mas também são evidentes os múltiplos laços entre o que está em jogo naquela nação andina e o contexto político regional.
* Igor Fuser é jornalista, doutor, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e especialista em política internacional.
Eleito três vezes seguidas à presidência, sempre por ampla maioria, Correa está constitucionalmente impedido de concorrer a um novo mandato. Indicou como candidato pela legenda governista Aliança País seu vice, Lenin Moreno, que liderou as apurações no primeiro turno, encerrado nesta quinta-feira (23), onde obteve 39,3% dos votos.
Foi um desempenho expressivo, considerando-se que se trata de um político inexperiente e pouco conhecido em comparação com Correa. Moreno ficou bem à frente do seu adversário mais próximo, o oposicionista Guillermo Lasso, mas perdeu por alguns décimos a chance de resolver a parada no primeiro turno, o que exigiria 40% do total de votos, além da necessidade de obter uma vantagem de ao menos 10% sobre o segundo colocado (que teve 28%).
A corrida presidencial será definida, no dia 2 de abril, entre Moreno e Lasso, em uma disputa que reproduz, nas suas dimensões política e ideológica, os recentes embates eleitorais travados na América do Sul ao redor do eixo esquerda x direita, como os ocorridos nos últimos três anos no Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela e outros países.
Moreno, o candidato da esquerda, é cadeirante e ativista em favor dos portadores de deficiência. Sua plataforma propõe, em essência, ampliar as conquistas sociais e econômicas da última década, um período em que o Equador cresceu a uma média anual de 4,5%, reduziu a pobreza em 28%, a extrema pobreza em 47%, e aumentou oito vezes o orçamento da saúde e cinco vezes os investimentos públicos com a educação.
Sob a liderança de Correa, o Equador afirmou sua soberania nacional ao fechar a base naval estadunidense de Manta, teve papel importante na formação da Unasul (a sede da entidade se situa nos arredores de Quito) e se juntou à Venezuela, Cuba e Bolívia no campo político da Alba – Aliança Bolivariana para as Américas. Aumentou os impostos sobre a exploração do petróleo por empresas estrangeiras e levou adiante uma auditoria sobre a dívida externa – iniciativa única no mundo inteiro – que constatou muitas irregularidades, reduziu os pagamentos e destinou a diferença para financiar projetos sociais.
Já o direitista Guillermo Lasso, integrante da tradicional oligarquia com base na cidade de Guayaquil, é um dos homens mais ricos do país. Banqueiro multimilionário, diretamente associado à adoção do dólar como moeda nacional em sua passagem anterior pelo governo em 2000, afirma que manterá os ganhos sociais do governo atual, da mesma forma que seus similares Aécio Neves e Mauricio Macri prometiam durante suas campanhas eleitorais. Se ele vencer, no entanto, é bem factível supor que repetirá o desmanche brutal das políticas progressistas atualmente em curso na Argentina e no Brasil.
Para não deixar dúvida sobre o que se pode esperar de um governo direitista no Equador, Lasso declarou em campanha que, no caso de sua vitória eleitoral, o perseguido jornalista Julian Assange deverá deixar a embaixada equatoriana em Londres, onde se encontra refugiado há cinco anos. “Nossa embaixada não é um hotel”, afirmou o candidato. “Diremos cordialmente ao sr. Assange que se retire.”
Nesse caso o principal responsável pela revelação de segredos de Estado por meio do portal Wikileaks será certamente preso pela polícia britânica, encaminhado à Justiça do seu país (a Suécia) e em seguida extraditado para os Estados Unidos, onde pode ser condenado até mesmo à morte.
Talvez a melhor frase sobre a dimensão dramática do impasse equatoriano seja a do cientista político argentino Atilio Borón, um dos pensadores marxistas mais renomados da atualidade, que comparou essa eleição à famosa Batalha de Stalingrado, na Segunda Guerra Mundial, porque do seu desenlace dependeria o futuro do Equador e de toda a América Latina.
“Uma derrota daria fôlego à direita regional e aceleraria a alteração regressiva do mapa sociopolítico sul-americano, fortalecendo os cambaleantes governos da Argentina e do Brasil”, escreveu Borón. “A vitória (da esquerda), em contraste, seria um ponto de inflexão, uma muralha contra a qual se arrebentaria a contraofensiva conservadora, refutando a tese de alguns analistas agourentos que se apressaram a decretar o ‘fim do ciclo progessista’ enquanto o finado ainda estava respirando.”
Para o segundo turno, Lasso já conta com o apoio da terceira colocada, Cynthia Viteri, uma candidata tão neoliberal quanto ele próprio e que recebeu 17% dos votos no primeiro turno. Entre os demais candidatos, destaca-se a posição de neutralidade no segundo turno adotado por Paco Moncayo, o quarto colocado, um ex-general de 76 anos com postura política social-democrata, apoiado por movimentos indígenas e por correntes e personalidades de esquerda que romperam com o “correísmo” e passaram a fazer uma oposição virulenta e sistemática ao atual presidente.
Para esses dissidentes de esquerda, não existe diferença entre os oligarcas da direita e o governo da Aliança País, ao qual acusam de agredir o meio-ambiente e os direitos dos indígenas com os projetos de mineração a céu aberto realizados em parceria com empresas estrangeiras, especialmente chinesas.
É temerária qualquer previsão sobre o resultado das urnas. Moreno mostrou força ao obter uma vantagem de mais de 1 milhão de votos (ou 12 pontos percentuais) sobre seu principal oponente. Além disso, o partido governista Aliança País conquistou a maioria absoluta na Assembleia Nacional e, de quebra, aprovou em referendo uma proposta de mudança constitucional que proíbe os equatorianos com posse de dinheiro em paraísos fiscais de exercer cargos públicos e de concorrer em eleições.
Do outro lado, a soma dos votos opositores é claramente superior à dos votos governistas, apesar da dificuldade que Lasso terá em atrair essa votação dispersa na escala necessária para derrotar seu adversário. Tratará de capitalizar a seu favor o impacto psicológico da ascensão de forças políticas de direita em outros países da região. E apoio do governo Trump à sua campanha é algo que não faltará.
O atual paradoxo equatoriano – um governo com excelente desempenho econômico e social às voltas com uma eleição dificílima – se explica, principalmente, pela redução da receita das exportações, com a queda drástica dos preços do petróleo (produto mais importante do país) nos últimos dois anos. A isso se somam os conflitos de Correa com comunidades indígenas, posturas reacionárias em certas questões polêmicas (como o seu intransigente combate à legalização do aborto) e uma agressiva campanha midiática oposicionista que conseguiu desgastar o governo federal a partir de escândalos de corrupção que envolveram funcionários públicos, a empresa petroleira Petroecuador e a construtora brasileira Odebrecht.
Como em qualquer eleição, a disputa eleitoral equatoriana se refere a temas específicos do próprio país –, mas também são evidentes os múltiplos laços entre o que está em jogo naquela nação andina e o contexto político regional.
* Igor Fuser é jornalista, doutor, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e especialista em política internacional.
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