Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Embora o calendário informe que faltam sete meses para a eleição presidencial, enfrentamos um período histórico com tantas incertezas - só sabemos que nada sabemos sobre o que vai acontecer até o fim do Carnaval - que é bom aprender a distinguir um necessário pacto de reconstrução da democracia dos conhecidos cantos de sereia que surgem nessas horas.
A melodia é uma chantagem desafinada, foi exposta por Gilmar Mendes e já pode ser ouvida em várias conversas ao longo da semana.
Em troca da liberdade de Lula, ameaçado por uma condenação sem provas, a ser mais tarde reforçada por outras sentenças já no forno, retira-se sua candidatura presidencial. Com isso, abre-se espaço para o palanque de fantasmagorias eleitorais que os patrões do golpe pretendem improvisar até outubro, sem chance de vitória se os candidatos de laboratório tiverem de enfrentar o mais popular presidente de nossa história. Este é o ponto onde a História faz uma curva, define personagens, refina os enredos.
Em 1964, não custa recordar, Juscelino ouviu tantos cantos de sereia após o golpe de abril que não apenas votou contra Jango numa vergonhosa decisão no Congresso que enterrou um mandato presidencial legítimo. Também acreditou que seria preservado em seus direitos para disputar a presidência em 1965. Mais popular político de sua época, JK perdeu o mandato e foi para o exílio antes que a ditadura - que duraria 21 anos - completasse três meses.
Quarenta anos depois, lembrai-vos da AP 470, o Mensalão. As sereias que se alvoroçavam em torno de Joaquim Barbosa diziam que bastaria entregar José Dirceu, José Genoíno, João Paulo Cunha & demais lideranças petistas para preservar um governo que era apenas o embrião do mais bem sucedido combate à desigualdade e pelo desenvolvimento que nossa história conheceu.
A salvação foi produzida pela mobilização popular, dentro e fora do governo. O saldo foi um dos períodos de maior prosperidade de nossa história.
Num país com uma reconhecida tradição de pactos conservadores e raros respiros progressistas, a liderança de Lula concentra as chances reais de enfrentamento contra um projeto de regressão nacional jamais visto no Brasil como nação independente. Nem é preciso lembrar as derrotas políticas produzidas em nosso passado, algumas superadas com imensa dificuldade, outras jamais revertidas.
O fato é que ao longo de cinco séculos nunca experimentamos uma grotesca tentativa de andar para trás -- e isso é muito grave. Estamos diante de uma regressão questionada até por uma resolução das Nações Unidas, como lembrou em artigo muito oportuno o ministro do STF Ricardo Lewandovski. Ele cita o artigo 30 da Declarações dos Direitos do Homem, de 1948, onde se diz: "Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos". Ou seja: no Brasil de 2018, acontecem coisas que a humanidade que venceu o nazismo considerava inaceitável, "uma afronta aos legítimos postulados de segurança e confiança dos cidadãos".
A utilidade óbvia da barganha das sereias é amortecer as reações de protesto em curso após a decisão do TRF-4. Para complicar as coisas para Temer-Meirelles, o golpe está a caminho de enfrentar sua primeira derrota estratégica com a liquidação da reforma da previdência.
Num país que adora falar em ética, a liberdade de Lula não pode ser negociada como favor ou recompensa por serviços prestados. É uma consequência natural da Constituição, na qual a presunção da inocência é um princípio fundamental, tanto que ela só autoriza a prisão após o "transito em julgado de sentença penal condenatória".
Outro ponto a considerar sempre é que não há a menor garantia de entrega da mercadoria em tratativas desse tipo, nas quais o conto do vigário é uma tradição.
A eliminação política de Lula não é um capricho de Sérgio Moro nem dos amigos do FBI. É uma necessidade para se consolidar um regime político sem lugar para os pobres e seus representantes -- seja no orçamento do Estado, seja nas instituições. Desse ponto de vista, a exclusão da candidatura presidencial é o caminho mais fácil para novos ataques a Lula, enfraquecido e criminalizado pela perda de direitos políticos, exposto a ataques mais duros.
Num país onde a sensação de nau a deriva é crescente, ninguém tem o direito de ignorar o efeito de uma eventual prisão do maior líder popular de nossa história republicana. Sem avançar em profecias, é razoável imaginar reações de vulto, com pontos de contato com a insurreição espontânea de 1954, após o tiro no peito de Getúlio, como sugere Franklin Martins, ministro da Secretaria de Comunicação Social entre 2007-2011, em entrevista a TV 247, que você pode ver na íntegra pelo youtube.
