No fascismo os dissidentes eram colocados em ilhas distantes e nas cadeias fétidas, no “stalinismo” nos “gulags” ou nos porões da Lubianca, nas ditaduras latino-americanas nas cadeias e na tortura, ou perante os pelotões informais de fuzilamento. No golpismo “suave”, a palavra blindada pela mídia, as repressões contra quem protesta contra as “reformas”: as saídas suaves e programadas do Governo, como se fossem atos de heroísmo para proteger o bem comum.
Quando nas “jornadas de junho” de 2013 a cobertura partidária e altamente politizada da Rede Globo e da maioria dos órgãos de comunicação do país desfecharam uma forte campanha contra a corrupção, uma boa parte da sociedade acreditou que o gigante iria “acordar”. E ninguém pensava que os propósitos políticos daquele amplo movimento, que uniu vastos setores da classe média “neutra”, grupos espontaneístas de várias origens, frações anticomunistas radicais, devedores do Tesouro Público, sonegadores de todas as ordens, conservadores e reacionários de todos os quadrantes, bem como pessoas sinceras que queriam passar o “país à limpo” - aqueles propósitos políticos - seriam tão claramente espúrios como estes que estamos assistindo hoje.
Mesmo sem maiores considerações ideológicas ou programáticas pode-se afirmar que o Governo anterior era melhor e mais democrático que o atual. E o era por três motivos fundamentais: tinha uma Presidenta que nem o seu mais extremo oposicionista decente poderia acusar de corrupção; era um Governo legítimo, porque ganhou uma eleição direta, de uma coalizão de adversários protegidos pelo oligopólio da mídia, que depois promoveram o golpe; era um Governo com respeitabilidade internacional, porque sucedeu três Governos que colocaram nossas reservas na situação mais confortável da história da República, para compartilharmos do mercado mundial.
Jessé Souza, no seu brilhante “A radiografia do Golpe”, mostra que este não seria possível sem a politização do Judiciário (pelo menos daquela parte mais “ativista”), pois hoje já se torna cada vez difícil diferenciar, nas questões mais importantes que dizem respeito ao funcionamento do Estado, o que é o “jurídico” e o que é o “político”. Sabemos que um sempre contém o outro, mas a sua possibilidade de diferenciação concreta -na esfera “especializada” do Poder Judiciário- é o que gera a expectativa democrática de que todos serão tratados como formalmente iguais, mesmo que socialmente desiguais.
Na época do fascismo ou do nazismo, um Juiz dizer que é necessária uma “certa dose de exceção” -mesmo em relação ao Estado autoritário ou ditatorial estabelecido - seria motivo de cogitação do seu nome para a Corte Constitucional. Um Juiz dizer esta leviandade, porém, num Estado de Direito Democrático -que é exatamente o Estado da restrição radical da exceção- seria motivo de, no mínimo, uma dura investigação dos seus órgãos corporativos, sobre a sua capacidade de discernir o justo do injusto, o legal do ilegal, a prova da convicção. O Estado de Direito está fazendo água no Brasil e a “culpa” não é da luta contra a corrupção, mas dos agentes políticos que a usaram para colocar no Governo um grupo encarregado desmoralizar a democracia política, para para poderem fazer o “ajuste”.
A decisão da “exceção” sempre se dirige contra alguém. Ela não é uma regra abstrata de procedimento, que é arremetida contra “todos”, pois se origina de uma decisão política, de uma parte significativa ou da maioria dos agentes do Estado com capacidade de operar os seus aparatos coercitivos. Opera-os, assim, num sentido previamente escolhido, politicamente, para atingir determinados fins de neutralização, eliminação ou dissuasão, da parte que é escolhida como adversa. O grande impasse dos promotores da “exceção” -nesta etapa da crise- é que para desmenti-la perante a sociedade e o cenário internacional, ela teria que se tornar “regra” e assim desviar dos seus próprios fins: todo o atual grupo de poder teria que ser apeado, pelos mesmos motivos que anteriormente ensejaram que ela, a “exceção”, fosse acionada como suposto instrumento de combate à corrupção.
O oligopólio da mídia e os seus operadores políticos e judiciais jamais vão se dar conta, ou mesmo se importar, que esta cisão radical do país -entre os que são objeto da “exceção” e os que vão usufruir das vantagens pecuniárias das reformas- pode transformar o Brasil numa plataforma de quinquilharias, que exportará algumas “commodities”, combinadas com um vasto mar de miséria, ao lado de classes médias empobrecidas: um viveiro que só reproduz violência insensata e o fim da ideia de nação. O rumo e a reversão deste ocaso -para o bem o para o mal- já aponta para as eleições de 2018. O ocaso, porém, se não for moldado pelas mãos da política consciente poderá acordar os monstros.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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