Por Marcelo Zero
O caso do jornalista William Waack desperta paixões. Muitos exigem sua imediata demissão; outros acham que ele tornou-se vítima de uma campanha inquisitorial exagerada. Defendem o “instruído jornalista” e o “combatente” do conservadorismo tupiniquim.
O problema principal nessa polêmica, como soe acontecer no Brasil de hoje, é a “fulanização” de um debate que deveria ser muito mais amplo. Substitui-se a análise de um tema relevante e complexo pelo ódio ou afeto a indivíduos específicos.
O Brasil é um país profundamente racista e marcadamente desigual. Nossas oligarquias e vastos setores das classes médias brancas odeiam ou desprezam negros e pobres em geral. No máximo, são condescendentes e paternalistas com o “andar de baixo”, e consideram que a caridade, não a política, pode resolver nossa atávica desigualdade, além de aliviar as suas consciências.
Os dados do IBGE e muitos estudos do IPEA e de outras instituições, bem como obras sociológicas já clássicas, mostram uma diferença socioeconômica abissal entre a população branca e a população afrodescendente, que só pode ser explicada pela existência de poderosos mecanismos que impedem a ascensão social e econômica dos negros do Brasil. Assim, o racismo e a desigualdade, associados ao longuíssimo período histórico da escravidão no Brasil, a última nação a abolir o racismo no Ocidente, são as características mais marcantes da nossa sociedade. Nossa pobreza tem cor. Nossa desigualdade separa cores.
Tais características estão impregnadas na nossa cultura e em nossa vida cotidiana. Essa blague asquerosa do jornalista e outras semelhantes já as ouvi inúmeras vezes em restaurantes e reuniões de “gente de bem”. É crueldade ubíqua e tolerada. Nesse sentido, a gravação inadvertida do jornalista apenas escancara um racismo que é tão generalizado quanto ocultado e negado.
Há poucos anos, participei de uma reunião de consultores da Câmara dos Deputados, gente “muito instruída”, como Waack, e um grupo de militares norte-americanos que veio ao Congresso aprender um pouco sobre nosso processo legislativo e o Brasil de um modo geral. Para meu espanto, um dos consultores, reproduzindo os clichês de Gilberto Freire, afirmou que, devido à nossa intensa miscigenação, no Brasil, ao contrário dos EUA, não havia racismo. Enfim, reproduziu o carcomido mito da nossa suposta “democracia racial”, confundindo raça com racismo.
Para meu maior espanto, fui o único entre os cerca de 20 presentes a contestar a “tese”. Citei, entre outros, Florestan Fernandes, cuja obra, “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, desmonta por completo esse e outros mitos raciais brasileiros. Não adiantou, fiquei isolado e pasmo.
Menciono essa historinha para constatar que o racismo e as ideologias que o justificam ou negam não são apenas resquícios de um passado escravocrata, mas fatores fundamentais para o funcionamento do nosso capitalismo selvagem e da nossa sociedade de hierarquia rígida e desigualdade grotesca.
Com efeito, o racismo é sistematicamente reproduzido e reforçado no Brasil “moderno”, mediante uma série de mecanismos econômicos, sociais e culturais. E, como o diabo, seu principal engodo é convencer de que não existe.
Nesse sentido, a nossa mídia oligopolizada, dirigida por um pequeno grupo de famílias brancas e muito ricas, jogou e joga um papel central em sua reprodução.
Sabe-se que há um conhecido diretor-jornalista da mesma rede em que trabalha Waack que publicou livro, de muito sucesso, no qual se nega a existência de racismo no Brasil. Da mesma maneira, ficou bastante conhecida a campanha que a nossa mídia promoveu contra as políticas afirmativas que os governos do PT implantaram para combater o dissimulado, mas muito efetivo, racismo brasileiro. O sistema de cotas, por exemplo, foi demonizado e chegou-se a afirmar, com todas as letras, que o governo estava “criando” racismo num país não-racista.
O caso do jornalista William Waack desperta paixões. Muitos exigem sua imediata demissão; outros acham que ele tornou-se vítima de uma campanha inquisitorial exagerada. Defendem o “instruído jornalista” e o “combatente” do conservadorismo tupiniquim.
O problema principal nessa polêmica, como soe acontecer no Brasil de hoje, é a “fulanização” de um debate que deveria ser muito mais amplo. Substitui-se a análise de um tema relevante e complexo pelo ódio ou afeto a indivíduos específicos.
O Brasil é um país profundamente racista e marcadamente desigual. Nossas oligarquias e vastos setores das classes médias brancas odeiam ou desprezam negros e pobres em geral. No máximo, são condescendentes e paternalistas com o “andar de baixo”, e consideram que a caridade, não a política, pode resolver nossa atávica desigualdade, além de aliviar as suas consciências.
Os dados do IBGE e muitos estudos do IPEA e de outras instituições, bem como obras sociológicas já clássicas, mostram uma diferença socioeconômica abissal entre a população branca e a população afrodescendente, que só pode ser explicada pela existência de poderosos mecanismos que impedem a ascensão social e econômica dos negros do Brasil. Assim, o racismo e a desigualdade, associados ao longuíssimo período histórico da escravidão no Brasil, a última nação a abolir o racismo no Ocidente, são as características mais marcantes da nossa sociedade. Nossa pobreza tem cor. Nossa desigualdade separa cores.