Para Franklin "há um sentimento na política que é fortíssimo. Quando cresce, cresce para valer. É o sentimento de que houve uma injustiça, contra uma liderança muito forte, que foi perseguida, foi massacrada, e que eu não defendi como deveria e acreditei num monte de besteira. Fomos injustos e pequenos com alguém que foi grande com a gente".
Acima de tudo, o decisivo, é o sinal que vem do próprio Lula. No cenário respeitoso da missa fúnebre em homenagem a Marisa Letícia, ele fez questão de dizer: "o bom de ficar velho é que a gente perde o medo". Foi a verdade possível num momento em que a água jorrava de seus olhos.
Caminhando pelo saguão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ao apontar um caminho, comunicando sua decisão ao país inteiro, Lula repetiu o trajeto em que o homem se encontra com a Nação país - mais uma vez.
Lula construiu sua liderança na segunda metade da década de 1970. Era um momento favorável da história, de ascensão do movimento operário após o refluxo nas lutas populares sob a ditadura, quando até o empresariado assinava manifestos pela democracia.
Quase 50 anos mais tarde, Lula enfrenta uma situação que, sob vários aspectos, é muito mais difícil, um horizonte de evitar perdas e minimizar danos. Vive-se uma conjuntura adversa, de regressão e retrocesso, na qual a relação entre as classes se altera de modo desfavorável aos trabalhadores e a população explorada. Neste ambiente, Lula aceita, com uma serenidade que jamais receberá todos os aplausos merecidos, o desafio que a História lhe reservou.
Recuperando a noção do "nós" e do "eles", indispensável na definição de interesses e contradições de uma sociedade como a nossa, em entrevista a Rádio Jornal, de Pernambuco, ele explicou:
"Eles acharam que na primeira pesquisa o Lula estaria acabado. E o que perceberam? Que o Lula não está acabado e o povo está vivo. Eu não quero ser mais do que ninguém, mas também não quero ser menos. Não posso dizer que alguém é ladrão se não der uma prova. Não tentem ganhar de mim no tapetão, disputem comigo".
Nos próximos dias, estará em Belo Horizonte, para anunciar a vontade de concorrer a presidência. Em seguida, toma o caminho do Sul, iniciando uma caravana em companhia de José Mujica, na fronteira com o Uruguai.
Embora o calendário informe que faltam sete meses para a eleição presidencial, enfrentamos um período histórico com tantas incertezas - só sabemos que nada sabemos sobre o que vai acontecer até o fim do Carnaval - que é bom aprender a distinguir um necessário pacto de reconstrução da democracia dos conhecidos cantos de sereia que surgem nessas horas.
A melodia é uma chantagem desafinada, foi exposta por Gilmar Mendes e já pode ser ouvida em várias conversas ao longo da semana.
Em troca da liberdade de Lula, ameaçado por uma condenação sem provas, a ser mais tarde reforçada por outras sentenças já no forno, retira-se sua candidatura presidencial. Com isso, abre-se espaço para o palanque de fantasmagorias eleitorais que os patrões do golpe pretendem improvisar até outubro, sem chance de vitória se os candidatos de laboratório tiverem de enfrentar o mais popular presidente de nossa história. Este é o ponto onde a História faz uma curva, define personagens, refina os enredos.
Em 1964, não custa recordar, Juscelino ouviu tantos cantos de sereia após o golpe de abril que não apenas votou contra Jango numa vergonhosa decisão no Congresso que enterrou um mandato presidencial legítimo. Também acreditou que seria preservado em seus direitos para disputar a presidência em 1965. Mais popular político de sua época, JK perdeu o mandato e foi para o exílio antes que a ditadura - que duraria 21 anos - completasse três meses.
Quarenta anos depois, lembrai-vos da AP 470, o Mensalão. As sereias que se alvoroçavam em torno de Joaquim Barbosa diziam que bastaria entregar José Dirceu, José Genoíno, João Paulo Cunha & demais lideranças petistas para preservar um governo que era apenas o embrião do mais bem sucedido combate à desigualdade e pelo desenvolvimento que nossa história conheceu.
A salvação foi produzida pela mobilização popular, dentro e fora do governo. O saldo foi um dos períodos de maior prosperidade de nossa história.
Num país com uma reconhecida tradição de pactos conservadores e raros respiros progressistas, a liderança de Lula concentra as chances reais de enfrentamento contra um projeto de regressão nacional jamais visto no Brasil como nação independente. Nem é preciso lembrar as derrotas políticas produzidas em nosso passado, algumas superadas com imensa dificuldade, outras jamais revertidas.