Tais características estão impregnadas na nossa cultura e em nossa vida cotidiana. Essa blague asquerosa do jornalista e outras semelhantes já as ouvi inúmeras vezes em restaurantes e reuniões de “gente de bem”. É crueldade ubíqua e tolerada. Nesse sentido, a gravação inadvertida do jornalista apenas escancara um racismo que é tão generalizado quanto ocultado e negado.
Há poucos anos, participei de uma reunião de consultores da Câmara dos Deputados, gente “muito instruída”, como Waack, e um grupo de militares norte-americanos que veio ao Congresso aprender um pouco sobre nosso processo legislativo e o Brasil de um modo geral. Para meu espanto, um dos consultores, reproduzindo os clichês de Gilberto Freire, afirmou que, devido à nossa intensa miscigenação, no Brasil, ao contrário dos EUA, não havia racismo. Enfim, reproduziu o carcomido mito da nossa suposta “democracia racial”, confundindo raça com racismo.
Para meu maior espanto, fui o único entre os cerca de 20 presentes a contestar a “tese”. Citei, entre outros, Florestan Fernandes, cuja obra, “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, desmonta por completo esse e outros mitos raciais brasileiros. Não adiantou, fiquei isolado e pasmo.
Menciono essa historinha para constatar que o racismo e as ideologias que o justificam ou negam não são apenas resquícios de um passado escravocrata, mas fatores fundamentais para o funcionamento do nosso capitalismo selvagem e da nossa sociedade de hierarquia rígida e desigualdade grotesca.
Com efeito, o racismo é sistematicamente reproduzido e reforçado no Brasil “moderno”, mediante uma série de mecanismos econômicos, sociais e culturais. E, como o diabo, seu principal engodo é convencer de que não existe.
Nesse sentido, a nossa mídia oligopolizada, dirigida por um pequeno grupo de famílias brancas e muito ricas, jogou e joga um papel central em sua reprodução.
Sabe-se que há um conhecido diretor-jornalista da mesma rede em que trabalha Waack que publicou livro, de muito sucesso, no qual se nega a existência de racismo no Brasil. Da mesma maneira, ficou bastante conhecida a campanha que a nossa mídia promoveu contra as políticas afirmativas que os governos do PT implantaram para combater o dissimulado, mas muito efetivo, racismo brasileiro. O sistema de cotas, por exemplo, foi demonizado e chegou-se a afirmar, com todas as letras, que o governo estava “criando” racismo num país não-racista.
Campanhas semelhantes foram encetadas contra políticas sociais que beneficiam majoritariamente a população afrodescendente, como a do Bolsa Família, por exemplo. De mais a mais, nas teledramaturgias exibidas ubiquamente no Brasil, os afrodescendentes quase sempre apareceram em posição de inferioridade social, cultural e intelectual, o que contribuiu, e ainda contribui, para reforçar estereótipos grosseiros. O mesmo ocorreu e ocorre em programas humorísticos.
Ante isso, deve-se perguntar se a “piadinha” de Waack é apenas um deslize individual ou se ela reflete uma visão de mundo que é hegemônica no meio em que ele trabalha. Estou mais inclinado a acreditar na segunda hipótese.
Também devemos indagar sobre o que causa mais danos aos nossos afrodescendentes, se a blague de mau gosto de Waack ou a disseminação sistemática, de “bom tom” e pretensamente sofisticada da visão de um Brasil racialmente democrático, que depende apenas da “meritocracia” para sanar a histórica desigualdade entre negros e brancos. Também neste caso, estou mais inclinado a acreditar na segunda hipótese.
Waack deve ser demitido? Não estou certo e não me comprazo no punitivismo catártico, porém ineficaz, que atinge somente indivíduos com ódio estéril.
De uma coisa, entretanto, estou convicto. Se não forem hipócritas e levarem a sério esse negócio de combater racismo e desigualdade, toda a velha mídia deveria pedir demissão e sair da nossa vida pública.
Já causaram danos demais. E não foi piada.
Ante isso, deve-se perguntar se a “piadinha” de Waack é apenas um deslize individual ou se ela reflete uma visão de mundo que é hegemônica no meio em que ele trabalha. Estou mais inclinado a acreditar na segunda hipótese.
Também devemos indagar sobre o que causa mais danos aos nossos afrodescendentes, se a blague de mau gosto de Waack ou a disseminação sistemática, de “bom tom” e pretensamente sofisticada da visão de um Brasil racialmente democrático, que depende apenas da “meritocracia” para sanar a histórica desigualdade entre negros e brancos. Também neste caso, estou mais inclinado a acreditar na segunda hipótese.
Waack deve ser demitido? Não estou certo e não me comprazo no punitivismo catártico, porém ineficaz, que atinge somente indivíduos com ódio estéril.
De uma coisa, entretanto, estou convicto. Se não forem hipócritas e levarem a sério esse negócio de combater racismo e desigualdade, toda a velha mídia deveria pedir demissão e sair da nossa vida pública.
Já causaram danos demais. E não foi piada.
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