O fato é que ao longo de cinco séculos nunca experimentamos uma grotesca tentativa de andar para trás -- e isso é muito grave. Estamos diante de uma regressão questionada até por uma resolução das Nações Unidas, como lembrou em artigo muito oportuno o ministro do STF Ricardo Lewandovski. Ele cita o artigo 30 da Declarações dos Direitos do Homem, de 1948, onde se diz: "Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos". Ou seja: no Brasil de 2018, acontecem coisas que a humanidade que venceu o nazismo considerava inaceitável, "uma afronta aos legítimos postulados de segurança e confiança dos cidadãos".
A utilidade óbvia da barganha das sereias é amortecer as reações de protesto em curso após a decisão do TRF-4. Para complicar as coisas para Temer-Meirelles, o golpe está a caminho de enfrentar sua primeira derrota estratégica com a liquidação da reforma da previdência.
Num país que adora falar em ética, a liberdade de Lula não pode ser negociada como favor ou recompensa por serviços prestados. É uma consequência natural da Constituição, na qual a presunção da inocência é um princípio fundamental, tanto que ela só autoriza a prisão após o "transito em julgado de sentença penal condenatória".
Outro ponto a considerar sempre é que não há a menor garantia de entrega da mercadoria em tratativas desse tipo, nas quais o conto do vigário é uma tradição.
A eliminação política de Lula não é um capricho de Sérgio Moro nem dos amigos do FBI. É uma necessidade para se consolidar um regime político sem lugar para os pobres e seus representantes -- seja no orçamento do Estado, seja nas instituições. Desse ponto de vista, a exclusão da candidatura presidencial é o caminho mais fácil para novos ataques a Lula, enfraquecido e criminalizado pela perda de direitos políticos, exposto a ataques mais duros.
Num país onde a sensação de nau a deriva é crescente, ninguém tem o direito de ignorar o efeito de uma eventual prisão do maior líder popular de nossa história republicana. Sem avançar em profecias, é razoável imaginar reações de vulto, com pontos de contato com a insurreição espontânea de 1954, após o tiro no peito de Getúlio, como sugere Franklin Martins, ministro da Secretaria de Comunicação Social entre 2007-2011, em entrevista a TV 247, que você pode ver na íntegra pelo youtube.
Para Franklin "há um sentimento na política que é fortíssimo. Quando cresce, cresce para valer. É o sentimento de que houve uma injustiça, contra uma liderança muito forte, que foi perseguida, foi massacrada, e que eu não defendi como deveria e acreditei num monte de besteira. Fomos injustos e pequenos com alguém que foi grande com a gente".
Acima de tudo, o decisivo, é o sinal que vem do próprio Lula. No cenário respeitoso da missa fúnebre em homenagem a Marisa Letícia, ele fez questão de dizer: "o bom de ficar velho é que a gente perde o medo". Foi a verdade possível num momento em que a água jorrava de seus olhos.
Caminhando pelo saguão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ao apontar um caminho, comunicando sua decisão ao país inteiro, Lula repetiu o trajeto em que o homem se encontra com a Nação país - mais uma vez.
Lula construiu sua liderança na segunda metade da década de 1970. Era um momento favorável da história, de ascensão do movimento operário após o refluxo nas lutas populares sob a ditadura, quando até o empresariado assinava manifestos pela democracia.
Quase 50 anos mais tarde, Lula enfrenta uma situação que, sob vários aspectos, é muito mais difícil, um horizonte de evitar perdas e minimizar danos. Vive-se uma conjuntura adversa, de regressão e retrocesso, na qual a relação entre as classes se altera de modo desfavorável aos trabalhadores e a população explorada. Neste ambiente, Lula aceita, com uma serenidade que jamais receberá todos os aplausos merecidos, o desafio que a História lhe reservou.
Recuperando a noção do "nós" e do "eles", indispensável na definição de interesses e contradições de uma sociedade como a nossa, em entrevista a Rádio Jornal, de Pernambuco, ele explicou:
"Eles acharam que na primeira pesquisa o Lula estaria acabado. E o que perceberam? Que o Lula não está acabado e o povo está vivo. Eu não quero ser mais do que ninguém, mas também não quero ser menos. Não posso dizer que alguém é ladrão se não der uma prova. Não tentem ganhar de mim no tapetão, disputem comigo".
Nos próximos dias, estará em Belo Horizonte, para anunciar a vontade de concorrer a presidência. Em seguida, toma o caminho do Sul, iniciando uma caravana em companhia de José Mujica, na fronteira com o Uruguai.
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